3/05/2019

Monteiro Lobato, o "bicho da goiaba"


Monteiro Lobato, o "bicho de goiaba"

Ouvi falar pela primeira vez em Monteiro Lobato quando em menino ainda tive notícia de seu noivado com minha prima Purezinha. Comentava-se, na família, como tão bela moça fora gostar de José Bento, caladão, feio e pobre, que acabava de se formar em Direito e fora nomeado promotor público, no município de Areias, próximo da Cidade de Taubaté.

Lembro-me bem do dia de seu casamento. A noiva, mais radiosa e linda do que nunca, dançara o "cake-walk" com seu irmão Enéas, sob as palmas presentes.

Já então o José Bento havia conquistado toda a parentela, pois atravessada a couraça com que se defendia dos indiferentes, ninguém como ele tão puro de sentimentos, tão generoso em seus afetos. O casal Lobato parecia destinado à vida anônima dos muitos pares que se unem para a aventura de ''constituir família" no interior do Brasil.

Mas havia uma chama a arder dentro dele, que desafiou a rotina e fez irromper o escritor e o artista. Lá está na correspondência com seu amigo Godofredo Rangel: "Somos vítimas do um destino. Nascemos para perseguir a borboleta de asas de fogo. Se a não pegamos seremos infelizes; e se a pegamos, lá se nos queimam as mãos".

Suas grandes preocupações foram de ordem artística e literária, mas sempre condicionadas à sua forte personalidade: "Somos nós mesmos ou não somos coisa nenhuma".

Monteiro Lobato foi tão inteiramente ele mesmo, que sua literatura leva sempre a marca do momento vivido. Ele é o próprio instrumento que "sabe ver, sabe sentir, sabe dizer". O que escreveu está impregnado de verdade, porque foi sentido por ele, antes de passar para o papel. Suas próprias expressões estão carregadas de vida, nada é artificial ou preparado em seus livros.

Poderia ter ficado na Fazenda de Buquira, ''vivendo uma bela vida mental, tendo à sua disposição maravilhosos livros e passarinhos, perfeita companheira e flores, porcos que engordam gostosamente na ceva, e dos filhinhos viçosos''.

Chegou, porém, o dia em que nada mais contribuía para sua paz interior. O Jeca Tatu viera à tona, seguido de toda a fauna e flora que o rodeava. Era preciso partir. Para ele, o "supremo programa da vida era viver a sua vida". Repetir-se seria parar no caminho. Sua alma era a de um rebelde, a do eterno e romântico rebelde que se bate pelas causas difíceis.

Vendeu sua fazenda e instalou-se novamente em São Paulo. A glória literária que não procurara entra-lhe pela casa adentro. "O grande sonho realizou-se, e mais completo do que jamais me atrevi a desejar", confessou em outra carta a Godofredo Rangel.

Mas a glória tem o seu preço. Quer agora isolar-se para produzir, mas é impossível. Trava uma verdadeira batalha pelo livro. Envereda pela edição das obras dos novos escritores, monta oficinas, desdobra-se em atividades comerciais. Faz fortuna, mas logo depois abre falência. Muda-se para o Rio, parte para os Estados Unidos. Fica maravilhado com a civilização americana. Tudo ali tão perfeito e o Brasil parado, com suas possibilidades adormecidas. Era preciso varar o bosque espesso da ignorância e atraso. Dar-lhe petróleo e dar-lhe feno. Todos sabem como seus planos falharam, após muitas lutas que só lhe trouxeram decepções e amarguras, terminando pela prisão, no período mais triste da Ditadura.

***

A literatura é o seu porto como sempre. Volta-se para ela, principalmente a infantil. Em 1943, as tiragens de suas edições de livros para crianças haviam ultrapassado o primeiro milhão. "Esse número demonstra que meu caminho é esse, e é o caminho da salvação. Estou condenado a ser o Anderson desta terra, talvez da América Latina." Debalde lutou pelos homens. A criança será um campo mais propício. "As crianças sei que não mudam. São em todos os tempos e em todas as pátrias as mesmas."

Partiu para a Argentina decidido a ficar, a fim de esquecer os desgostos que tivera no Brasil, e escrever tranquilamente seus livros infantis. Estive com ele em Buenos Aires, em 1946, durante um mês e pude testemunhar o prestígio de sua glória literária.

Mas não se viveu impunemente, entranhado no amor de sua terra, compreendendo sua gente, sofrendo por suas limitações, lutando por ela. O apelo que o foi buscar, foi mais forte que sua vontade. Capitulou e voltou.

Logo depois do regresso, em 18 de maio de 1947, escreveu-me: "Meu querido Leonídio. Voltei à Pátria, forçado pelas saudades da língua, dos bate-papos intermináveis, das conversas para boi dormir e outros "caldos de goiaba, que temos aqui. Comparo o homem a bichos de goiaba; a pátria é a goiaba, e quanto mais podre melhor. Quem sai de sua terra é bicho que sai da goiaba; pode ir para um lugar lindo, mas passado certo tempo começa a debater-se de saudades daquele caldo de goiaba cor-de-rosa em que nasceu, em que se desenvolveu, e biologicamente é o sou "habitat" ou borralho.

Estou aqui, desde o dia 8, a rebolar-me no caldo da goiaba podre, como um bichinho que esteve fora dele um ano. Tudo isso por quê? Velhice. Velhice é covardia. Um moço sai da goiaba, dá uma banana para o caldinho cor-de-rosa e vai viver nos mais estranhos países: Alaska, Patagônia, Tibete, o Inferno. O velho vai ficando jururu e acaba voltando para a goiaba podre, como eu. Sessenta e cinco anos! Adeus, "darling." Do Monteiro Lobato."


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LEONÍDIO RIBEIRO
Ilustração Brasileira, outubro de 1950.
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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