Camilo e Machado de Assis
Eugênio
Gomes parece ter sido, até hoje, o único ensaísta a aproximar da obra camiliana,
à luz das confrontações objetivas, a obra de Machado de Assis. E, no entanto, analisadas
uma e outra, chega-se à conclusão de que a seara opulenta está a desafiar o
trabalho, o gosto e a paciência dos segadores literários.
À
primeira vista, ninguém mais distante de Camilo Castelo Branco do que o criador
de Capitu.
Diferentes
no temperamento, distintos no estilo, dissociados na visão da novela e do romance,
Machado e Camilo oferecem, entretanto, muitos pontos de contato, como traços
comuns de curiosa afinidade.
Vejamos
alguns exemplos...
No
processo de composição do romance, Camilo não deixa que o leitor perca de vista
o romancista: de vez em quando interfere com a sua nota pessoal, e o faz de tal
forma que nos obriga a sentir-lhe a presença. Em As três irmãs, ao pintar o retrato de Jerônima em breves linhas,
Camilo suspende a pena com este comentário: "Basta o bosquejo. Tenho
observado que, em romances, a parcimônia dos retratos ajuda mais a imaginação
do leitor. Dá-se comigo isto..." Embora Machado de Assis não traga o seu
próprio exemplo à colação, cede com frequência ao gosto de interferir no meio
da narrativa à maneira de Camilo.
No
capítulo CXIII do Quincas Borba, no
instante em que analisaria as reações de Rubião julgando-se coautor de um
artigo político de seu amigo Camacho, Machado corta o fio da digressão,
dizendo: "...a análise seria, ainda assim, longa e fastidiosa. O melhor de
tudo é deixar ficar só isto..."
No
ritmo da frase, no gosto da forma castiça, em certo travor de irredutível
pessimismo, os dois grandes escritores sensivelmente se identificam, não
obstante toda a soma de grandes divergências radicais.
O
professor Pedro A. Pinto, no prêmio à edição brasileira de A Queda de um Anjo, conta haver colhido de Alberto de Oliveira a
informação de que Machado de Assis, em face da obra camiliana, punha em lugar
de honra O Esqueleto, mas reputava
muito bom O Sangue.
Daí
se deduz, não um conhecimento perfunctório, mas uma gradação de valores, que
implica, da parte de Machado de Assis, um domínio de conjunto da obra
camiliana. E em verdade se pode concluir, com a abonação de confrontos
expressivos, que Machado de Assis transitou a sua curiosidade e a sua meditação
através dos livros de Camilo Castelo Branco.
É
provável que, nesse trânsito do mestre brasileiro pelos romances do mestre
português, houvesse algum influxo da companheira do grande escritor. Sabe-se
que Carolina, portuguesa de nascimento e irmã do poeta satírico Faustino Xavier
de Novais, possuía formação literária, a que não faltou, na casa paterna, o
convívio com os escritores portugueses mais em evidência. Facilmente se conclui
que entre eles estaria Camilo Castelo Branco, íntimo amigo de Faustino Xavier
de Novais.
De
qualquer forma, a influência de Camilo em Machado de Assis não é difícil de ser
rastreada.
Eugênio
Gomes identificou numa página de Coração,
cabeça e estômago, a raiz do emplastro com que Brás Cubas pretendia aliviar
da melancolia a pobre humanidade. Nenhuma dúvida pode prevalecer sobre essa
filiação após o confronto dos textos, bastando dizer-se que aquilo que, no
romance de Camilo é antídoto contra a melancolia, a hipocondria e outras
enfermidades espirituais, no romance de Machado de Assis é emplastro anti-hipocondríaco.
Acrescentaremos,
nesse rastreamento de filiação, o reparo de que Coração, cabeça e estômago principia com uma alusão ao cunhado de
Machado de Assis, na dialogação de seu preâmbulo: "O meu amigo Faustino
Xavier de Novais conheceu perfeitamente aquele nosso amigo Silvestre da
Silva..." Esse Silvestre da Silva é que inventa, combinando cravo da
índia, junco cheiroso, sândalo, íris de Florença, pau de roseira e vinagre
rosado, o antídoto contra a melancolia.
Mas
não se restringem a semelhante invento as marcas da presença de Camilo na obra
de Machado de Assis. Há outras, e em grande número, dispersas em romances e
contos, com a evidência da consanguinidade literária, ou então transfiguradas
pela capacidade de assimilação machadiana. Nas Memórias Póstumas, quando o narrador pretende omitir, na biografia
do personagem, certo trecho fastidioso da infância, faz ao leitor este convite:
"Unamos agora os pés e demos um salto por cima da escola, a enfadonha
escola, onde aprendi a ler, escrever, contar, dar cacholetas, apanhá-las, e ir
fazer diabruras, ora nos morros, ora nas praias, onde quer que fosse propício a
ociosos".
Numa
das Novelas do Minho — a que tem por
título O Comendador — Camilo Castelo
Branco se vale de igual recurso, ao dizer: "Vinte anos volvem-se tão depressa
que eu, neste salto que o leitor vai dar, não me desprenderei a encher-lhe de
frases o passadiço. O melhor é fechar os olhos e saltar".
A
identidade de recurso é flagrante no confronto das duas passagens. Machado
parece ter obedecido, aí, à influência da leitura de Camilo.
O
episódio de O que fazem as mulheres,
em que o náufrago do rio Douro é salvo por um barqueiro e termina recompensando
o salvador com moedas de cobre, revela-nos pelo menos dois pontos capitais que
serão encontrados no episódio do almocreve, das Memórias Póstumas de Brás Cubas.
A
introdução de Coração, cabeça e estômago,
contém expressões que poderiam estar (e algumas em verdade estão) no prefácio
das Memórias Póstumas, como quando
Camilo alude às memórias de seu personagem ou à simpatia que esse "defunto
amigo granjeou postumamente na república das letras".
Nessa
mesma obra camiliana, vamos encontrar um dos elementos germinativos da teoria
de humanitas, que é a linha filosófica das Memórias
Póstumas e do Quincas Borba.
Um
simples confronto esclarecerá de modo objetivo essa contaminação literária.
Em
Coração, cabeça e estômago, escreve
Camilo, a propósito de seu personagem Silvestre da Silva: "Um filósofo não
deve aceitar no seu vocabulário a palavra morte, senão convencionalmente. Não
há morte!"
No
Quincas Borba, é essa a opinião do
filósofo de Machado de Assis, que por vezes se socorre das palavras de seu alter ego camiliano: "Não há morte.
O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode determinar a
supressão de uma delas, mas, rigorosamente, não há morte, há vida, porque a
supressão de uma é a condição da sobrevivência da outra, e a destruição não
atinge o princípio universal e comum".
No
capítulo CXXIII do Dom Casmurro, ao
descrever a cena do saimento do corpo de Escobar, escreveu Machado: "Enfim,
chegou a hora da encomendação e da partida. Sancha quis despedir-se do marido,
e o desespero daquele lance consternou a todos. Muitos homens choravam também,
as mulheres todas. Só Capitu, amparando a viúva, parecia vencer-se a si mesma.
Consolava a outra, queria arrancá-la dali. A confusão era geral".
Essa
derradeira frase, que Álvaro Moreira aproveitou como legenda de um hebdomadário
de literatura que marcou a sua hora na imprensa do país, bem pode ser um eco
das leituras camilianas de Machado de Assis, se considerarmos que, na sua
capacidade de apreensão do texto alheio, conforme demonstrou Raimundo Magalhães
Júnior num dos capítulos de Machado de
Assis Desconhecido, o mestre deturpava frequentemente as citações de seu
agrado. Ou então as desfigurava, após incorporá-las a seu próprio patrimônio.
Estaria
nesse caso, servindo de curioso exemplo do poder de transfiguração machadiana,
a frase que Álvaro Moreira escolheu como lema de um estudo intitulado Dom Casmurro.
No
pequeno romance A Morgada de Romariz,
que integra as Novelas do Mundo, bem
que poderemos situar o ponto de origem dessa frase, erguendo a ponta de um
pequeno mistério de estilística literária, neste trecho camiliano: "Vi
esta morgada, há três anos, em Braga, no teatro de São Geraldo. Estava em cena Santo Antônio, o taumaturgo. A comoção
era geral".
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JOSUÉ
MONTELLO
Revista Ilustração Brasileira, janeiro
de 1957.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba
Mendes (2019)
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