4/23/2019

Camilo e Machado de Assis (Análise Literária)


Camilo e Machado de Assis

Eugênio Gomes parece ter sido, até hoje, o único ensaísta a aproximar da obra camiliana, à luz das confrontações objetivas, a obra de Machado de Assis. E, no entanto, analisadas uma e outra, chega-se à conclusão de que a seara opulenta está a desafiar o trabalho, o gosto e a paciência dos segadores literários.

À primeira vista, ninguém mais distante de Camilo Castelo Branco do que o criador de Capitu.

Diferentes no temperamento, distintos no estilo, dissociados na visão da novela e do romance, Machado e Camilo oferecem, entretanto, muitos pontos de contato, como traços comuns de curiosa afinidade.

Vejamos alguns exemplos...

No processo de composição do romance, Camilo não deixa que o leitor perca de vista o romancista: de vez em quando interfere com a sua nota pessoal, e o faz de tal forma que nos obriga a sentir-lhe a presença. Em As três irmãs, ao pintar o retrato de Jerônima em breves linhas, Camilo suspende a pena com este comentário: "Basta o bosquejo. Tenho observado que, em romances, a parcimônia dos retratos ajuda mais a imaginação do leitor. Dá-se comigo isto..." Embora Machado de Assis não traga o seu próprio exemplo à colação, cede com frequência ao gosto de interferir no meio da narrativa à maneira de Camilo.

No capítulo CXIII do Quincas Borba, no instante em que analisaria as reações de Rubião julgando-se coautor de um artigo político de seu amigo Camacho, Machado corta o fio da digressão, dizendo: "...a análise seria, ainda assim, longa e fastidiosa. O melhor de tudo é deixar ficar só isto..."

No ritmo da frase, no gosto da forma castiça, em certo travor de irredutível pessimismo, os dois grandes escritores sensivelmente se identificam, não obstante toda a soma de grandes divergências radicais.

O professor Pedro A. Pinto, no prêmio à edição brasileira de A Queda de um Anjo, conta haver colhido de Alberto de Oliveira a informação de que Machado de Assis, em face da obra camiliana, punha em lugar de honra O Esqueleto, mas reputava muito bom O Sangue.

Daí se deduz, não um conhecimento perfunctório, mas uma gradação de valores, que implica, da parte de Machado de Assis, um domínio de conjunto da obra camiliana. E em verdade se pode concluir, com a abonação de confrontos expressivos, que Machado de Assis transitou a sua curiosidade e a sua meditação através dos livros de Camilo Castelo Branco.

É provável que, nesse trânsito do mestre brasileiro pelos romances do mestre português, houvesse algum influxo da companheira do grande escritor. Sabe-se que Carolina, portuguesa de nascimento e irmã do poeta satírico Faustino Xavier de Novais, possuía formação literária, a que não faltou, na casa paterna, o convívio com os escritores portugueses mais em evidência. Facilmente se conclui que entre eles estaria Camilo Castelo Branco, íntimo amigo de Faustino Xavier de Novais.

De qualquer forma, a influência de Camilo em Machado de Assis não é difícil de ser rastreada.

Eugênio Gomes identificou numa página de Coração, cabeça e estômago, a raiz do emplastro com que Brás Cubas pretendia aliviar da melancolia a pobre humanidade. Nenhuma dúvida pode prevalecer sobre essa filiação após o confronto dos textos, bastando dizer-se que aquilo que, no romance de Camilo é antídoto contra a melancolia, a hipocondria e outras enfermidades espirituais, no romance de Machado de Assis é emplastro anti-hipocondríaco.

Acrescentaremos, nesse rastreamento de filiação, o reparo de que Coração, cabeça e estômago principia com uma alusão ao cunhado de Machado de Assis, na dialogação de seu preâmbulo: "O meu amigo Faustino Xavier de Novais conheceu perfeitamente aquele nosso amigo Silvestre da Silva..." Esse Silvestre da Silva é que inventa, combinando cravo da índia, junco cheiroso, sândalo, íris de Florença, pau de roseira e vinagre rosado, o antídoto contra a melancolia.

Mas não se restringem a semelhante invento as marcas da presença de Camilo na obra de Machado de Assis. Há outras, e em grande número, dispersas em romances e contos, com a evidência da consanguinidade literária, ou então transfiguradas pela capacidade de assimilação machadiana. Nas Memórias Póstumas, quando o narrador pretende omitir, na biografia do personagem, certo trecho fastidioso da infância, faz ao leitor este convite: "Unamos agora os pés e demos um salto por cima da escola, a enfadonha escola, onde aprendi a ler, escrever, contar, dar cacholetas, apanhá-las, e ir fazer diabruras, ora nos morros, ora nas praias, onde quer que fosse propício a ociosos".

Numa das Novelas do Minho — a que tem por título O Comendador — Camilo Castelo Branco se vale de igual recurso, ao dizer: "Vinte anos volvem-se tão depressa que eu, neste salto que o leitor vai dar, não me desprenderei a encher-lhe de frases o passadiço. O melhor é fechar os olhos e saltar".

A identidade de recurso é flagrante no confronto das duas passagens. Machado parece ter obedecido, aí, à influência da leitura de Camilo.

O episódio de O que fazem as mulheres, em que o náufrago do rio Douro é salvo por um barqueiro e termina recompensando o salvador com moedas de cobre, revela-nos pelo menos dois pontos capitais que serão encontrados no episódio do almocreve, das Memórias Póstumas de Brás Cubas.

A introdução de Coração, cabeça e estômago, contém expressões que poderiam estar (e algumas em verdade estão) no prefácio das Memórias Póstumas, como quando Camilo alude às memórias de seu personagem ou à simpatia que esse "defunto amigo granjeou postumamente na república das letras".

Nessa mesma obra camiliana, vamos encontrar um dos elementos germinativos da teoria de humanitas, que é a linha filosófica das Memórias Póstumas e do Quincas Borba.

Um simples confronto esclarecerá de modo objetivo essa contaminação literária.

Em Coração, cabeça e estômago, escreve Camilo, a propósito de seu personagem Silvestre da Silva: "Um filósofo não deve aceitar no seu vocabulário a palavra morte, senão convencionalmente. Não há morte!"

No Quincas Borba, é essa a opinião do filósofo de Machado de Assis, que por vezes se socorre das palavras de seu alter ego camiliano: "Não há morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode determinar a supressão de uma delas, mas, rigorosamente, não há morte, há vida, porque a supressão de uma é a condição da sobrevivência da outra, e a destruição não atinge o princípio universal e comum".

No capítulo CXXIII do Dom Casmurro, ao descrever a cena do saimento do corpo de Escobar, escreveu Machado: "Enfim, chegou a hora da encomendação e da partida. Sancha quis despedir-se do marido, e o desespero daquele lance consternou a todos. Muitos homens choravam também, as mulheres todas. Só Capitu, amparando a viúva, parecia vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria arrancá-la dali. A confusão era geral".

Essa derradeira frase, que Álvaro Moreira aproveitou como legenda de um hebdomadário de literatura que marcou a sua hora na imprensa do país, bem pode ser um eco das leituras camilianas de Machado de Assis, se considerarmos que, na sua capacidade de apreensão do texto alheio, conforme demonstrou Raimundo Magalhães Júnior num dos capítulos de Machado de Assis Desconhecido, o mestre deturpava frequentemente as citações de seu agrado. Ou então as desfigurava, após incorporá-las a seu próprio patrimônio.

Estaria nesse caso, servindo de curioso exemplo do poder de transfiguração machadiana, a frase que Álvaro Moreira escolheu como lema de um estudo intitulado Dom Casmurro.

No pequeno romance A Morgada de Romariz, que integra as Novelas do Mundo, bem que poderemos situar o ponto de origem dessa frase, erguendo a ponta de um pequeno mistério de estilística literária, neste trecho camiliano: "Vi esta morgada, há três anos, em Braga, no teatro de São Geraldo. Estava em cena Santo Antônio, o taumaturgo. A comoção era geral".

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JOSUÉ MONTELLO
Revista Ilustração Brasileira, janeiro de 1957.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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