5/29/2019

A bolsa de seda (Conto), de Joaquim Manuel de Macedo


A bolsa de seda
CAPÍTULO 1
Era o dia 20 de outubro de 1855 — um sábado, e por consequência a véspera de um domingo.
Creio que sabeis que é nos domingos que aparece a semana, o meu folhetim hebdomadário do Jornal do Comércio.
Faltava-me matéria para a semana: sentia-me incapaz de satisfazer os leitores do Jornal do Comércio no dia seguinte: estava triste, aborrecido de mim mesmo.
Reconheci que não dava conta da mão: roguei pragas ao público, atirei com as penas para baixo da mesa, tomei o chapéu, e saí. Fui passear.
Não sei bem onde me achava; importa pouco para esta minha cena a questão do teatro; pode representar-se em qualquer rua, em qualquer praça ou em qualquer hotel: é uma cena que serve em qualquer teatro, como há em certos teatros decorações que servem para todos os dramas.
Ia eu indo e não via nada; tinha a semana pesando-me sobre o coração.
Senti de repente que me batiam no ombro.
Qid cogitas? disseram-me.
Tinha encontrado um homem que sabia latim, o que não é muito comum no Rio de Janeiro; voltei-me para ele; era o meu amigo Constando, mocetão de vinte e cinco anos, bonito, rico, solteiro, que fuma charutos de Havana, tem bigodes e pera, e tudo, tudo e tudo, menos talvez juízo, o que é muito comum no Rio de Janeiro.
Quid cogitas?... repetiu-me ele.
— Penso na semana, que já devia estar feita, e que ainda não comecei.
— Pois então alegra-te! dou-te mais que uma semana.
Como?
— Dou-te um romance.
— Bravo! o herói?...
— Sou eu: está entendido.
— A heroína?...
— Uma moça bonita. Queres?...
— O quê?... a moça ou o romance?...
— O romance, está visto.
— Aceito: conta lá isso; mas antes de tudo devemos-lhe um título: qual deve ser?...
A bolsa de seda.
Bem escolhido; começa pois.
Constâncio deu-me um abraço, e principiou:
— Conheces minha mãe e minha irmã?...
— Que tem isso com o teu romance?
— Conheces minha mãe e minha irmã?
— Não.
— Pois é pena; minha mãe é uma senhora muito religiosa e cheia de virtudes; e minha irmã uma moça bonita, engraçada, compassiva e boa até não poder mais. Ora, sendo elas assim, ando desgostoso, desesperado, furioso por ver que em um tempo como este, quando todas as senhoras se têm tornado notáveis por atos bri­lhantes de caridade, só minha mãe e minha irmã, apesar de boas e religiosas como são, se deixam ficar em casa, e não levam nem uma camisa, nem um lençol, nem uma esmola à casa de um pobre!...
— Tem paciência.
— Qual paciência! queria ouvir abençoados os no­mes de minha mãe e de minha irmã: ainda anteontem à noite tive um combate com elas por isto, mas foi tempo perdido; depois de lutar em vão duas horas, fui-me deitar, e sonhei... sabes o quê?...
— Não.
— Sonhei com o anjo da caridade, vi-o, achei-o bonito, apaixonei-me por ele e por fim de contas reco­nheci que o anjo era uma moça, e casei-me com ela.
— Dou-te os parabéns.
— A hora do almoço contei o meu sonho a minha mãe e a minha irmã; elas riram-se de mim, e eu jurando que me havia de casar com um anjo como o que so­nhara, saí de casa.
— E depois?...
— Passei o dia com um amigo, e à noite dirigi-me ao teatro; mas, coisa célebre! o meu sonho não me saía da cabeça; ao passar por uma das nossa ruazinhas estreitas e menos frequentadas, vejo parar um carro e saltar dele uma moça coberta com um véu. A moça não vinha só; trazia uma companheira que se deixou ficar no carro, e cujo rosto não pude ver, porque também se cobria com um véu como a primeira.
— Bem; continua.
— Não pude deixar de admirar o corpo gracioso e encantador da moça que descera do carro; mas o que sobretudo me impressionou foi o seu mimoso pezinho, que de relance apreciei à luz do abençoado gás; está dito... fiquei doido por aquele pé; por sinal que era o direito, e por consequência posso dizer que a moça entrou-me com o pé direito no coração.
— Pobre coração!
— É verdade: daí a meia hora eu o tinha completamente acalcanhado.
— Continua.
— O carro ficou parado, e a moça avançando alguns passos bateu na rótula de uma casinha de triste apa­rência, e um momento depois entrou.
"O carro era de aluguel, e o maldito cocheiro ou era mudo, ou não falava. A curiosidade saía-me pelas pontas dos dedos; fui a uma venda da esquina, e infor­mando-me sobre quem morava no pobre casebre, soube que era uma família indigente. Lembrei-me do meu sonho, adivinhei que tinha encontrado a minha bela sonhada, e de um pulo fui bater, e entrei na casa da pobreza.
Fiz tudo isto com tanta rapidez, que a moça quis, mas não teve tempo de se esconder, e fui encontrá-la sentada ao lado de uma pobre velha: continuava a ter o rosto coberto com o seu véu longo e impenetrável; não me importei com o véu, e achei-a formosíssima: fiz de conta como os poetas, e apaixonei-me como eles."
— Adiante, adiante...
— Falei-lhe e não me respondeu; não me incomodei com isso, nem por tal esfriou a minha paixão; tentei aproximar-me dela; mas imediatamente levantou-se, e com tal pressa que lhe caiu uma bolsa de seda.
Ah! a bolsa de seda...
— É verdade: uma bolsa que sem dúvida ela estava tecendo, e que ainda não estava acabada.
— E que mais?
— A velha apanhou e entregou-lhe a bolsa; vi a mão da moça... fiquei abismado.
— E depois?
— A moça apontou-me para um quartinho escuro e triste, onde gemia uma criança; corri a ver a infeliz; era um menino de quatro anos; condoído de seus sofri­mentos e de sua pobreza, começava a examiná-lo, quando ouvi rodar uma sege...
— Que logro!
— É certo: saltei para a sala; mas a velha me disse com triste sorriso; — é tarde! já partiu.
— E quem é ela?...
— Um anjo de caridade, senhor.
— Exatamente, exclamei eu, era isso o que eu pro­curava; posso considerar-me casado. Quando torna ela aqui?
Não sei; aparece, como a providência, sempre que se faz necessária.
E que vem fazer?...
Que vem fazer?... Ah! senhor, vem vestir a mim e a meus filhos; vem ajoelhar-se aos pés daquela cama velha, e com suas mãos tão finas e mimosas banhar os pés de meu filho doente! vem dizer-lhe palavras de amor, e fazê-lo tomar remédios sem chorar, nem contra­fazer-se; vem animar-nos a fé e acender-nos a esperança, e sempre acha ocasião para, sem que ninguém a veja, deixar uma boa soma de dinheiro embaixo do meu tra­vesseiro.
E como se chama?...
Ela diz que se chama minha irmã.
Irmã dos pobres! é isso mesmo: estou definiti­vamente casado.
Ah! senhor!
Onde mora ela?
Não o quer dizer.
É bonita?...
e que graça... e que voz.
Oh! se o é... que olhos!...
Exatamente!... eu a sonhei tal e qual.
Tal e qual, como, senhor?...
Tal e qual como ela é; boa dúvida!
E o senhor sabe como ela é?...
A pergunta da velha embatucou-me; como não tive que responder, desviei-me da questão.
E vós quem sois, boa mulher?... contai-me a vossa história.
A minha história é bem simples, disse a velha; moça pobre tive a fortuna de me casar com um excelente homem; era um bom carpinteiro que ganhava com a sua enxó bastante para sustentar a sua família; tinha sido voluntário da independência, bateu-se nobremente por ela, e ganhou a sua medalha da campanha da Bahia; há cinco anos adoeceu, e ficando alguns meses de cama, acabou mais de miséria do que da moléstia; ninguém se lembrou dele!... Se eu tivesse uma bandeira na­cional para amortalhá-lo!... mas não tive: embrulhei o seu cadáver no último lençol que nos restava, e pen­durei a seu pescoço a medalha da independência; a misericórdia fez o resto, enterrando o corpo do antigo soldado; creio que ninguém reparou na medalha e foi bom isso.
Por quê?...
Porque os vivos haviam de envergonhar-se do morto.
A velha, apesar de pobre falava como um deputado.
E depois?... perguntei.
Depois, senhor, vivi e sustentei meus quatro filhos como pude: Deus me protegeu até hoje, e continua sem­pre a proteger-me; mas, confesso o meu grande pecado; quando rebentou esta peste maldita, e vi dois de meus filhos caídos, quase que desesperei!... Felizmente ura anjo de caridade entrou-me em casa, e consigo me trouxe a esperança e a coragem.
E esse anjo?
Saiu daqui há pouco.
Sim, bem sei; mas, boa mulher, eu tenho absoluta necessidade de saber quem ele é, como se chama, e onde mora...
Como posso eu dizê-lo?...
Oh! mas se é essencial!... eu devo casar-me com aquela senhora; é uma coisa decidida.
É possível, senhor!...
Falta-me só conhecê-la...
A velha olhou para mim espantada; sem dúvida alguma pensou que tinha diante de si algum doido; receando porém ofender-me com o seu olhar, abaixou a cabeça, e apanhando um fio de seda que encontrara a seus pés, começou a enrolá-lo por entre os dedos.
Bem se diz que às vezes a fortuna pende de um fio!
Vi a minha felicidade pendendo daquele fio de seda.
Lembrei-me da bolsa de seda.
Boa velha, creio que o fio que enrolais nos dedos foi da bolsa de seda que o vosso anjo de caridade tecia.
É verdade.
Então essa bela senhora, quando vem a esta casa costuma trazer algum trabalho para se entreter, não?...
Ah, não, senhor: ela às vezes demora-se aqui uma, duas, e até três horas, conforme julga necessário, para prestar-nos socorro; e há alguns dias apenas traz essa bolsa que está tecendo, segundo diz, para dá-la de pre­sente a uma amiga que faz anos domingo.
Domingo? depois de amanhã?...
Sim, senhor.
Bravo! vou saber quem é esse anjo de caridade; domingo é o dia do leilão a favor da pobreza, e a bolsa de seda não se destina a outro fim; já conheço a cor da tal bolsinha... vou encontrar e conhecer minha mulher!
A velha tornou a olhar-me com surpresa e talvez piedade; e eu que não tenho nem a delicadeza, nem a graça das senhoras, em vez de fazer escorregar algum dinheiro para baixo do travesseiro da velha, lancei-lhe no colo a minha carteira, e saí pela porta a fora meio atrapalhado com as bênçãos e com os agradecimentos da pobre mulher.
Em vez de ir para o teatro fui logo direito para casa, onde encontrei minha mãe e minha irmã, que desde que começou o cólera não vão nem à ópera lírica, nem ao baile, e nem saem de noite com medo do sereno.
Contei-lhes o que me havia acontecido, e elas me­tendo o negócio à bulha, acabaram como sempre cos­tumam, por me dar o gracioso título de doido.
Mas amanhã é domingo, e a bolsa de seda virá provar que eu sou um rapaz de muito juízo.
O meu amigo Constando fez ponto final e olhou para mim.
— E que mais?... perguntei.
— Por ora nada mais: deixarás o romance interrom­pido neste ponto, e prometerás concluí-lo na próxima semana.
Bem; mas deves ao menos deixar esclarecido um ponto.
— O quê?...
— A cor da bolsa de seda.
Nessa não caía eu: a cor da bolsa é o meu segredo; ainda não estou casado, e enquanto não me casar não darei a ninguém os meios de descobrir quem é a bela do meu sonho. Espera até amanhã, que é domingo.
— Mas tu contas demais com a tua perspicácia; como poderás descobrir no leilão de amanhã quem teceu a bolsa de seda, se os objetos oferecidos para o leilão não trazem os nomes das dignas senhoras que os ofertam?...
— Tudo se sabe no mundo, meu caro: e a diligência é a mãe da boa ventura. O que eu quero é ver a bolsa de seda no leilão de amanhã; o mais fica por minha conta.
— Bem; mas vê que estás obrigado a dar-me a con­tinuação e o desfecho deste romance.
— Está subentendido.
— Tu o prometes?...
— Palavra de honra! disse Constâncio, estendendo teatralmente a mão direita.
— E quando?...
— No dia e às horas, em que tiveres de começar a escrever a tua semana para o próximo domingo.
— Excelentemente: sábado ao meio-dia.
— Sábado ao meio-dia: conta comigo.

CAPÍTULO 2
No sábado seguinte pelas onze horas da manhã já eu me achava ansioso esperando o meu amigo Cons­tâncio. Esperei inutilmente uma hora, e dei um salto de alegria ouvindo o sinal de meio-dia dado em uma igreja vizinha.
Era o momento aprazado.
— Até que enfim! disse eu.
Soou a décima segunda badalada, e apareceu-me vivo e alegre, como sempre, o meu amigo Constâncio.
— O desfecho do romance?... grito correndo para
— Sou um tolo, respondeu-me o pobre Constâncio.
— Ah meu amigo! o que eu queria que me desses, era alguma novidade.
— Escuta: comprometi-me a contar-te o fim da minha aventura; eis-me aqui; mas não sei, se já estou no meio dela.
— Seja como for, refere-me o que houve.
— Fui ao leilão, ou antes à exposição de domingo: corri, examinei um por um todos os objetos...
— E então?... que viste?...
— Nada, porque lá não se achava a minha suspi­rada bolsa de seda: o meu anjo de caridade tinha adivi­nhado o meu plano, e não quis expor a sua delicada obra: fiquei furioso, e vinguei-me falando contra a mes­quinhez com que mal corresponderam aos esforços caridosos de tantas e tão respeitáveis senhoras.
— E depois?
— Esperei até o fim da festa; esperei ainda muito tempo, até que o porteiro da academia mostrou-me com toda a delicadeza a porta da rua, e saí enfim; mal tinha porém dado alguns passos, chega-se a mim uma pobre velha envolta numa mantilha. Eu estava de mau humor e voltei-lhe as costas.
— Compaixão, senhor! uma esmola pelo amor de Deus!
Lembrei-me da minha desconhecida: meti a mão no bolso, e tirei uma moeda de prata.
A velha estendeu as mãos abrindo uma bolsa para receber a esmola.
Oh! era a bolsa de seda! conheci-a imediatamente pela cor: era a minha bolsa: agarrei-me a ela.
— A quem, homem?... à velha?...
— Não; à bolsa.
— Ainda bem.
— Quanto quer por esta bolsa?... donde lhe veio esta bolsa?... quem a teceu?... quem lha deu?...
A velha ficou espantada e respondeu-me a tremer.
Esta bolsa... foi uma senhora que me socorre que a deu de presente a uma netinha que tenho.
Pois eu a quero; compro-a.
Esta bolsa não se vende, disse a velha.
Nesse caso tomo-a de graça.
Oh! se é assim, dê o senhor o que quiser por ela; mas olhe que não é vendida, é trocada, como uma relíquia.
Sem ser fidalgo dei pela bolsa mais do que... porém vamos adiante; nada de má língua.
Como se chama, e onde mora a senhora que deu esta prenda a sua neta?...
Chama-se irmã dos pobres, segundo ela diz; e deve morar certamente em alguma casa que ela não diz onde é.
Estou na mesma: e a senhora onde mora?...
A velha disse-me o nome da rua e o número da casa em que morava, e sumiu-se ligeira como um coelho.
Eu estava entusiasmado: não conhecia ainda a bela misteriosa; mas pelo menos já possuía a bolsa de seda.
Corri para casa, e cheio de ardor, tendo nos olhos o fogo da felicidade, e no coração o anelo da mais terna esperança, apresentei a bolsa, de seda a minha mãe e a minha irmã.
Então, que lhes dizia eu?... exclamei; tenho a bolsa ou não?...
Mas... que vale uma bolsa?... perguntou-me minha mãe.
Essa agora é boa!... que vale uma bolsa?... pergunte ao mundo, minha mãe! um homem que tem uma bolsa, tem o segredo da felicidade no amor.
Vazia assim?... disse-me rindo-se e sacudindo com a bolsa minha irmã.
Sacrílega! exclamei.
Entretanto deve-se confessar que está bem feitinha! continuou ela examinando; eis aqui uma man­cha...
Foi dos meus beijos, acudi eu.
Vejamos por dentro, prosseguiu minha irmã que é das Arábias, voltando a bolsa de dentro para fora.
Eu estava em êxtase.
Oh!... exclamou ela soltando uma risada.
Então que é isso?...
Constâncio, perguntou-me a cruel moça; a tua desconhecida é costureira de alguma casa de modas da rua do Ouvidor.
Invejosa!
Esta bolsa veio de Paris: olha aqui no fundo a marca da casa da Rua do Ouvidor.
Vi... vi, e, coisa extraordinária, não desmaiei! tive naquele momento pena de não ser mulher; se eu fosse, teria arranjado um faniquito a propósito.
Enquanto minha mãe e minha irmã desfaziam-se em risadas, saí e corri desesperado à casa da velha de man­tilha. Lembrava-me perfeitamente a rua e o número, cheguei deitando a alma pela boca fora, e... tenho vergonha de dizer..."
— Então que foi?...
— O número que a velha me tinha dado era de uma casa de vigésimos.
— Bravo! logrado pela moça e pela velha... E depois?...
— Ah! depois? depois! é que cinco dias inteiros fui vítima das zombarias de minha terrível irmã, que não cessa de ridicularizar a minha paixão e ainda mais a minha apaixonada!
— Pois tu ainda estás apaixonado?...
— Sábado passado estava até os olhos; agora estou até os cabelos! que queres?... o homem é escravo da mulher que mais martírios o faz sofrer.
— E ficou nisso a história?...
— Não: até aqui o ridículo, até aqui o desespero, a raiva, e não sei que mais; daqui por diante uma luzinha de esperança.
— Acende-a depressa aos olhos dos meus leitores, Constâncio.
— Fui durante a semana todas as noites à casa da família pobre onde pela primeira vez encontrara a des­conhecida: uma noite fui às dez horas, outra às nove, outra às oito e outra às sete, desde domingo até quinta-feira.
— E a bela misteriosa?...
— Foi todas essas noites também; mas sempre saía dez minutos antes da minha chegada, como se alguém a prevenisse dela! além de formosa, porque o há de ser por força, é ainda mais feiticeira!...
— Enganam-te nessa casa também. Constâncio: a desconhecida lá não tornou mais.
— Oh se tornou! deixa sempre sinais da sua visita, disse Constâncio tirando um embrulho do bolso da casaca: olha!
Olhei: Constâncio desatou o embrulho que estava amarrado com uma fita verde; vi cinco embrulhos mais pequenos: no primeiro estava escrito — domingo.
— Eis aqui as pétalas de uma rosa que na noite de domingo ela desfolhou ao pé da cama da velha. Aqui está no embrulho da segunda-feira uma luvazinha de mão de criança que ela esqueceu sobre a cadeira; no embrulho da terça-feira uma fita de sapato que se lhe rebentou; no embrulho da quarta-feira três alfinetes e uma agulha com que estivera tecendo; e no da quinta-feira enfim um lencinho bordado, mas sem trazer marcadas as iniciais do nome de sua dona, que é o que sinto.
— Ah Constâncio! desta vez embrulhaste-me a se­mana toda!
— E o mais é que a bela misteriosa me conhece; falou a meu respeito, disse o meu nome, o de minha mãe e de minha irmã, sabe onde moramos, e asseverou que me ama extremosamente desde muito tempo.
— Bravo! e a bolsa de seda?...
Foi um mono que me pregou a velha da mantilha; a bolsa de seda ela apenas pôde acabar na quinta-feira à noite, e confessou que a destina para a exposição de amanhã.
— Oh! então parabéns!
— Mas o pior é que ela teima em não dar-se a conhecer, e jura que eu nunca lhe verei o rosto: ontem logrou-me como se logra a um tolo; ao mesmo tempo porém inflamou ainda mais as minhas esperanças.
— Conta-me isso,
— Um dos filhos da pobre mulher a quem socorre­mos tem estado quase não quase a fazer viagem; ontem fui fazer-lhe a minha visita às sete e meia horas da noite; até então tinha lá ido às sete, oito, nove, dez horas certas; na sexta-feira comecei a fazer as minhas visitas às meias horas, a ver se me encontrava com a bela da bolsa de seda. Entrei, e logo pelo suave aroma que recendia na sala, conheci que a desconhecida há pouco dali saíra; não me animei a perguntar por ela, porque vi a pobre mãe chegar à sala e entrar chorando na alcova, levando na cabeça uma bacia de pés com água quase fervendo.
Que há? perguntei.
O meu filhinho mais novo que acaba de cair com o cólera.
Tive pena da triste mãe; atirei com a casaca para um lado, arregacei as mangas da camisa e fui dar o escalda-pés à criança. O meu anjo da caridade tinha-me ensinado a ser caridoso.
A mãe resistiu, e eu teimei e venci: já estava ter­minado o pedilúvio, quando senti os passos de alguém que fugia: olhei para trás... era a bela misteriosa, que saindo do interior da casa, desaparecia pela porta da rua, atirando sobre mim um papel.
Em mangas de camisa, como estava, não podia segui-la pela rua; apanhei o papel suspirando, enquanto a infeliz mãe envolvia o filhinho em colchas de lã.
O papel continha um cartuchinho com uma violeta, símbolo da modéstia, e duas linhas com letras escritas provavelmente com a mão esquerda, que diziam assim: "a caridade não se ostenta; por isso me escondo: tu me vês todos os dias, e não me reconheces, nem me hás de reconhecer; amas-me, e eu te amo."
"Fiquei louco de alegria; não dormi toda a noite: fui obrigado a ouvir os gracejos e zombarias de minha irmã desde o almoço até às onze horas da manhã, e fiel à minha promessa ao meio-dia te apareci."
— Mas ficas ainda em dívida.
— Sábado espero pagar-te toda a minha conta.
— Excelentemente! E amanhã?...
— Amanhã terei a minha bolsa de seda, e não me fiarei mais em velhas de mantilha.
Dizendo isto, Constâncio tomou o chapéu e saiu.

CAPÍTULO 3
Confiado na pontualidade do meu amigo Constâncio, eu esperava pelo sábado ao meio-dia para receber a con­tinuação ou a conclusão do romance da bolsa de seda, quando casualmente encontrei esse namorado da bela misteriosa dois dias antes daquele em que contava vê-lo aparecer.
Sabe-se que ultimamente alguns observadores curio­sos da capital descobriram no céu uma estrela brilhante à hora em que se parte o dia, e acharam nesse fato uma novidade que os encanta.
Uma autoridade competente declarou que a estrela que se via era o planeta Vénus, e que não havia nada de extraordinário no fenómeno; mas a despeito de tal declaração não diminuiu o número dos curiosos, que se entregam com vivo interesse à observação da estrela do meio-dia.
E quinta-feira, ao dar o sino de São Francisco de Paula o sinal do meio-dia, passava eu pela Praça da Constituição, e eis que vejo uma coluna cerrada de improvisados astrônomos de olhos fitos no céu.
Aproximei-me, e qual não foi a minha surpresa, quando descobri no meio dos curiosos o meu amigo Constâncio!
Cheguei-me a ele e chamei-o! tempo perdido!... o rapaz estava com o juízo acima do mundo da lua.
— Diabo! exclamou enfim; atrapalhaste-me no ins­tante em que Vênus começava a brincar com as meninas dos meus olhos!
— Constâncio! pois assim te deixas prender pelos encantos de uma Vênus que nunca há de ser tua, e esquecendo talvez a bela misteriosa?...
Apenas pronunciei as palavras bela misteriosa, vi o meu amigo Constâncio mudar de feição e ficar assim com uma cara de noivo logrado, ministro demitido, candidato mamado, ator pateado, que vem tudo a dar na mesma cara. Compreendi logo que o amante da bela misteriosa, tinha feito fiasco.
— Constâncio, disse-lhe eu, adivinho que chegaste ao desfecho do teu romance.
Fez-me com a cabeça um sinal afirmativo.
— Pois então faze de conta que hoje é sábado, e vamos ao caso.
Infandum, regina, jubes renovare...
Não o deixei acabar o verso de Virgílio.
— Tenho a tua palavra: paga-me o que me deves.
— Pois sim... estou preso pela minha palavra... não há remédio...
— Vamos a isso: que tens a dizer-me?...
— Primeiro que tudo digo-te o que já te tenho dito dez vezes: sou um tolo!
— Sim, mas tens consciência: é uma consolação; porém a história, a história?...
— Vais rir... vais zombar de mim!
— Como?... pois a bela misteriosa não disse à velha e depois não te escreveu num bilhete que te amava extremosamente?...
— Disse, e até falou a verdade.
— Pois que mais queres, coração insaciável? Constando soltou um suspiro magoado.
— Ah! já sei: a tua bela misteriosa é alguma velha feia, e...
— Ao contrário, é moça, e bela.
— Já a viste?...
— Vi-a sim; e repito que é moça e bela.
— Mas desenxavida... pretensiosa...
— Também não; é espirituosa e modesta.
— Então agora acertei: depois que a viste e a co­nheces, a tua razão, que é calculista como um agiota, te está de contínuo cantando aos ouvidos aquela velha cantiga que acaba assim:
Casar com mulher sem dote.
É remar contra a maré.
— Ainda te enganas: ela é tão rica como eu.
— Em tal caso dou as mãos à palmatória, e confesso que não decifro o enigma.
Constâncio pensou um momento, e depois disse:
— Visto que sempre terei de te contar o fim da história, tanto faz hoje como sábado.
— Digo-te que estás criando juízo, Constâncio.
— Passeemos.
Dei-lhe o braço: começamos a passear e ele tomou logo a palavra:
— Creio que não preciso dizer-te que domingo não faltei à exposição dos objetos oferecidos pelas senhoras a favor da pobreza. Eu! eu, que estou habituado a levantar-me da cama às dez horas do dia, fui domingo amanhecer à porta da Academia de Belas Artes: jejuei até e pela primeira vez na minha vida, pois saí de casa sem me lembrar de almoçar. O amor e a política, tirando ambos igualmente o juízo ao homem tem um notável ponto de dessemelhança: o amor sacrifica a barriga ao coração, e a política de muita gente é um sacrifício do coração à barriga.
— Não te afastes da questão principal, Constâncio,
— Enfim!... estava lá!... descobri finalmente a minha querida bolsa de seda entre os interessantes objetos expostos! reconheci-a logo... imediatamente: era ela mesma, era a bolsa de seda!
Que rapaz afortunado!
— Foi minha, e havia de sê-lo por força! eu teria preferido àquela simples bolsa de seda à própria Estrela do Sul, ou à Montanha da Luz!
— Parolas de namorado.
— Em uma palavra, achei-me de posse de minha bolsa de seda, e apenas a vi nas minhas mãos, esque­cendo a exposição, e não querendo saber de mais nada, atirei-me para casa a galope.
— A galope?... penso que deves retirar a expressão, Constâncio.
— De modo nenhum: a palavra foi admitida há alguns anos nos mais brilhantes salões; não havia ninguém que pretendesse as honras do grande tom, que não galo­passe nos bailes; por consequência não retiro a expressão e repito, galopei.
— Perfeitamente!
— Entrei por nossa casa entusiasmado e delirante, bradando: "ei-la aqui! ei-la aqui!..." minha mãe e minha irmã acudiram aos meus gritos; mostrei-lhes a minha suspirada bolsa; era de seda verde (tinha a cor da esperança) e primorosamente trabalhada. Minha mãe achou-a perfeita, e a tal minha irmã, depois de examiná-la cuidadosamente, depois de virá-la e revirá-la umas poucas de vezes de dentro para fora e de fora para dentro, tornou-me a entregar a minha encantada bolsa de seda, contentando-se com fazer um bico.
— Um bico!...
— Sim, um momo: as moças quando depois de exa­minar uma obra, um trabalho devido à habilidade e delicadeza de outra moça, não lhe põem defeitos, e acabam fazendo simplesmente um bico, é porque não têm nada, nada absolutamente que dizer.
— Bravo! és um novo La Bruyère.
— Eu tinha jurado não me separar mais nunca da bolsa de seda; guardei-a pois junto do coração no bolso do peito da casaca.
— E foi muito justo que guardasse uma bolsa por cima do coração; porque o coração dos homens bate de ordinário por baixo da algibeira, e a algibeira não é coisa melhor do que uma bolsa.
— Estava enfim senhor da bolsa de seda; faltava-me porém ainda saber quem era a bela misteriosa: na expo­sição eu havia perguntado debalde e em vão procurado descobrir qual a senhora que tinha oferecido a bolsa de seda verde: perdi o meu tempo; ninguém sabia, ou ninguém me quis responder. Não desanimei; no meu galope para casa delineei um plano admirável, que me devia fazer penetrar o segredo que me roubava e escondia o nome de minha apaixonada; jurei a mini mesmo que antes da noite saberia o nome da bela misteriosa, e decifraria a difícil charada; mas de que se haviam de lembrar minha mãe e minha irmã! determinaram ir ver o balão aerostático, e apesar de tudo quanto disse e das observações que fiz teimaram e declararam-me em estado de sítio por todo o resto do dia.
— Sim; mas...
— Fomos ver o tal balão: às 3 horas achávamo-nos instalados nos nossos lugares da primeira ordem e o demoninho de minha irmã que encontrou logo quatro ou cinco camaradas tão demoninhos como ela, ajuntou-se com as amigas e falando todas a um tempo, disseram cobras e lagartos contra a minha bela misteriosa; mas eis que de repente cai a estaca que suspendia o balão, fura-se este, o povo grita e se amotina e...
— E ficas tu em disponibilidade e aproveitas a tarde.
— Qual! espera: no fervor daquela desordem, as moças assustam-se, e minha irmã com as suas amigas, tremendo e gritando, abraçam-se comigo.
— Feliz Constâncio!
— Minha mãe ralha, e eu procuro sossegá-las... mas elas não me deixam senão quando o ruído serena e o povo se resolve a retirar-se: enfim dou parabéns à minha fortuna ao ver-me de novo em casa; despeço-me de minha mãe, e vou sair; lembro-me porém de minha bolsa de seda, e dá-me vontade de beijá-la ainda uma vez: meto a mão no bolso, e...
— E o quê?...
— Oh! tinham-me furtado a bolsa de seda!...
Deveras?..
— É como te digo: aproveitando a desordem que sucedeu à catástrofe do balão, uma mão sutil furtou-me a bolsa de seda! não sei como não morri de desespero!
— E com razão.
— E queres saber quem foi que furtou a bolsa?...
— Quem?...
— Foi ela.
— Ela?
— Sim, a bela misteriosa, ela mesma.
— Estás sonhando, Constâncio.
— Ora!... deixou-me uma prova disso.
— Como?
— Furtando-me a minha querida bolsa, deixou em lugar dela um bilhete escrito com uma letra tão habil­mente descaracterizada que nem o diabo seria capaz de adivinhar a mãozinha que o escreveu.
— E esse bilhete?...
— Continha estas breves palavras: "Furto-te a bolsa de seda, que recorda as nossas loucuras. Uma barreira indestrutível nos separa. Adeus para sempre. Doravante não serei mais a tua bela misteriosa."
E acabou-se a história.
— Oh! antes acabasse aí! ficaria ao menos sendo um belo sonho da minha vida.
— Pois continua ainda?...
— Sim; depois de refletir um pouco, entendi que o bilhete era um novo logro que me estava preparado, e que a bela misteriosa pretendia somente, tirando-me a esperança de tornar a encontrá-la, afastar-me da casa da família pobre, para ela poder ir lá a seu gosto; deter­minei portanto continuar a fazer tudo por vê-la e co­nhecê-la.
— Mas, Constando, tu já podes desconfiar de quem ela seja: olha, provavelmente quem te furtou a bolsa foi uma das moças que se abraçaram contigo; o bilhete fala em barreira indestrutível, o que quer dizer que a bela misteriosa é casada, e por consequência...
— Tudo isso pensei eu; e por fim de contas lembrei-me de que todas as sujeitinhas que me abraçaram andam doidas por achar marido, e que é o mesmo que dizer que todas elas são solteiras.
— Continua a tua história.
Com a minha ideia na cabeça, logo que anoiteceu parti para a casa da família pobre: entrei e vi a velha e seus filhinhos chorando.
Que novidades há?... perguntei: o menino perigou?...
Ao contrário, senhor, respondeu-me a velha; está quase bom, graças aos seus dois benfeitores.
E então por que choram?...
Oh! senhor! é a nossa benfeitora, é o nosso bom anjo, que ontem à noite nos fez as suas despedidas, que não volta mais.
Senti andar-me a cabeça à roda: disse adeus à velha, e saí; eu estava sufocado... precisava de ar.
— Pobre Constâncio!
— Os obstáculos acendiam ainda mais a paixão que me devorava; era-me indispensável tornar a encontrar-me com a bela misteriosa, com essa mulher singular, cujo véu eu quisera queimar com o fogo dos meus olhos, com essa mulher poética, romanesca, vaporosa que se fazia amar sem mostrar o rosto! De súbito parei, e refleti.
Quem sabe?... disse comigo mesmo: quem sabe se as despedidas feitas à velha não são tão mentirosas como as do bilhetinho que me pôs no bolso?... quem sabe se não é ainda o mesmo sistema empregado para me arredar daquela casa?
Voltei para trás e então mais cauteloso, escolhendo as ruas e os becos menos frequentados, e por onde eu nunca passava, tornei a dirigir-me à casa da família pobre.
Quando me achei perto, aproximei-me nas pontas dos pés... cheguei-me à rotula, que por sinal abria-se para dentro, conforme o disposto nas posturas da câmara municipal."
— Ora, Constâncio!... que posturas tão sem pés nem cabeça!... esfriaste a narração com elas.
— Tens razão; deita fora as posturas.
— Pois sim; não façamos caso delas... também ninguém faz. Vamos à história: tinhas chegado à rotula.
— Cheguei... olhei para dentro... e vi...oh!
— O quê?...
— Era ela!...
Quem?... a bela misteriosa?...
Sim; não contava mais comigo, e tinha esquecido todas as precauções que costumava tomar. O seu véu estava deposto sobre uma cadeira ao pé da porta; e ela conversava com a velha, sentada com as costas voltadas para a rua.
— E tu?...
— Eu?... que pergunta! eu estava olhando, e por consequência estava com a cara voltada para dentro.
— Não é isso: que fizeste?...
— Primeiro tomei uma larga respiração... depois empurrei a porta de repente, lancei-me para dentro, e apoderei-me do véu, bradando — enfim!...
— E ela?...
— Soltou um grito de espanto... Voltou-se para ver quem era... esbarrou-se comigo... e...
— E... o quê?...
— E desatou uma risada.
— Uma risada... então?...
— Sou um tolo!... sou um pedaço de asno!
— Mas enfim ela... quem era?...
— Era... sou um pateta!... confesso que sou um bobo!...
— Mas ela... ela...
— Era minha irmã.


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Digitalização, pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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