

A FEITICEIRA
Não.
Não aguento tamanho pouco caso: era o que faltava! E, diante destes olhos,
fazer o que ele fez, minha Senhora da Conceição!
Assim
pensando aí vinha a Benedita — alta, esbelta, mostrando na saia leve de
cambraia a opulência dos quadris de mulata bem fornida. Sacudia a cabeça,
enraivecida, endireitava o corpo e, pousando as mãos na cintura, parava de
repente, em atitude de desafio. Continuava depois a marcha, perseguida pela
mesma ideia má; estrada afora, ia esmagando, sob os sapatinhos de couro cheios
de pelos brancos, as flores e os arbustos. Às vezes, num gesto estouvado,
desmanchava a laçada do lenço de seda cor de ouro fosco, que tão bem lhe
coifava a grenha luzidia.
— Eu
mostro a esse diabo! Há de me pagar o atrevimento! E traçava nervosamente o
xale fino, de cor vistosa, que havia comprado na véspera para assistir à
procissão. Chocalhavam-lhe no pescoço as contas escuras de
"lágrimas-de-nossa-senhora" e as bichas de ouro faiscavam ao sol,
brunindo, com o reflexo, a face afogueada da rapariga.
Na
lombada do morro assomava, a espaços, o cômoro dum cupim, sobre o qual os picapaus
gritavam num assanhamento de voracidade contra os pequenos insetos.
O sol,
a pino, afugentava da grimpa das árvores o passaredo que se escondia no meio
das franças. Entre as folhas dum ingazeiro cochichavam periquitos, mansamente,
preguiçosamente, como invadidos da calma canicular, velando de quando em quando
as pupilas redondas. No meio das folhas secas, farfalhantes, passava um
calango, traçando na rápida corrida um ziguezague de fogo com a pele
azul-dourada do seu dorso.
E
caminhava a Benedita, forgicando planos, tramando contra o desaforado Miguel
que, ainda há pouco, passara por junto dela, fingindo não dar por isso, tão
preocupado parecia com outra conquista. Pois era assim que ele pagava a
dedicação de Benedita, o seu amor quente e caricioso, o seu gosto em lhe
agradar sempre, em vestir-se bem, enfeitar-se toda para lhe aparecer? E ainda
agora mesmo não acabava de fazer o sacrifício de vir de tão longe só para vê-lo
na procissão? Atrevido! Desavergonhado! Ela não tinha sangue de barata para
aturar tanto desaforo. Deixá-lo estar: haveria de pedir conselho a tio Cosme
para enfeitiçar o Miguel. Oh, o tio Cosme era sabido, em coisas de feitiçaria!
E,
assim pensando, chegou à larga porteira que dava entrada ao pátio espaçoso,
fechado por muros pardacentos. Cobria-os uma carapuça de capim seco para
protegê-los contra a ação dissolvente das chuvas. No fundo, erguia-se o sobrado
branco, com uma escada de pedra ao lado.
Benedita
entrara.
Uma
laranjeira, numa das faces do sobrado, derramava ondas de perfume no quarto que
olha para o nascente. Do lado direito, uma porta no muro dava acesso ao pomar,
abrindo quase sobre um rego d'água abundante, murmuroso, arrastando em pequenas
balsas de folha de umbaúba, borboletas de grandes asas oculadas de azul. A água
do rego caia coleando os canteiros e lambendo preguiçosamente as raízes das
mangueiras seculares, das laranjeiras em flor. Debruçada sobre a porta dizente
ao pomar, uma grande árvore viçosa, de compridas folhas encarnadas, atraía um
enxame de besouros, de marimbondos zumbidores e de beija-flores cinzentos, cuja
cauda branca abria-se em tesoura. E os pequenos seres alados, numa embriaguez
de sons e de cores, banqueteavam-se no leite viscoso da árvore. No centro do
largo pátio, um cavalo escarvava a terra, dobrando depois os joelhos e
espojando-se voluptuosamente, à procura de refrigério. Junto ao muro da frente,
velho boi carreiro, de pescoço alçado, orelhas aprumadas e olhos fitos na
lombada do morro fronteiro, mugia, dolentemente, chorando talvez os
companheiros longínquos, despedindo-se talvez, com esse gemido selvagem,
repassado de angústia, dos campos saudosos de Cana-Brava, onde até então
pompeara a sua independência de filho dos sertões. Um joão-de-barro, cheio de
susto, chamava ansiosamente pela companheira, pulando e remexendo-se na porta
de sua casinha, levantada sobre o galho do jenipapeiro, à beira do curral. A
companheira respondia ao longe e continuava a caçar insetos. Ouvia-se também ao
longe o gemido das juritis num chavascal escuro.
Todos
os seres vivos procuravam a sombra, na hora canicular da sesta.
E o sol
a pino requeimava a terra numa grande inundação de luz.
* * *
Junto à
porta que dava para o pomar, quando entardecia, Benedita, de costas para o
pátio, conversava com um preto velho. Era o tio Cosme.
A
carapuça de lã, carregada sobre a fronte, anuviava mais esse rosto adusto,
punha um quê de sinistro naquela fisionomia ao mesmo tempo enigmática e feroz,
burlesca e solene. O olhar torvo, rompendo frio e perverso dos bugalhos
vermelhos, como os dentes afiados rompem da mucosa rubra do jaguar, pairava
sobre a Benedita, agudo e penetrante.
O negro
vestia de algodão de cor fusca. A camisa, trazia-a ele aberta ao peito,
mostrando a pele franzida e riscada de betas furfuráceas. Protegiam-lhe os pés
contra os seixos da estrada alparcas de couro cru. Curvado como estava e
apoiado a um bordão, cuja ponta enegrecida tinha sinais de sangue, certamente
de répteis que inalara pelos caminhos, deixava pender do pescoço, na ponta de
cordões escuros, amuletos de couro, unhas e presas de onça, que livram de
quebrantos e de enfermidades.
Empregava
essas patranhas em serviço de seu ódio aos brancos, de vingança contra os
sofrimentos de sua raça. Espécie de pajé negro, era Cosme o espírito de revolta
entre os seus malungos. Ninguém ousava ofendê-lo, porque um terror
supersticioso, ao qual os próprios fazendeiros não escapavam, opunha uma
verdadeira muralha a qualquer agressão à sua pessoa. Verdadeiro duende no meio
daqueles homens simples, ninguém duvidava da eficácia de suas pragas.
Quando
o preto, juntando os dedos na boca, fazia um beijo, parecia que de seu corpo
iam brotar miríades de malefícios. Gozava de má fama entre os seus brancos, que
já o haviam libertado com a condição de ir se ele para longe. Profundamente
supersticioso, tornava-se o oráculo dos outros negros e da gente miúda, vivendo
sempre com beberagens e práticas estranhas para curar doenças, livrar de má
sorte e despertar o amor. As suas respostas às consultas, os seus conselhos, as
suas receitas eram postas em prática com verdadeiro rigor. Quantas vezes, no
chão frio da velha choça, não se estorceu, escabujando, algum crioulo sacudido
ou mulato pernóstico, aos golpes sucessivos e enérgicos duma corda de fumo,
crendo que uma sova com esse instrumento lhe limparia o corpo de mau-olhado?
Quantas vezes também a sinhá-moça não encontrou no fundo da xícara de café, que
lhe trazia a mucama, um pó estranho que não era outra coisa senão unha raspada?
Cosme
pouco aparecia, vivendo sempre pelas matas. Para as crianças era um verdadeiro tutu de quem fugiam às léguas.
Benedita,
mulata nova e bonita, era cria da casa e da estimação de sinhá. Viveu separada
dos escravos, no meio da família do fazendeiro. De ânimo viril e de natureza
impetuosa, a educação num meio superior à sua condição levantou-lhe algum tanto
o espírito.
Embora
supersticiosa, não sofria a mesma dominação absoluta, a mesma fascinação que o
tio Cosme exercia sobre todos os escravos.
Contudo,
o feiticeiro não deixava de exercer influência sobre o seu espírito. A vida
misteriosa, o caráter sombrio e o torvo aspecto de Cosme geravam-lhe na alma um
certo temor e uma certa fé no feiticeiro. Toda vencida de paixão pelo Miguel,
que, ciente disso e cheio de vaidade, vivia a fazer-lhe pirraça, mais duma vez
lembrou-se dos preparados do tio Cosme. Entanto, só nesse dia, depois de tanto
desaforo, é que se resolveu a falar-lhe, quando o viu encaminhar-se para a sua
palhoça, escondida ali pelas cercanias. O porte esbelto de Benedita, ao lado da
pequenez felina do velho, dava à mulata a semelhança duma veada despercebida,
prestes a ser presa da jaguatirica que prepara o bote, alapardada junto a um
tronco de árvore.
—
Entregue-me o menino, que a coisa se decide — disse finalmente o preto.
— Deixe
desses brinquedos, tio Cosme. O Juquinha foi criado nestes braços, dormindo
sempre na minha cama. A gente não há de comer os filhos, feito sucuriú, nem
deixar alguém matá-los.
Daí a
instantes, enquanto Benedita entrava em casa correndo por acudir a labuta, ele
saía pátio afora, com os beiços flácidos arrepanhados no canto num risinho mau,
tartamudeando:
Negro do quilombo
Grita na cidade:
Viva o rei do Congo,
Nossa majestade!
Viva!
Viva Viva Viva
Viva a majestade.
E,
arrastando o bordão pela terra, monologava:
Menino!
menino! o bracinho tirado do corpo ainda quente, há de mexer tachada de café ao
fogo. Quem o beber, mexido assim, na hora de torrar, perde logo o pouco-caso e
apanha rabicho. E eu tenho encomenda... Deixe ver: uma, duas, três pessoas que
querem remédio para desprezo... A Rosa ainda ontem me falou nisso. Ora! num
instante o Quim larga da outra: é só o tempo de beber o café, das mãos da Rosa.
Eu apronto a coisa: tiro o bracinho do menino... Hei de afogá-lo primeiro: não
custa muito. Quando pego algum nhambu na urupuca, ele nem chega a sofrer: sei
dum lugar no pescoço que é só apertar um pedacinho de tempo — o bichinho morre
logo. Assim o menino: é mesmo que passarinho...
E pouco
a pouco, batendo pausadamente as alparcas no chão duro, foi entrando no mato,
em demanda de sua palhoça.
O
taquari vicejava à sombra do arvoredo, carregando o verde-escuro dos troncos e
espalhando as hastes por todos os lados, numa rede emaranhada.
Das
árvores anciãs caíam, em solenidade hierática, de patriarcas das selvas, longas
barbas de musgo. Daqui e dacolá, em pontes pênseis de cipós, corriam
caxinguelês e saguis ciavam gritozinhos brejeiros.
A
palhoça do negro estava suspensa do barranco de uma grota, ao fim da mata. No
fundo resplandecia o cascalho, umedecido sempre por um olho-d'água que
chorava...
Pequenas
trilhas de cutia desciam ao lacrimal; e um cheiro forte de mata-virgem envolvia
a cabana encoberta de baguaçu escurecido de fumaça. Dentro, na meia luz, jacás
aluados, cônicos, armadilhas contra os ratos silvestres, pendiam do teto, ou
formavam cantoneiras toscas nas paredes de barro seco, áspero, ouriçadas de
pontinhas de capim. Cabaças e cuités de todos os tamanhos, facões quebrados,
arcos velhos de barril, penas de diferentes pássaros, insetos secos, couros e
peles, cascos de tatu e cágado, coisas de mil formas — tudo aclarado pela luz
fumarenta de um fogacho, numa trempe de pedras soltas ao fundo.
Cosme
entrou a resmungar. Procurou a cabeça e as garras de anhuma, pregadas ao
portal, e murmurou, segurando os objetos:
—
Anhuma! pássaro bento, bicho bem mandado! Vais benzer este remédio para a gente
tomar. Tu sabes fazer cruz na água do rio; pois faze cruz aqui.
E com a
cabeça de anhuma fazia cruzes sobre um líquido estranho, dentro de uma cumbuca.
Deu
voltas pelo âmbito da palhoça, onde a luz morrente do sol no ocaso, varando o
teto de palmas, formava figurinhas brancas, esguias, volitando no ar. Regougou
frases incompreensíveis e, curvando mais o corpo, penetrou no escuro, junto à
parede do fundo, onde procurava alguma coisa — gravetos, sem dúvida — que
atirou à trempe de pedras soltas, formando uma colunazinha de fumo.
Ajoelhando-se no chão, debruçou-se nas mãos e soprou, em longos sopros
compassados; pouco depois, erguia-se a labareda, viva, ruidosa, sacudindo no ar
a coma rubra, no meio dos estalidos dos gravetos abrasados.
Levantou-se
de novo e tirou da parede um urucungo, instrumento bárbaro, companheiro único
das vigílias do negro, fonte de sons tristonhos, dolentes, que chamava duendes
e fazia a alma bronca do feiticeiro espanejar-se em asas de morcego.
Sentou-se
no chão, recostado à parede: apoiou o queixo ao joelho e, prendendo, por uma
ponta, no dedo grande do pé, o arco do urucungo, de corda retesada, segurou
esta entre os dentes e pegou a bater-lhe com uma varinha, modulando a toada com
a boca.
Manso e
manso, começaram a evolar-se uns sons estranhos de música primitiva, rude e
simples. O ritmo triste, lutuoso, derramava-se pelo ambiente, dando vida a
formas fantásticas que pareciam agitar-se na sombra.
A luz
vermelha do fogo, há pouco atiçado, esbatia o rosto sinistro do bonzo; e as
feições distendidas, os olhos arregalados, a boca armada de dentes brancos, sarcasticamente
arreganhada, davam ao feiticeiro o tom funambulesco e dramático de gênio mau
das cavernas, curupira das brenhas, cercado de manitós dos mortos malditos.
Fora,
curiangos desferiam pios guturais, rápidos, em cachoeira de notas; grandes
pererecas coaxavam formidavelmente no bojo dos taquaraus; e a noite caía
vagarosa e fatídica como véu pesado sobre um eremita morto.
Pouco a
pouco, as vozes dos vivos, o bulício das aves e das feras na mata, cessou;
então, as almas penadas começaram a peregrinação, em formas impalpáveis,
fugitivas...
Só, no
meio do silêncio das matas, da quietação dos campos, o urucungo gemia, às
crebras pancadas da varinha sobre a corda retesada; crepitava a labareda e os
olhos de Cosme, abertos, parecia esperarem alguém, do meio da noite...
Benedita
vagou pelas matas o dia todo, sem rumo, voltando muitas vezes sobre os seus
passos, a ver se encontrava o feiticeiro com o menino. Que havia de dizer à
Sinhá? Como havia de explicar-lhe o desaparecimento do Juquinha? Maldito Cosme!
É ela que tinha culpa de ter procurado o feiticeiro! Foi castigo de Deus.
Entrava em desespero, pela morte quase certa do pequenino; só se lembrava do
Miguel para lhe atribuir uma parte da desgraça sucedida. Ah, tentação do
inferno! Para que lhe veio à ideia captar à força as simpatias do Miguel? Agora
só lhe restava morrer. Sentia-se culpada da morte do pobrezinho, do Juquinha
que era como se fosse seu filho. Nesse momento tinha esquecido as noites mal
dormidas com os caprichos e as impertinências da criança, para recordar somente
as suas carícias, e o cabelinho louro, os seus olhos azuis e o modo especial de
pronunciar: mãe pleta. Não, não podia
esmorecer! Para que a vida depois disto?
Com os
pés intumescidos de andar, as vestes rotas e a carne dolorida de mil
arranhaduras, saiu do mato ao escurecer, indo dar perto da praia, onde o
córrego, brincando com os muitos seixos de seu leito, encrespava as águas em
pequeninas ondas marulhosas...
A
estrada que levava à cidade se estendia pelo morro completamente deserto,
passando junto ao grande ingazeiro próximo à praia.
Benedita
seguiu por ela: decididamente ia matar-se. Amanhã veriam o seu corpo
dependurado do ingazeiro, à margem da estrada. Talvez lhe atribuíssem, por
isso, a morte ou o sumiço do menino: mas, que importa? Deus sabia de tudo. Com
o favor d'Ele e da Senhora do Rosário, ela seria perdoada. E assim pensando,
andava em direção ao ingazeiro, cuja fronde enorme avultava na meia sombra do
crepúsculo.
De
repente ouviu leves passos junto de si e uma voz, procurando ser carinhosa,
pronunciava o seu nome de mansinho.
A
rapariga voltou-se e exclamou, reconhecendo a pessoa:
— Fuja
de mim, maldito Não me venha tentar agora!
—
Benedita!
Ela,
então, não tendo forças para fugir, olhou em roda de si, procurando uma arma,
uma pedra para arremessar contra quem parecia inimigo tão temeroso.
— Assim
mesmo é que são as coisas. Agora que estou aqui, amotinado, humilde...
—
Miguel! Demônio! Vá para o inferno! Nossa Senhora me valha pelo amor de seu
Santíssimo Filho! Livre-me desse diabo, desse matador!
— Ah,
você já sabe? Foi uma desgraça: mas que havia de fazer?
— E
inda tem boca para dizer isso, meu Deus.
— Pois
é verdade. Ele morreu e eu assisti à sua morte, no meio do mato. Como é que
você soube?
Benedita,
pensando que Miguel se referia à morte do Juquinha, teve um movimento de
repulsão e de horror. Fazendo um esforço supremo, deu um grito terrível e
desatou a correr. O rapaz aparecia-lhe agora como a figura do demônio ou de
algum ente maldito que a feitiçaria do Cosme atirava sobre ela. Miguel
acompanhava-a:
—
Escuta, olha, Benedita; escuta uma coisa só pelo amor de Deus.
Esgotada
de forças, a moça caiu e deixou-se ficar soluçando.
Miguel,
sem ousar tocá-la, ia dizendo com a palavra cortada pelos ofegos que lhe
causara a corrida:
— Olha
Benedita, eu não tive outro remédio. Estava caçando naquele mato de cima, bem
longe. Tinha ouvido as jacutingas darem sinal e ia atrás delas quando ouvi um
chorozinho abafado. Disse comigo: uai! a modo de que é jaguatirica arremedando
passarinho; mas, não... Estive assuntando, assuntando... Depois fui pelo rumo
da voz e dei com ele, com aquele diabo, que Deus perdoe, em pé, no meio do
mato, benzendo uma coisa. Olhei para o chão e vi o menino com os pezinhos
amarrados e as mãozinhas atadas por cima do peito, choramingando.
— Que é
isso, tio Cosme? — gritei.
O negro
levou um susto e fez menção de vir para cima de mim, com um facão de mato.
Levei a arma a cara, quase sem sentir, e fiz fogo. Foi só: pá, terra! O negro
rolou no chão botando sangue pela boca e fazendo cada careta... Meti as mãos na
cabeça; estava perdido, minha Senhora do Rosário! Olhei, então, para o menino a
ver se vivia. Felizmente! Carreguei-o, mas ele estava sem fala. Tinha um
chorozinho muito sumido... Reconheci logo que era o filho do sô Manuel Alves, o
Juquinha...
Benedita
não havia cessado de chorar; mas nesse ponto da narrativa de Miguel, o seu
choro se tornara convulso.
O rapaz
ficou longo tempo calado, de pé, olhando tristemente a mulata.
—
Agora, disse ele, você nunca mais há de levantar os olhos para mim. Eu sou um
matador, tenho de ir para a cadeia... E depois a alma do tio Cosme há de me
perseguir sempre... Ah, como será, meu Deus
Pouco a
pouco Benedita foi se acalmando, até que pôde soerguer-se; e, pondo-se de
joelhos, rezou em voz baixa, conservando-se algum tempo como que em êxtase. Em
seguida:
— E
minha sinhá! — exclamou.
— Ih!
nem é bom falar. Eu não lhe contei o caso como foi. Ela pensava que o Juquinha
se achava com sô Manuel Alves, na roça, e por isso não ficou com muito susto.
Perguntou logo como eu tinha encontrado o menino e onde você estava. Eu disse
que tinha achado o menino dormindo perto do mato, na beira da estrada. E eu não
quis saber de muita conversa, não: meti o arco para fora logo. Depois, fui à
contagem. Foi mesmo por Deus. Se não venho de lá, a esta hora não te encontrava
aqui.
Benedita
levantou-se e caminhou para Miguel. O rapaz recuou um pouco, timidamente. Ela,
num transporte de paixão e de alegria, saltou-lhe ao pescoço, chorando. Entre
lágrimas dizia:
— Olha
em que dá o feitiço... Ah! esse feiticeiro quase me matou. Que castigo, meu
Deus... Eu te conto o que foi... Pensei que o Juquinha tinha morrido... Tio
Cosme me arrebatou das mãos o menino para matá-lo e fazer feitiço com ele...
Valeu-me Nossa Senhora... Havemos de ir a pé à Lapa do Muquém cumprir uma
promessa...
E
Miguel, ao contato daquele corpo macio e tenro, apertava-o fortemente ao peito,
machucando de beijos as faces e os beiços da rapariga, enquanto apontavam no
céu, a medo, as primeiras estrelas.
Passava
no momento uma aragem fresca impregnada do cheiro das matas; e os ramos do
ingazeiro, balouçando ao longe, traçaram no chão estranhas figuras negras.
Súbito
Miguel, ouvindo no meio da praia deserta o berro de um cabrito perdido,
procurando o aprisco, estremeceu:
— Vá
para casa, Benedita; eu te acompanho, eu te apadrinho. Olha a alma do tio
Cosme, na figura de um cabrito, bicho amaldiçoado. Vamos sair daqui.
E,
juntos, se encaminharam para o sobrado da fazenda, que se avistava ao longe com
as janelas iluminadas. A presença da rapariga, moça e bonita, foi arrefecendo o
terror supersticioso que a morte do Cosme infundia em Miguel. Sua vaidade de
homem reagia. Não queria parecer fraco junto da rapariga.
Pelo
caminho Miguel foi contando à Benedita, para distraí-la, a lenda das estrelas —
uma grande boiada, cujo pastor é São Pedro, e que de noite se espalha pelo
azul. Apontava para uma e para outra — vê aquela, coitada, tão sozinha! Parece
perdida da manada... E a boiada luminosa pascia no azul, mansamente...
---
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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