A pesca da baleia
A sereia plangente soou. Ressoou.
Caras acres vieram ao tombadilho. E ao ruído monótono da máquina, que o abalava
da popa a proa numa trepidação contínua, o pequeno vapor costeiro ladeou
cautelosamente filas de vassourinhas que surdiam das ondas à guisa de boias,
enterradas nos bancos de areia. Depois começou a singrar o braço de mar, mais
ligeiro na boa vontade da maré enchente. De ambos os lados, baixios extensos.
Um conhecedor ciceroneava:
— O farol do Pontal do Sul... A
Barra que já foi cidade. Hoje nem povoado... O mar já lhe lambeu a maior parte das
ruas. Lá estão dentro do mar os restos de uma igreja. Acolá, aquilo alvo, são
os ossos de baleias pescadas...
— Pescam baleias por aqui?
— Pescaram. Há muitos anos que
não aparece nenhuma.
O lugarejo tristonho, que a
sanha do velho glutão verde lambia aos bocados, foi ficando atrás. Veio um
trecho de praia despovoado e longo. Contrastando com o rasteiro do resto da
vegetação, ou em claros de areia chocantes como calvícies, havia coqueiros,
muitos coqueiros. A sereia soou de novo mais demoradamente. Chegavam. As caras
acres se refaziam na certeza do fim do suplício. A proa embicou rápido pra
ponte carcomida do modesto porto. Uma atracação demorada. Azáfama trapalhona.
Gritos. Pragas obscenas.
Josefino olhou. Acocoradas ao sol
rijo, umas casinhas dorminhocas espiavam. Os telhados de zinco trêmulos na canícula.
Um cata-vento preguiçoso rodava e gemia. Pela paisagem toda coqueiros. Muitos coqueiros.
Sempre coqueiros... Seu tio, celibatário obeso e negociante de madeiras, aproximou-se
da braços abertos, um grande riso no carão tisnado.
Começaram os dias de
pasmaceira melancólica. O tio morava em frente do braço de mar, cujas águas
subiam e desciam na maré incansável. De raro em raro atracavam a velha ponte
pequenos cargueiros. Lá ficavam alguns dias numa lufa-lufa de marítimos e
estivadores. Chegavam pela estrada de
ferro trens de carga trazendo toros gigantescos ou sacas de café. De cafeeiros
e florestas distantes. Era toda uma riqueza que passava pra os porões dos
navios, aproveitando o trabalho de alguns habitantes e diante da indiferença
dos outros, que viviam de pesca, de indolência. Toda uma riqueza que ia pra
longe sem beneficiar o pobre porto. Quando os cargueiros largavam, pejados até
ao convés, tudo recaía numa suprema inércia, que os gemidos do cata-vento
tornavam mais triste, mais intolerável...
Ele desesperava. Era ali que
viera curar-se do seu nojo da vida, de sua NÁUSEA INFINITA... No entanto!
Percorria os compartimentos da
casa, nervosamente, ou ia deitar-se à sombra da mangueira que havia perto das
ondas. Uma grande ânsia de nirvanizar-se. De identificar-se com a preguiça
ambiente.
Queria agora ter contato com
os habitantes do lugarejo estagnado. Diante da sangueira do poente — um poente
longínquo no baixio da outra margem — ia largando um iate esguio. Lento lento...
No fundo da paisagem a mulher de preto agitava um lenço. Ele a olhava de longe.
No crepúsculo triste aquela saudade... Foi andando. A mulher foi-se definindo vulgaríssima.
O vestido preto desbotado e manchado. Os tamancos de veludo preto sujo com
bordados vermelhos. Mas o rosto moreno e bonito.
— Tem muita saudade dele?
— Dele quem?
— Do embarcadiço.
— Se “tienho”... Ora! depois dele
vem outro...
Rodou agilmente num dos saltos
dos tamancos. Enfrentou-o sorrindo os dentes claros em que havia bem no meio
uma pequenina cárie.
— Quem sabe se não será você?
Afastou-se num riso. O corpo esguio
não ondulava esguio e forte. De sobriedade masculina. A desenvoltura cínica não
causara repulsa a Josefino. Ali não havia alma...
A noite caía sempre maciamente
depois do dia fornalha. De todos os lados o luciluzir silencioso dos vaga-lumes.
Nenhum frêmito de asa retardada no espaço. Percebia-se o esmaecer gradativo da
luz. Algum ruído que se ouvisse era como uma ordem de silêncio, misteriosa e
imperativa. De silêncio fecundo. De benfazejos esmorecimentos.
Irrompia nos mangues efêmeros
da maré plena a orquestração dos sapos, que se calariam quando a maré baixasse.
O sapo ferreiro batia o compasso em tantãs contínuos e cantantes. Noite adentro,
nevermorescamente, uivos, urros, ladridos, mugidos, gemidos...
Oh! as noites infinitas do seu
degredo voluntário... Insônia. Abre a janela. O vento traz-lhe o cheiro da
maresia e o marulho das ondas. Não pode dormir sufocado pelo calor. Além do
calor, há alguma coisa que não deixa ele dormir. Ha pouco um rumor ergueu-lhe
as pálpebras. Rumor? Não. Coisa alguma escutara. Nada sentira materialmente.
Tinha sido qualquer coisa indefinível que o fizera erguer-se repentinamente,
como a um incubo medievo... A tenebrosa época dos íncubos tão longe!
Entretanto...
À esquina o lampião está
palpebrando morrente. Nas outras esquinas, os outros já apagaram. Os sapos
incansáveis nos mangues como num desespero. E o ruído rascante rouquenho do
moinho enferrujado a cada lufada... Os
habitantes dormem, indolentemente resignados. Está só. Está consigo mesmo.
Nasce-lhe no íntimo a absurda certeza de que alguma coisa misteriosa vai
acontecer irremediavelmente...
Vivia as noites num estado
horrível. A estagnação infantilizava-lhe o espírito exausto. Voltavam temores
dormidos das assombrações da meninice...
Às vezes a mulher cínica
surgia. Ouvira que se chamara Maria Araponga. Passava por ele cheirando a ervas
selvagens e sempre rindo a pequenina cárie...
Apesar de tudo, só desejava
continuar vegetando ali mesmo. Mas numa casinha sua. Se não pudesse
materializar-se como o tio, amigo das piadas de Bocage, Emílio de Menezes e
Rodrigo Gesteira, mandaria vir os seus livros. Compraria outros. Pouco dinheiro
lhe bastaria. Mas onde arranjá-lo?
O veleiro Itã, chegando por
uma clara madrugada, trouxe a insólita notícia de ter sido vista uma baleia
aboiando fora da barra. Era um meio... O tio emprestou-lhe o dinheiro. Sentia-se
agora outro, azafamado, quase alegre, a contratar os homens. Iria com eles.
Desejava apreciar de perto — sofrer o
arrojo dos pescadores de sua
baleia...
O tio procurou dissuadi-lo. Explicou-lhe
à maneira audazmente primitiva daquela pescaria excepcional. Cada qual por si,
caso a baleeira adernasse. E se de braços com a morte, tentasse apegar-se a
alguém, este se defenderia a socos. Josefino respondeu num sorriso calado. Que
lhe valia a vida?
A baleeira foi-lhe parecendo
cada vez mais frágil enquanto o pequeno veleiro que a rebocara, retornava um
pedaço de mar para lançar ferro à espera. A impressão de um crescente
isolamento... O veleiro fixou se no horizonte inquieto. Primeiro um ponto
branco, pequeno, pequeníssimo, que logo se desfez — a vela logo amainada.
Depois um ponto escuro, menor ainda, minúsculo, quase invisível.
Os remeiros fizeram alguns
movimentos maquinais e morosos, como invadidos pela mesma preguiça que azeitava
o mar. E abandonaram os remos inúteis ainda. Todos silenciavam pacientemente.
Deixavam repousar os músculos pra melhor aprestá-los à hipertensão do iminente arrojo.
Cabeceavam molemente ao balanço olhando as vagas. De vez em quando, cansados da
imobilidade, respiravam fundamente. Os corpos rijos buscavam novas posições
repousadas. Embora afeitos à pesca, a empresa raríssima comovia-os. E os olhos
permaneciam fixos, como se esperassem que a força unânime de um só olhar ansioso
fizesse vir à tona o cetáceo.
Josefino porém impacientava-se.
Começava a sentir o cheiro desagradável dos corpos tão provimos, castigados
pelo sol matutino, já impiedoso. Pôs-se também a olhar as ondas. A oscilação
parecia-lhe marcar um escorrer viscoso de tempo, ao influxo de uma pêndula gigantesca
que se movesse na assonia submarina...
Os remos num ritmo heroico!
João da Cruz o negro arpoador agigantando-se desmesuradamente na proa meneou
sobre o corpo de aço o arpão de aço... O esforço do lançamento diminuiu a
arrancada... O negro teve o grito selvagem da vitória:
— ARPOADA!
O cabo armado ao arpão fugia
na fenda feita na proa rápido raspando rr
fugindo fugindo até! O barco frágil arrastado numa esteira do sangue... Os
ouvidos na vertigem do vento! A cada rabanada irritada de monstro os homens esvaziando
o barco inundado! esvaziando como máquinas! COMO MÁQUINAS!
— Corta o cabo! Corta!
Revoltava-se em vão contra o
pavor imenso, incoercível, estúpido... A coragem do mestre ironizou
asperamente:
— Deixa de besteira, moço!
— Corta!
— A baleia está no gato?
Um outro homem decifrou com
absurda tranquilidade:
— O senhor paga a baleia?
Sem resposta ele aniquilou-se
no fundo encharcado. Por que aquela covardia? Podia morrer, morrer... E os
séculos no vento!
— Vai encurtando o cabo... Ela
não pode resistir muito tempo ainda. Prepara a lança, João da Crus!
— Acho que é cedo. O bicho
está duro!
Mas a onda repentina
avolumando-se sobre! E o pavor infinito...
— Corta a corda pelo amor de
Deus! Eu pago!
O mestre tirou a faquinha de
bordo e golpeou o cabo reteso. Os olhos desapontados seguiram a ponta desaparecer...
Tinham sido arrastados durante
horas pra longe sem rumo. Olharam pra os lados. Horizontes movediços vazios já
na tarde... Levantaram do fundo o pequeno mastro com a vela molhada. Encaixaram
o mastro e abriram a vela, pra que o sol quase horizontal a secasse. E começaram
a navegar vagarosamente, ao influxo do vento brando na vela pesadíssima, numa
incerteza. Onde estaria o veleiro?
Noite adentro, os homens
foram-se despindo. Tinham queimado tudo para chamar o veleiro. Queimavam agora
as vestes. Espectralizavam-se gigantescos e nus aos bruxuleios. O silêncio do
mar alucinadamente calmo ganhou-os. E ele ausente no fundo encharcado...
Só pela madrugada eles
enxergaram a vela branca do veleiro que navegava também incerto à procura.
O olhar do tio obeso teve um
brilho de cólera e amorteceu num desprezo. A mão rude botava o dinheiro na
mesa. O preço da baleia... Vagarosamente. Com a lentidão de um suplício chinês...
Lá fora a alma do lugarejo estagnado
escancarava-se numa gargalhada homérica.
E a mesma noite sem remédio
nos mesmos lampiões palpebrando no mesmo cata-vento gemendo...
Perambular na sombra seria
melhor do que ficar no quarto enorme, cujas paredes dançavam ao clarão inquieto
da lamparina. A sombra nirvanizadora... O lampião da esquina extinguiu-se.
Outros luciluzem agônicos. Os coqueiros crescendo nos relâmpagos que feerizavam
os horizontes. O céu sem estrelas...
Ia num S de resistência contra o vento úmido. O vento sul começara
rijamente, anunciando borrascas na alto mar. Era o vento que vinha da sua
cidade longe. Que passara pelos alpendres das trepadeiras. Pelo pequeno jardim
com rosas...
Seguia a estrada de ferro.
Aqueles trilhos conduziam a outros formigamentos da mesma humanidade odiosa...
— Que diabo! Você não enxerga?
Um relâmpago iluminou-os. A
Araponga de preto gargalhou um sarcasmo. E na sua voz quebrada:
— Ah! É você... Toda gente
está-se rindo de você... E medrosos comigo... nada!
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Na tempestade desabada o trem parava
ESMIGALHADORAMENTE...
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Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)
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