5/17/2019

A pesca da baleia (Conto), de João Alphonsus


A pesca da baleia

A sereia plangente soou. Ressoou. Caras acres vieram ao tombadilho. E ao ruído monótono da máquina, que o abalava da popa a proa numa trepidação contínua, o pequeno vapor costeiro ladeou cautelosamente filas de vassourinhas que surdiam das ondas à guisa de boias, enterradas nos bancos de areia. Depois começou a singrar o braço de mar, mais ligeiro na boa vontade da maré enchente. De ambos os lados, baixios extensos. Um conhecedor ciceroneava:

— O farol do Pontal do Sul... A Barra que já foi cidade. Hoje nem povoado... O mar já lhe lambeu a maior parte das ruas. Lá estão dentro do mar os restos de uma igreja. Acolá, aquilo alvo, são os ossos de baleias pescadas...

— Pescam baleias por aqui?

— Pescaram. Há muitos anos que não aparece nenhuma.

O lugarejo tristonho, que a sanha do velho glutão verde lambia aos bocados, foi ficando atrás. Veio um trecho de praia despovoado e longo. Contrastando com o rasteiro do resto da vegetação, ou em claros de areia chocantes como calvícies, havia coqueiros, muitos coqueiros. A sereia soou de novo mais demoradamente. Chegavam. As caras acres se refaziam na certeza do fim do suplício. A proa embicou rápido pra ponte carcomida do modesto porto. Uma atracação demorada. Azáfama trapalhona. Gritos. Pragas obscenas.

Josefino olhou. Acocoradas ao sol rijo, umas casinhas dorminhocas espiavam. Os telhados de zinco trêmulos na canícula. Um cata-vento preguiçoso rodava e gemia. Pela paisagem toda coqueiros. Muitos coqueiros. Sempre coqueiros... Seu tio, celibatário obeso e negociante de madeiras, aproximou-se da braços abertos, um grande riso no carão tisnado.

Começaram os dias de pasmaceira melancólica. O tio morava em frente do braço de mar, cujas águas subiam e desciam na maré incansável. De raro em raro atracavam a velha ponte pequenos cargueiros. Lá ficavam alguns dias numa lufa-lufa de marítimos e estivadores. Chegavam pela  estrada de ferro trens de carga trazendo toros gigantescos ou sacas de café. De cafeeiros e florestas distantes. Era toda uma riqueza que passava pra os porões dos navios, aproveitando o trabalho de alguns habitantes e diante da indiferença dos outros, que viviam de pesca, de indolência. Toda uma riqueza que ia pra longe sem beneficiar o pobre porto. Quando os cargueiros largavam, pejados até ao convés, tudo recaía numa suprema inércia, que os gemidos do cata-vento tornavam mais triste, mais intolerável...

Ele desesperava. Era ali que viera curar-se do seu nojo da vida, de sua NÁUSEA INFINITA... No entanto!

Percorria os compartimentos da casa, nervosamente, ou ia deitar-se à sombra da mangueira que havia perto das ondas. Uma grande ânsia de nirvanizar-se. De identificar-se com a preguiça ambiente.

Queria agora ter contato com os habitantes do lugarejo estagnado. Diante da sangueira do poente — um poente longínquo no baixio da outra margem — ia largando um iate esguio. Lento lento... No fundo da paisagem a mulher de preto agitava um lenço. Ele a olhava de longe. No crepúsculo triste aquela saudade... Foi andando. A mulher foi-se definindo vulgaríssima. O vestido preto desbotado e manchado. Os tamancos de veludo preto sujo com bordados vermelhos. Mas o rosto moreno e bonito.

— Tem muita saudade dele?

— Dele quem?

— Do embarcadiço.

— Se “tienho”... Ora! depois dele vem outro...

Rodou agilmente num dos saltos dos tamancos. Enfrentou-o sorrindo os dentes claros em que havia bem no meio uma pequenina cárie.

— Quem sabe se não será você?

Afastou-se num riso. O corpo esguio não ondulava esguio e forte. De sobriedade masculina. A desenvoltura cínica não causara repulsa a Josefino. Ali não havia alma...

A noite caía sempre maciamente depois do dia fornalha. De todos os lados o luciluzir silencioso dos vaga-lumes. Nenhum frêmito de asa retardada no espaço. Percebia-se o esmaecer gradativo da luz. Algum ruído que se ouvisse era como uma ordem de silêncio, misteriosa e imperativa. De silêncio fecundo. De benfazejos esmorecimentos.

Irrompia nos mangues efêmeros da maré plena a orquestração dos sapos, que se calariam quando a maré baixasse. O sapo ferreiro batia o compasso em tantãs contínuos e cantantes. Noite adentro, nevermorescamente, uivos, urros, ladridos, mugidos, gemidos...

Oh! as noites infinitas do seu degredo voluntário... Insônia. Abre a janela. O vento traz-lhe o cheiro da maresia e o marulho das ondas. Não pode dormir sufocado pelo calor. Além do calor, há alguma coisa que não deixa ele dormir. Ha pouco um rumor ergueu-lhe as pálpebras. Rumor? Não. Coisa alguma escutara. Nada sentira materialmente. Tinha sido qualquer coisa indefinível que o fizera erguer-se repentinamente, como a um incubo medievo... A tenebrosa época dos íncubos tão longe! Entretanto...

À esquina o lampião está palpebrando morrente. Nas outras esquinas, os outros já apagaram. Os sapos incansáveis nos mangues como num desespero. E o ruído rascante rouquenho do moinho enferrujado a  cada lufada... Os habitantes dormem, indolentemente resignados. Está só. Está consigo mesmo. Nasce-lhe no íntimo a absurda certeza de que alguma coisa misteriosa vai acontecer irremediavelmente...

Vivia as noites num estado horrível. A estagnação infantilizava-lhe o espírito exausto. Voltavam temores dormidos das assombrações da meninice...

Às vezes a mulher cínica surgia. Ouvira que se chamara Maria Araponga. Passava por ele cheirando a ervas selvagens e sempre rindo a pequenina cárie...

Apesar de tudo, só desejava continuar vegetando ali mesmo. Mas numa casinha sua. Se não pudesse materializar-se como o tio, amigo das piadas de Bocage, Emílio de Menezes e Rodrigo Gesteira, mandaria vir os seus livros. Compraria outros. Pouco dinheiro lhe bastaria. Mas onde arranjá-lo?

O veleiro Itã, chegando por uma clara madrugada, trouxe a insólita notícia de ter sido vista uma baleia aboiando fora da barra. Era um meio... O tio emprestou-lhe o dinheiro. Sentia-se agora outro, azafamado, quase alegre, a contratar os homens. Iria com eles. Desejava apreciar de perto — sofrer o arrojo dos pescadores de sua baleia...

O tio procurou dissuadi-lo. Explicou-lhe à maneira audazmente primitiva daquela pescaria excepcional. Cada qual por si, caso a baleeira adernasse. E se de braços com a morte, tentasse apegar-se a alguém, este se defenderia a socos. Josefino respondeu num sorriso calado. Que lhe valia a vida?

A baleeira foi-lhe parecendo cada vez mais frágil enquanto o pequeno veleiro que a rebocara, retornava um pedaço de mar para lançar ferro à espera. A impressão de um crescente isolamento... O veleiro fixou se no horizonte inquieto. Primeiro um ponto branco, pequeno, pequeníssimo, que logo se desfez — a vela logo amainada. Depois um ponto escuro, menor ainda, minúsculo, quase invisível.

Os remeiros fizeram alguns movimentos maquinais e morosos, como invadidos pela mesma preguiça que azeitava o mar. E abandonaram os remos inúteis ainda. Todos silenciavam pacientemente. Deixavam repousar os músculos pra melhor aprestá-los à hipertensão do iminente arrojo. Cabeceavam molemente ao balanço olhando as vagas. De vez em quando, cansados da imobilidade, respiravam fundamente. Os corpos rijos buscavam novas posições repousadas. Embora afeitos à pesca, a empresa raríssima comovia-os. E os olhos permaneciam fixos, como se esperassem que a força unânime de um só olhar ansioso fizesse vir à tona o cetáceo.

Josefino porém impacientava-se. Começava a sentir o cheiro desagradável dos corpos tão provimos, castigados pelo sol matutino, já impiedoso. Pôs-se também a olhar as ondas. A oscilação parecia-lhe marcar um escorrer viscoso de tempo, ao influxo de uma pêndula gigantesca que se movesse na assonia submarina... 

Os remos num ritmo heroico! João da Cruz o negro arpoador agigantando-se desmesuradamente na proa meneou sobre o corpo de aço o arpão de aço... O esforço do lançamento diminuiu a arrancada... O negro teve o grito selvagem da vitória:

— ARPOADA!

O cabo armado ao arpão fugia na fenda feita na proa rápido raspando rr fugindo fugindo até! O barco frágil arrastado numa esteira do sangue... Os ouvidos na vertigem do vento! A cada rabanada irritada de monstro os homens esvaziando o barco inundado! esvaziando como máquinas! COMO MÁQUINAS!

— Corta o cabo! Corta!

Revoltava-se em vão contra o pavor imenso, incoercível, estúpido... A coragem do mestre ironizou asperamente:

— Deixa de besteira, moço!

— Corta!

— A baleia está no gato?

Um outro homem decifrou com absurda tranquilidade:

— O senhor paga a baleia?

Sem resposta ele aniquilou-se no fundo encharcado. Por que aquela covardia? Podia morrer, morrer... E os séculos no vento!

— Vai encurtando o cabo... Ela não pode resistir muito tempo ainda. Prepara a lança, João da Crus!

— Acho que é cedo. O bicho está duro!

Mas a onda repentina avolumando-se sobre! E o pavor infinito...

— Corta a corda pelo amor de Deus! Eu pago!

O mestre tirou a faquinha de bordo e golpeou o cabo reteso. Os olhos desapontados seguiram a ponta desaparecer...

Tinham sido arrastados durante horas pra longe sem rumo. Olharam pra os lados. Horizontes movediços vazios já na tarde... Levantaram do fundo o pequeno mastro com a vela molhada. Encaixaram o mastro e abriram a vela, pra que o sol quase horizontal a secasse. E começaram a navegar vagarosamente, ao influxo do vento brando na vela pesadíssima, numa incerteza. Onde estaria o veleiro?

Noite adentro, os homens foram-se despindo. Tinham queimado tudo para chamar o veleiro. Queimavam agora as vestes. Espectralizavam-se gigantescos e nus aos bruxuleios. O silêncio do mar alucinadamente calmo ganhou-os. E ele ausente no fundo encharcado...

Só pela madrugada eles enxergaram a vela branca do veleiro que navegava também incerto à procura.

O olhar do tio obeso teve um brilho de cólera e amorteceu num desprezo. A mão rude botava o dinheiro na mesa. O preço da baleia... Vagarosamente. Com a lentidão de um suplício chinês... 
  
Lá fora a alma do lugarejo estagnado escancarava-se numa gargalhada homérica.

E a mesma noite sem remédio nos mesmos lampiões palpebrando no mesmo cata-vento gemendo...

Perambular na sombra seria melhor do que ficar no quarto enorme, cujas paredes dançavam ao clarão inquieto da lamparina. A sombra nirvanizadora... O lampião da esquina extinguiu-se. Outros luciluzem agônicos. Os coqueiros crescendo nos relâmpagos que feerizavam os horizontes. O céu sem estrelas...

Ia num S de resistência contra o vento úmido. O vento sul começara rijamente, anunciando borrascas na alto mar. Era o vento que vinha da sua cidade longe. Que passara pelos alpendres das trepadeiras. Pelo pequeno jardim com rosas...

Seguia a estrada de ferro. Aqueles trilhos conduziam a outros formigamentos da mesma humanidade odiosa...

— Que diabo! Você não enxerga?

Um relâmpago iluminou-os. A Araponga de preto gargalhou um sarcasmo. E na sua voz quebrada:

— Ah! É você... Toda gente está-se rindo de você... E medrosos comigo... nada!

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Na tempestade desabada o trem parava ESMIGALHADORAMENTE...

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Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)

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