5/17/2019

Sardanápalo (Conto), de João Alphonsus



Sardanápalo

Sou farmacêutico, modesto, de bairro pobre, mas assim como o senhor me vê, apenas bem mais moço e mais sonhador, já tive minhas fumaças de literato, e gozei mesmo de certo renome de poeta estudantil, nos tempos em que cursei farmácia em ouro Preto. Meu Ouro Preto das boemias nos casarões infinitos cheios de quartos e de tradições, com percevejos de barbas multisseculares! Velha cidade que se conserva sempre a mesma, dentro deste século onde tudo mudou. Mas não falemos do meu Ouro Preto de todos os tempos, uma vez que a minha intenção é lhe explicar porque me arrepiei todo à passagem um simples gato pela porta da minha farmácia, a esta hora noturna. Não é nenhuma superstição minha. Somente não gosto de gatos, ou melhor, já gostei excessivamente de gatos, naquele tempo em que me tinha na conta de poeta e levava declaradamente uma vida de intelectual. Baudelaire e os gatos! Me convencera de que era espiritual ter desses bichanos no meu quarto de estudante, bicho amigo dos poetas, dos lunáticos. Influência dos vates franceses, de suas elegâncias esquisses, com pulgas... Eu tinha gato enorme no meu quarto de estudante, bem alimentado, preguiçoso e inútil, que batizara pomposamente, parnasianamente, de Sardanápalo. Imagine o senhor, Sardanápalo, hein! E mesmo pra rir... Assunto tenebroso para mim, gatos. A questão não é propriamente nem deixar de gostar deles. E que me sugerem qualquer coisa como remorso, ou remordimento de consciência, presa este Sardanápalo que se tornou uma mancha negra na minha vida... Bem alimentado, o meu bichano não descia de sua condição especial de gato de poeta para comer os ratos que transitavam pela nossa república. Afugentava-os, às vezes, por desfastio ou talvez respeito tradição de família. Era um gato preto, como convinha a um cultor das boas letras, que já lera Poe traduzido por Baudelaire. Preto e gordo. E
lerdo. Tão gordo e lerdo que certa altura observei que ia perdendo inteiramente as qualidades características da raça, que são em suma o ódio de morte aos ratos. Já nem os afugentava! Os ratos de Ouro Preto são também dignos e solenes e — não ria! — tradicionalistas... descendentes de outros ratos que naqueles mesmos casarões presenciaram acontecimentos importantes de nossa história... No sobrado do desembargador Tomás Antônio Gonzaga, imagine o senhor uma reunião dos sonhadores inconfidentes, com os antepassados daqueles ratos a passearem pelo sótão ou mesmo pelo assoalho por entre as pernas dos homens absortos na esperança da independência nacional! E depois, os ancestres daqueles roedores que eu via agora deslizar sutilmente no meu quarto podiam ter subido pelo poste da ignomínia colonial, onde estava exposta a cabeça do Tiradentes! E quando as órbitas se descarnaram ignominiosamente, podiam até ter penetrado no recesso daquele crânio onde verdadeiramente ardera sem literatura, com simplicidade do heroísmo, febre nacionalista... São pensamentos que me vinham daquela ocasião, mas nem por isso desculpavam falta de caráter em que ia chafurdando o meu Sardanápalo, a tal ponto que os ratos começaram trafegar livremente na própria canapé em que ele repousava a sua existência sem qualquer interesse. Via-o entreabrir um dos olhos, espiá-lo uns segundos, continuar a dormir. Enquanto isto, os meus livros, até os meus caros livros dos poetas amados, apareciam roídos! Principiei então a diminuir-lhe os alimentas, devagar mas metodicamente ao mesmo tempo que Sardanápalo voltava mais ou menos a ser gato, saindo de súbito de sua madorna habitual para assustar com um tapa ao rato ousado que lhe passasse por perto. Não os deixava passar fome, o que não estava nos meus planos: desejava apenas que, apesar de bichano literário a que até já dedicara um soneto em alexandrinos, ou em razão disto, ele cumprisse uma função maneira de policiar os meus bens intelectuais contra a ação subversiva dos roedores. Porém a despeito do racionamento, aliás um tanto generoso, eis que aparece parcialmente destruído um dos cadernos dos meus próprios versos. Olhei para Sardanápalo com desprezo, com raivosa insistência: o inútil supôs que se tratasse de um olhar de carinho mais prolongado e veio agradecer-mo roçando pelas minhas pernas! Acabei coçando-lhe a cabeça, sorrindo diante daquele caso sem remédio, e saí para a rua, para a noite que iria terminar com uma daquelas ceias responsáveis pela minha dispepsia atual... Já pelas tantas, ao voltar para casa me lembrei dos versos roídos e resolvi não levar pra ele, como sempre fazia, um pedaço de linguiça da ceia. À última hora, cedendo ao bom coração, reuni somente alguns pedaços de pão largados sobre a mesa. Quando abri a porta Sardanápalo saltou do canapé, festivo e interesseiro: lhe atirei as migalhas num gesto de desdém e caí pesadamente na cama... Despertei com uma estranha barulhada no quarto, uma cadeira que tombava como uma bomba sobre as tábuas do soalho, som que retumbava nos cômodos vazios e abandonados do andar de baixo, de mistura com o chiar assustado de um rato. A pálida madrugada ouro-pretana, ainda em começo, entrava pela minha vidraça perto do céu, para me revelar Sardanápalo sentado no meio do aposento pousando uma das mãos sobre um rato enorme. Seria uma demonstração de sua eficiência, um esforça para se reabilitar? Naquele instante, parecia tão possuído pelo gozo do apresamento que não deu a mínima importância à minha atenção pelo seu triunfo. Retirou a pata de cima presa e deitou em frente dela, preguiçosamente, como numa boa disposição para dormir ou pelo menos para cochilar. Segundos decorreram e de repente a rato disparou em fuga, sem conseguir atingir senão uma pequena distância, menos da largura de uma tábua, pois Sardanápalo deu um salto, abocanhou-o trazendo-o à posição primitiva, humilde, anulado, perto do seu focinho, e se espichou com estudada displicência junto dele. Não o abocanhou propriamente, o que dá a impressão de violência: manteve-o delicadamente entre os dentes, sem magoá-lo, forçando-o a retornar ao ponto de partida. Não era a primeira vez que eu presenciava aquela cena entre um gato e um rato. Mas era a primeira vez que via meu Sardanápalo agir assim, depois de ter sido arrancado do sono da madrugada, naquela hora confusa e indistinta, sem que meu corpo abandonasse a posição do sono, nem mesmo o agradável torpor das células meio adormecidas, até com a cabeça no travesseiro para seguir o desenvolvimento dos fatos... Dentro de alguns minutos, só existíamos no mundo, no universo, no espaço e no tempo, eu, o gato e o rato. Sardanápalo se pôs a sufocar com pequenos golpes das patas dianteiras a menor tentativa de movimento do seu prisioneiro. Depois dos inumeráveis golpes delicados, quase gentis, que não o magoavam, deu início ao combate simulado. O rato, de tão deu início ao combate simulado. O rato, de tão insignificante, parecia ter diminuído de tamanho. Pobre, mísero ratinho que se entregou a movimentos desesperados que facilitaram a simulação da luta: sem ligar mais para a insistente delicadeza com que as patas do gato lhe ordenavam que estivesse quieto, procurava fugir-lhes a toda força, e Sardanápalo caía sobre ele, jogava-o no ar e se punha rapidamente de costas para apará-lo nas quatro patas, embolava-se com ele e vinham rolando juntos, como se o ratinho estivesse mesmo reagindo, até perto da cama; e voltavam rolando... Houve números de acrobacia quando Sardanápalo, de costas, manteve o animalzinho no ar sobre as patas, uma, duas, cinco vezes... Em seguida, permitiu que o rato, cada vez mais diminuído, medisse em correria a extensão do quarto, e foi saltando por cima dele, obliquamente, da cauda para a cabeça, de modo que o fugitivo tinha de momento a momento o seu caminho impedido e mudava constantemente de direção, desorientado e desesperado. Parecia mesmo brincadeira, mas nós três sabíamos que não era. O meu gato cumpria fielmente o imperativo tradicional de raça contra raça, ou de espécie contra espécie, com todo o abuso da superioridade física, da supremacia do tamanho e da agilidade. A madrugada se tornara franca e a claridade descendo das penedias dava absoluta nitidez ao desenrolar natural daquelas crueldades impregnadas de elegância e se gentileza. Eu já não estava deitado e sim sentado, sem me importar com o frio (devia ter febre, parece-me hoje), as pernas pendendo da cama velha e alta, sem perder o mínimo detalhe de tudo, insensatamente entregue à observação da extrema variedade de atos. Mais do que entregue, — dominado eu mesmo por uma crueldade abstrata, com um sentimento bizarro que se me afigurava orgulho de ser dono de Sardanápalo, partícipe indireto mas voluntário daquele suplício que não acabava nunca!... O senhor conhece um conto de Villiers de Lisle Adam, o Suplício da Esperança? Não? Um inquisidor determina que se suplicie uma de suas vítimas, como último recurso para tentar a salvação de sua alma, com a esperança de poder fugir da prisão; o homem descobre que a porta do calabouço foi esquecida com a fechadura aberta, empurra-a e sai pelos intermináveis corredores; os frades passam por ele, sem vê-lo em algum cotovelo de muro em que procurava se ocultar; um deles, que vem discutindo com outro sobre alto problema teológico, pousa sobre o fugitivo o olhar distraído, e o fugitivo se imobiliza num calafrio gelado, dentro de um desvão de parede; mas ambos distraidamente se afastam repetindo, entre outras palavras pias, o nome de Cristo; o fugitivo já está vendo a porta de saída, lá fora há luz e ar; se aproxima da liberdade, quando se sente abraçado pelo próprio inquisidor, que o chama de filho e lhe diz para não fugir dali, para não fugir de Cristo... É assim que guardei a recordação do conto, lido naquele tempo. No entanto, naquela hora estranha, me lembrei apenas daquele sistema original de suplício revelado ou imaginado pelo contista, e Sardanápalo — não ria! — também se lembrou de aplicá-lo, ou melhor, eu lhe transmiti o meu pensamento... O meu gato se deitava nonchalantemente e permitia que o prisioneiro corresse quanto que podia (já estava meio titubeante e exaurido, embora sem um arranhão), até no ângulo do quarto onde havia um buraco de rato que eu entupia vãmente com jornais; já estava perto do buraco enxergando a abertura sombria, prelibando a escuridão e a estreiteza dos meandros onde nenhum gato jamais entrara ou entraria, a liberdade na sombra... já se aproximava do buraco, já estava a poucos centímetros dele! E o algoz em dois pulos alcançava-o e o trazia novamente na boca para o ponto de partida. Aliás, tudo aquilo, desde o começo, era puro suplício da esperança, com todas as variações imagináveis, cada variação repetida uma, duas, cinco, dez vezes... E eu sentado na cama acompanhando-as, empregando nervos e músculos em repetir até certo ponto aquelas diversões, gato eu mesmo, sim gato eu mesmo, não ria! Possuído por um entusiasmo cruel, torcendo como fazem os assistentes das pugnas esportivas de hoje... O rato já era um frangalho, martirizado com tal habilidade que não se lhe via o menor sinal de sangue. Se lhe acontecia, a um golpe de Sardanápalo, virar de costas, permanecia de costas agitando as patinhas e procurando apoio no infinito para tornar à posição normal, sem ânimo e sem forças... Também, já estávamos no fim. Sim, já estávamos no fim, eu e o meu gato contra aquele animalzinho quase sem alento de vida e que já nem se movia a novos e derradeiros tapas das patas. Talvez ainda pudesse se mover um pouco, mas não o tentava, convencido da absoluta inutilidade de tudo, nirvanizado... E o meu interesse pela progressão do acontecimento, interesse sem piedade, antes o contrário, estava atingindo o auge. Porém de minha parte não havia qualquer intenção de vingança ou pesar pelos versos roídos, pois tal espírito de vingança contra um insignificante ratinho, dentro de um ser humano, seria uma imperdoável monstruosidade. Era crueldade gratuita, uma intoxicação estranha e única de perversidade, com os nervos alertas mandando cargas para os músculos, tal se os músculos estivessem todos se movimentando como os de Sardanápalo no corpo do homem sentado, curvado sobre o supliciador e o supliciado, sacudindo as pernas nuas, agitando os braços, sem alma e sem frio, um possesso! Sim, é a palavra: um possesso! Sem repugnância alguma, até com uma certa volúpia demoníaca, vi o gato enorme, que enchia o quarto enorme com sua importância extraordinária, abrir a boca, mostrar a face, e fechar a boca tendo entre os dentes o cabeça do ratinho, esmigalhando-o e engolindo-o lentamente... O rabinho penetrou ainda mais devagar, como uma cobrinha, e Sardanápalo teve uma ânsia de tosse, uma espécie de engasgo, quando a ponta fina e delicada lhe fez cócegas na garganta. Só então se dignou de olhar para mim. Mas que olhar! De cúmplice agradecido e enternecido talvez, depois de cumprir a ordem de matar que provinha do meu desprezo lhe manifestado na véspera. Mas sobretudo de acrobata exibidor gratíssimo por aquele meu aplauso mudo e paciente às suas habilidades. Talvez nada disso e apenasmente uma deferência amável para com o seu dono, após mostrar quanto podia fazer, como era hábil, ágil e poderoso... O certo é que não compreendi bem aquele olhar, a que correspondi constrangido, não pela humilhação da cumplicidade ou porque já me trabalhasse o remorso: — porque percebi assustado e confuso que a crueldade despertada em mim não estava satisfeita! Antes de voltar ao canapé, Sardanápalo veio até junto da cama, fitando-me ainda e sempre, e esfregou o corpo fluxuoso, peludo e quente, contra os meus pés frios e nus. Uma, duas, quatro vezes... Comecei a brincar nervosamente com ele, afastando os pés para que perdesse o equilíbrio quando mais se lhes encostava, calcando levemente com as plantas aquela barriga onde estava sepultado o ratinho. Sardanápalo abandonava-se no chão, agora se fazia pequenino, carinhosamente pequenino. Coloquei um dos calcanhares em cima de sua cabeça que se abaixou reverentemente, mansamente, agradecidamente. Súbita e irreprimível violência, desci o calcanhar com todo o peso do corpo e lhe esmigalhei o crânio. Não morreu logo. Começou a se afastar de costas, arrastando a cabeça, sem poder levantá-la do soalho, com a espinha dorsal partida, como se a cabeça estivesse presa com visgo a tábuas, sem miar nem gemer, apenas com uma espécie de engasgo. Abri a vidraça, agarrei-o pelo rabo e atirei-o para o ar puro e alto, o mais distante que pude. Foi cair lá no fundo do quintal abandonado e cheio de mato, rolou pelo declive forte até que uma moita de assa-peixe o reteve. Lá embaixo, ainda se movia, se arrastava. Desapareceu entre as folhas.

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