5/10/2019

A pulseira de ferro (Conto), Amaral Azevedo




A pulseira de ferro
PRÓLOGO

A verídica história que ides ler (lê-a-eis?) poderia resumir-se em cinco páginas, ou ainda menos. Acredito, porém, que a todas as histórias, sucedidas ou inventadas, o mesmo acontece. Acresce que, se uns as preferem breves, outros as preferem longas, bem longa..... É que uns amam nas histórias as próprias histórias, e não querem delas senão o que pedem à música um pouco de esquecimento e de embriaguez.

De seu lado, o oleiro nem sempre pode ter mão à roda (como lá diz padre Lucena) para que o vaso não saia maior de seu direito. E que importa, afinal, que a bilha seja grande ou pequena, se, de qualquer modo, é sempre enorme quando não se precisa dela, e sempre minúscula para matar mais que a sede de um dia?

Os casos narrados passam-se numa localidade da roça, e por isso a narrativa leva uns espórulos e uns espinhos nos vestidos e um pouco de barro nos sapatos. Não houve, entretanto, intenção regionalista. Nem houve outra qualquer intenção, a não ser a que move todos os contadores desinteressados de histórias, desde as boas negras velhas, que as contam à beira dos berços, até aqueles que piedosamente as contam à beira dos leitos mortuários.

Sobre o vocabulário e conexas particularidades de técnica, convém observar que, em geral, se empregam aqui os termos na sua corrente acepção brasileira, ou antes, paulista, assim como se arranjam e dispõem segundo a consonância e uso da terra onde o autor conheceu a língua e a vida.

Agora, adiante.


... Era uma vez um vigário da vila de Candeias, chamado Guilherme de Meneses, — boa pessoa, coitado! mas pouco esperto e bastante sentimental...

Padre Guilherme estava, num dia de 1880, ou 1875, almoçando, sossegadamente, diante da janela que dava para o quintal, toda enramada de madressilvas, na sua varanda caiada e casta, quando o vieram chamar para um batizado.

— Já vou, respondeu, sem levantar a cabeça ao sacristão que o aguardava à porta da sala com o seu ar de velho animal de sela.

— "Seu" vigário, eles "tenham" muita pressa, porque a criança está passando mal.

Padre Guilherme ergueu a cabeça, a olhar por cima dos óculos de aro de prata; e com a sua voz cantada, meio fanhosa:

— Mal? Doentinha, não é?...

— Diz que.

O vigário vinha cortando ao meio um oloroso assado, que a Rosa, momentos antes, pusera sobre a mesa na própria caçarola, ainda a chiar e a borbulhar. Largou, com resignação tranquila, a faca e o garfo em cima da carne, foi à "estaqueira" cravada na parede entre o guarda-louças e o relógio de armário, tirou de lá o chapéu e o guarda-sol, e seguiu o chouto encolhido e bamboleante do sacristão.

Descendo a escada para a rua, dizia o vigário, com um sorriso meio jovial, meio triste, para o sacrista que ia na frente:

— E a coitada da Rosa, que entendeu de festejar a sua volta à minha casa depois da doença e estava preparando, com tanto gosto, para o meu almoço, umas coisinhas diferentes... Esta coincidência!

A cabeça grossa do Chicão, meio sumida nos ombros, sob a tampa do chapéu de abas largas, fez uma ameaça de rotação para o padre, enquanto o homem rosnava, numa risada mole:

— Não faz mal, seu vigário. Aminhá ela arrepete os guizados.

— Julga você então (tornou o padre com uma leve censura na voz), julga você então que eu lamento perder o almoço? Não, Chico, o que eu lamento é que a pobre da Rosa perca o trabalho que teve para me ser amável, compreendeu?

— Ahn!... grunhiu Chicão, já na rua, esperando o padre com um sorriso podre no carão amarelo.

Padre Guilherme sabia que era inútil querer trocar ideias, corriqueiras que fossem, com o seu sacristão. Bom homem, coitado! mas (como costumava explicar o sacerdote na sua linguagem polida e cândida) "baldo de intelecto". Entretanto, gostava de lhe falar. Tinha uma infinita paciência para com as suas incompreensões monstruosas. Insistia, repetia-se, explicava-se, embora os "ahn!" e os "uhn"! do Chicão lhe estivessem a mostrar que tudo isso era baldado. O que o padre queria era falar. Obedecia a um impulso profundo da sua natureza comunicativa e doce. Gostava de anotar em alta voz, para si e mais alguém, o que lhe passava por dentro; e, na falta de interlocutor, não raro o surpreendiam a falar só consigo.

— Entendeu deveras, Chico?

O sacrista, já mergulhado de novo a mioleira na sua pesada sonolência habitual, ao chouto molengo e balançado do corpanzil, teve um vago sobressalto e gaguejou, na sua risadinha de papo:

— Eh, eh... Como é, seu padre?

— Pergunto se entendeu o que eu lhe disse sobre a Rosa.

— Eu? Eu entendi, sim, senhor.

— Você já estava pensando que eu sentia ter perdido o almoço. É para se ver como a justiça é estranha a este mundo! Você, que me conhece, que vive comigo há seis anos, ainda não tinha reparado que eu nunca fiz questão de comida — tendo você oportunidade, quase todos os dias, de ver isso com os seus olhos. Bastou uma palavra minha, mal compreendida, para imediatamente me atribuir você um ato que ia de encontro a todos os hábitos do meu espírito e do meu corpo...

Chicão nada entendia do que estava a dizer o padre, mas já se acostumara a essas tiradas, e limitava-se a sorrir, arregaçando os beiços grossos sobre as gengivas roxas, de onde emergiam lascas rochosas de dentes. Para o vigário, conversas com ele era apenas uma certa maneira de monologar; e se às vezes insistia assim com o sacrista, não fazia senão empregar um recurso enérgico para se obrigar a uma reflexão. Entre os dois estava tacitamente convencionado que o padre falaria sempre e o sacristão entraria para o diálogo unicamente com uns guinchos, uns acenos de cabeça e uns esgares de inteligência, aliás bem pouco inteligentes.

Quando se avizinhavam da igreja, padre Guilherme recomendou ao sacristão que fizesse entrar a gente na sacristia. Chicão deixou o vigário junto à porta lateral e dirigiu-se, por fora, no seu trotezinho torto e mole, para a parte fronteira do templo.

O padre entrou para a sacristia enxugando a testa. De caminho, deu a mão a beijar ao Vito, molecote que era seu afilhado, posto de guarda à igreja na ausência do Chicão. Puxou uma gaveta, extraiu dela o livro dos assentamentos, abriu-o em cima de uma mesinha de pinho coberta com um pano de ramagens, e pôs-se a examinar lentamente a ponta da pena contra a unha do polegar. Depois, embebeu-a no tinteiro, deixou-a lá espetada e, voltando-se para o Vito, já sentado sobre a larga borda de uma das janelas, uma perna encolhida e a outra pendente ao longo da parede:

— Então, Vituca, você já criou juízo?

O rapazinho também estava afeito às brincadeiras do padre, e limitou-se a uma risada nos dentes muito brancos, franzindo a testa como um macaco.

— Você não acha que eu levo uma vida muito divertida aqui em Candeias?

O negrinho, voltando para o largo, entretinha-se até o esquecimento de si mesmo a seguir com a vista, pela copa de uma figueira próxima, muito redonda e muito verde, o vultozinho inquieto de um sanhaço.

Padre Guilherme sorriu de leve, e suspirou depois, com uma melancolia tão suave que era quase uma volúpia. Aplicou por um momento o ouvido, para receber os sons que chegassem do interior da igreja, e em seguida:

— Ora esta! E essa gente que não aparece!...

De longe, lá dos lados da frente, vinha rolando pela nave deserta, mergulhada em sombra e em silêncio, um vagidozinho apagado. Padre Guilherme levantou-se, foi até o arco da nave, a mão em concha sobre os olhos:

— Olá! Oh Chico!

— Já vai.

— Então?

— Já vai. Não vê que...

— Que é dessa gente?

— Foram-se embora.

— Embora!...

E Chicão aproximou-se do padre atônito com uma criancinha nos braços — um cafusete de cinco dias, envolto em trapos de algodão e de chita, com uma chupeta de pano na boca.

Explicou que achara o pequerrucho largado atrás da porta. Olhara em redor, espiara por todos os cantos, por dentro e por fora, chegara mesmo até a venda do Anastácio, ali ao lado, e nada! Os "tais" eram dois, um homem magro e uma rapariga fula, que o Chicão não conhecia, que nunca vira, e desconfiava que não moravam na terra.

Padre Guilherme ficou a esperar, sem saber o que pensasse daquilo. Afinal, decidiu-se: levava a criança e entregava à Rosa, que a alimentasse com mamadeira. O dono do recém-nascido, se tivesse de aparecer, procuraria o vigário, ou o sacristão. E se não aparecesse, depois se veria.

E assim fez. Chicão entregou o pequeno fardo ao Vito, consignado à cozinheira, e lá foram os quatro pelas ruas de Candeias, o moleque à frente, o padre logo atrás, com o seu grande guarda-sol aberto sobre o recém-nascido, e por último o sacristão, chutando no seu passo mole e torto, como alheio a tudo.

Os raros transeuntes com que cruzavam faziam reverência ao padre e ficavam olhando de esguelha, intrigados. Ao passarem pela botica do Felisberto, este, lá de dentro, enfiou um olhar fureteante sobre o grupo, franzindo o focinho, e veio para a porta contemplar a caravana, até que ela se engolfasse atrás da esquina. Afinal o grupo chegou à casa do padre, perdeu-se lá dentro o choro da criancinha, dois ou três basbaques parados nas imediações resolveram fechar a boca e dar de pernas — e tudo recaiu numa paz alagartada sob o dilúvio do sol causticante.


CAPÍTULO 2

O dono da criança não apareceu, e padre Guilherme deliberou ficar com ela.

No dia seguinte, estirado na rede, em mangas de camisa, pronto para a sestazinha quotidiana, o vigário pensava que talvez fosse coisa providencial aquele intruzinho de cinco ou seis dias, que lhe atravessava no caminho. A vida lhe corria tão monótona e tão pobre de afetos em Candeias! Teria agora um ente a quem se devotasse com ternuras de pai. Queria bem a muita gente, era verdade, e dedicava-se quanto podia a todo o rebanho — mas era coisa diferente. Visitava enfermos e sãos, repartia a mancheias consolações e esperanças, acarinhava as crianças e os humildes, confortava os velhos e os tristes, e fazia tudo isso com o coração nos olhos, nos lábios, na ponta dos dedos abençoadores; mas tudo isso era apenas bondade, fruto piedoso de uma alma bem-criada, que se cansara mortalmente só de percorrer com a imaginação a insondável maldade dos homens e a infinita estupidez da vida. Faltava-lhe o amor que é só amor, coisa diversa da bondade, amor de animal pelo filhote, a que não são estranhos nem os jacarés estúpidos nem os gaviões rapaces. Ia ter agora um filho, um filho quase de verdade, a quem se poderia dedicar de um jeito muito especial, bem pessoal e bem profundo... E padre Guilherme, sorrindo, sentia lá por dentro a música nova de uma paternidade inesperada.

A criança repousava no regaço da Rosa, sonolenta, chuchurreando maquinalmente a chupeta. De quando em quando, vagia baixinho, e o padre levantava a cabeça, à escuta:

— Ó Rosa, por que é que ele está chorando?

— À-toa, seu padre; porque é chorão.

Daí a pouco:

— Ó Rosa, não falta nada para esse pequeno?

— Não falta, respondia a mulata lá de dentro, abafando o riso na mão colada à beiçaria. E consigo: — O que é que havia de faltar, já se viu!

Padre Guilherme estirou-se mais na rede, cerrou os olhos sob o braço dobrado por cima da cabeça, e dormiu. A hora era propicia. Dentro, silêncio completo: a criança ressonava, a Rosa entrara a cochilar. Fora, só a chiadeira terebrante das cigarras, sob a curva do céu limpo, e ao longe, um retinir sacudido de malhos sobre a bigorna, na tendinha do Totico. O vigário dormiu beatificamente, a boca meio aberta, arrancando do goto, de quando em quando, um ronco arrastado e. feroz.

Sonhou com a criança, segundo confessou no mesmo dia ao bacharel Veloso, seu companheiro das palestras vesperais à frente da casa, sobre a calçada. Sonhou que o pequerrucho morrera, já homem, engasgado com a chupeta, e que a Rosa e o sacristão o esquartejavam, no largo da Matriz, com auxílio do Vito, que ria nos dentes brancos e fazia visagens de macaco satisfeito. Acordou sobressaltado, suando, com as mãos enclavinhadas nas franjas da rede, a boca aberta e seca. Olhou em torno, pôs-se à escuta. O silêncio era uma grande lagoa dormente, no meio da qual o padre vigiava, como numa ilha; e, semelhante aos frisos e arrepios que um ventinho brincalhão põe na superfície das águas paradas, chegava da cozinha um arruído ritmado, surdo e monótono — era a Rosa a aventar o feijão numa peneira, para o dia seguinte, sentada com todo o corpo na soleira alta da porta que dava para o quintal. Embaixo da rede, enrodilhado sobre os chinelos do padre, ronronava o seu gatarrão favorito, o "Chibante", luzidio, plácido e mimoso como um pecado. Na sua gaiola à janela, perto da mesa de jantar, entre as sombras leves das madressilvas, o papagaio cabeceava; e, fora, um casal de borboletas amarelas ia e vinha, revoluteando, bailando a uma música que só elas ouviam, na boca do túnel verde formado pelo estaleiro das abóboras.


CAPÍTULO 3

Passaram-se doze ou quinze dias, e o dono da criança não apareceu. Padre Guilherme indagou, matutou, rastreou indícios e nada adiantou.

A única testemunha conhecida era o Chicão, que fora quem falara, na igreja, com os portadores da criança: mas o Chicão, era um semidemente (dizia o padre), não sabia senão repetir as duas ou três coisas vagas que dissera no primeiro dia. O Vito ignorava tudo: declarava que, na hora em que "os tais" estavam a falar com o sacristão na frente da igreja, ele andava a varrer a "sancristia" e de lá não saíra até que o padre chegasse. A opinião da Rosa concordava com o depoimento do sacrista: aquilo foi arte de gente que queria enjeitar o. "provezinho" e, isso feito, raspou-se por esses mundos de Deus. O que tudo somado, ficou o padre, de pedra e cal, na intenção de adotar o pequeno por filho. Levou-o à pia nos braços da Rosa, todo embonecado no seu comprido vestido branco, a touca ataviada de fitinhas azuis, fechando-lhe, como a casca de uma semente grossa, a cabecita redonda e cor de cuia.

A escolha dos padrinhos, e com ela todas as minúcias do ato, foram amorosamente pesadas e repesadas pelo padre. Antes de tudo, a fixação do nome. Na véspera, padre Guilherme chamou a Rosa à sala de jantar e, comunicando-lhe que no dia seguinte se batizaria o menino, consultou-a, numa doce complacência:

— Diga-me uma coisa: que nome você lhe poria?

A Rosa sorriu enleada e lisonjeada pela atenção, e, afinal:

— Não sei, não, senhor.

— Ora, diga lá, vamos a ver.

— Tubia! ejaculou a mulata muito depressa.

— Tobias? Sim, não é mau nome... Mas não se lembra de outro?

— Migué!

E o padre repetia o nome, olhos no ar, como se lhe estivesse a tomar o gosto:

— Miguel... Miguel.

— Venanço! Purfiro! Benedito!

— Espere, espere. Porque não lhe havemos de pôr o nome de Chicão, coitado! Além do mais é uma homenagem que presto a esse bom amigo de tantos anos, tão fiel, tão bonachão...

— Ih! "seu" padre, Chicão é muito feio.

— Chicão não é nome, mulher, Chicão é Francisco, Franciscão.

— Eu sei, mas pensava.

— E você nem sabe que o nome do Chicão não é Francisco! Chicão era o pai, e a alcunha passou ao filho. Foi a única herança, além daquela cabeçorra de moganga, que o Chicão velho lhe deixou. Seu nome de batismo é Matias.

— Matias é bonito.

— Pois prepare o nosso Matiazinho para amanhã, às nove horas.

Padre Guilherme deu umas passadas pela sala, preocupado, o beiço superior entalado entre os dentes, as mãos enclavinhadas uma na outra, a estalar os dedos. De repente, parando:

— Rosa, você que acha?

— "Seu" padre...

— Eu tinha pensado em escolher São Benedito para padrinho do rapaz. Acontece, porém, que eu também tenho vontade de o ser... Não lhe parece que o santo pode ficar zangado?

— Acho que não. Santo não se zanga à-toa. Por isso mesmo é que é santo.

— Você fala como uma teóloga, Rosa.

— Bem, o padrinho sou eu. E a madrinha, Rosa?

— Não pensa que deve ser Nossa Senhora das Candeias?

— Não hai madrinha mió, seu padre.

— Sob o ponto de vista mundano, haveria, talvez...

A cozinheira não compreendeu, mas o padre não insistiu.

— E as roupinhas, Rosa? Estão prontas as roupinhas?

— Nhá Maruca prometeu entregar hoje de tarde o vestidinho e os sapatos. Depois da "janta" vou lá. A touca já está aí. O senhor já viu, não já?

À tarde, a Rosa "foi lá" e voltou sem o vestidinho e sem os sapatos: faltava pôr uns laços ao primeiro e rematar os segundos: juraram mandá-los no dia seguinte bem cedo. Padre Guilherme irritou-se:

— O diabo, queira lidar com costureiras! Essa droga devia estar aqui há três dias! Espere, que eu vou ver isso.

Envergou a batina, pegou o chapéu, pô-lo meio atravessado, enfiou o guarda-chuva embaixo do braço, e ia saindo em chinelos.

Advertido pela cozinheira, consertou o esquecimento, meio envergonhado, e partiu ardendo de ânsia, mas fingindo perfeita calma.

— Eu vou lá... Preciso mesmo falar ali com o Evaristo da loja... não custa.

E saiu, com as mãos nas costas, e devagar, como quem não tinha pressa.

No dia seguinte, o batizado fazia-se à hora designada e, de volta, padre Guilherme não pôde conter-se que não pegasse numa das mãozinhas do pequenito, e não a levasse aos lábios espichados em bico, num beijo sonoro.

— Você sabem? — disse ele à Rosa e ao Chicão, na sala de jantar, a descalçar os sapatos. — Eu só não gostei de uma coisa: o pequeno não chorou ao levar a água fria no coco... Dizem que é mau. Vocês que acham?

— Qual, "seu" vigário! eu não acredito nessas histórias, — disse a Rosa, muito firme, num muxoxo.

E o Chicão sentenciou, com a mesma superioridade serena:

— Tem muito tempo "pra chorá", "seu" padre!


CAPÍTULO 4

"Tem muito tempo para chorar seu padre!" — repetia, depois, o vigário, corrido da sua expansibilidade pueril, diante da sensatez pausada e sentenciosa de Chicão.

Entre os dois, entre o homem bem nascido e bem criado, o sacerdote, o ledor infatigável de letras sagradas e profanas e o caboclo analfabeto e simplório, quem tivera, em toda esta ocorrência, uma palavra de sabedoria — fora o caboclo. Ele padre só dissera e fizera tolices (pensava): procedera como uma criança grande, que, tendo ganhado uma boneca, crepitasse toda numa alegria meio ridícula... Sentia-se humilhado.

Lembrou-se, porém, de que Cristo buscara os seus apóstolos, não entre gente douta, mas entre pescadores ignorantes, porque a simplicidade e pureza de coração estão muito mais perto da sabedoria do que a sabença. Provavelmente o Chicão se ia aproximando da sabedoria, sem esforço, a custo de santa simplicidade — e padre Guilherme se consolava a pensar que o Chicão ia talvez ficando sábio, mas sem deixar de ser idiota. Tudo isto ele o pensou meio confusamente, em todo o caso de modo bastante a aplacar a mágoa da sua vaidade.

Mais tarde, em palestra com o dr. Veloso, trouxe o caso à baila, e com ele a reflexão feita. O bacharel concordou com o padre em achar curioso que a imbecilidade do sacrista pudesse ter engendrado aquela frase razoável, tão a tempo; divergiu, porém, no comentário.

É certo (disse) que a sabedoria pode falar pela boca da simplicidade. Concebe-se um estado de humildade profunda, de ausência de paixões, de esquecimento de si próprio, de brandura e nudez de alma, em que o indivíduo, parecendo baixar à inconsciência, roce deveras a genialidade — e, nesse estado, sem o querer, e sem o saber, diga palavras de perene beleza. Mas Ruysbrock, o Admirável, não é precisamente um produto vulgar, como os homens de talento e as senhoras caridosas... O que se vê, comumente, é isto: de tal natureza é a oposição entre os espíritos rasteiros e as almas direitas e nobres, que, quando estas se abandonam um pouco, e se deixam apenas viver, até os idiotas e os marotos se tornam sábios, só para as humilhar.


CAPÍTULO 5

O pequeno operou uma revolução na vida do padre: horas de dormir e de levantar da cama, de rezar, de comer, de ler, de passear, de fazer visitas, de jogar o écarté e a bisca, todas elas sofreram modificações, umas aumentadas, outras diminuídas, quase todas deslocadas um pouco para trás, ou um pouco para diante. A vida, o coração, o espírito do padre, tudo fora abalado e revolvido pelo encontrão daquele brutinho de seis dias. De manhã cedo, o primeiro pensamento era para ele, e quase sempre também a primeira palavra. Durante o dia não minguavam os cuidados e os zelos; e à noite, antes que a Rosa partisse para a sua casa, nos fundos, o vigário ia acariciar mais uma vez as bochechas abaçanadas do pequerrucho, dizer-lhe um gracejo e abençoá-lo com os seus longos dedos afeitos à prece.

Uma tarde, sentado à porta com Veloso, este lhe estranhou, na sua fala aos supetões, tanta mudança.

— Padre, você anda muito preocupado com esse negrinho.

O vigário achou o termo pouco delicado e engrolou umas evasivas:

— Não, não... Preocupado por quê? Ora essa...

— Anda, sim, padre. Pois eu acho que faz muito bem: é mais uma obra de caridade que você executa, além de tantas.

— O pequeno precisava de alguém que olhasse por ele.

— Sim, precisava. Mas parece-me que não havia de faltar quem disso se encarregasse, aí pela vila, — alguém com família, com outras facilidades para lidar com uma criança. Você está-se sacrificando sem necessidade. Olhe, já bastava essa pobreza por aí, que você socorre, essa mulherada velha que você visita e a quem dá de comer, as engorovinhadas criaturas pelas quais, namorador incorrigível, você se consome todo em cuidados.

O padre mexia-se na cadeira e resmoneava coisas incompreensíveis: "Não... qual!... ora!..." — e tentava desconversar; mas Veloso esganiçava-se, inflexível no seu dever de amigo, o indicador espetado e os pequenos olhos cor de cinza arregaladinhos entre os refegos das pálpebras:

— Não, senhor, é isso mesmo! Você deve dar essa criança a alguma família. Dê-a a uma dessas famílias pobres que você ajuda. Uma mão lava a outra.

— Sim, sim, havemos de ver. Por enquanto ela vai bem com a Rosa, que mora aqui perto...

— Dê-me licença para discordar. Fica aí, não é? Está você com uma pensão de todo o momento, aí ao lado. — E quer saber? — isso nem mesmo se coaduna bem com o seu caráter de sacerdote.

Aqui, padre Guilherme teve um estremecimento de revolta.

— Ah! isso não!... isso não!... Ao contrário, Veloso, ao contrário, o meu caráter de sacerdote é mais uma razão para eu conservar o pequeno. Foi abandonado na igreja... É filho adotivo de Deus, isto é, duas vezes filho. E demais, se eu não fizer esta caridade, quem há de fazê-la? Eu, padre, tenho de ser bom por profissão...

Veloso, no fundo, falava menos por interesse pelo bem do amigo do que por se sentir roubado pelo intruzinho. Velho solteirão sem parentes, com poucos amigos, hospedara o padre em casa, quando ele chegara a Candeias, seis anos atrás, e ficaram ligados por uma afeição constante, tendendo às comodidades e aos exclusivismos de um egoísmo a dois — mais porém da parte de Veloso. Estava habituado àquelas longas conversas rarefeitas e erradias, tão pacificas e cordiais, à porta do padre, e, depois delas, quando escurecia de todo, ao écarté sobre a mesa de jantar, à bisca em companhia de outros camaradas, o juiz, o agente do correio... A perturbação que o pequerrucho trazia a essas coisas todas irritava-o.

Diante do rompante com que o padre se defendera, calou-se e, a sacudir uma perna sobre a outra, recostado na cadeira, olhos perdidos no ar, pôs-se a assoviar a música do "Pereira de Morais":

Onde vai, "seu" Pereira de Morais?
Quando vai não volta mais...

Houve um silêncio. Padre Guilherme temeu ter magoado o velho amigo. Compôs um semblante despreocupado, acendeu um cigarro e, depois de uma baforada longa e um longo sorriso, com voz meiga:

— Ó Veloso, você às vezes não se arrepende de não ter casado?

— Não.

— Oh! Veloso, seja sincero!

— Não me arrependo. Viver sozinho já é penoso, imagine agora viver com dois, com três... por dois, por três... harmonizar isso tudo, e desdobrar-se por isso tudo!... Nada.

— Mas isso é egoísmo, oh Veloso!

O bacharel fez um gesto de resignado assentimento, continuou a trautear o "Pereira de Morais" e, de repente:

— Mas eu sou de fato o tipo do homem egoísta! Egoísta é todo aquele que não faz muito caso de si mesmo nesta vida. É o indivíduo que se retrai, se obscurece, se diminui, e vem rolando por aí... sem se atravessar no caminho de ninguém, não fazendo ninguém sofrer, nem sequer por lhe revelar os próprios sofrimentos... só, só neste mundo, ou então com dois ou três amigos apenas, aos quais não pede senão um pouquinho de simpatia, um cigarro de vez em quando, e dois dedos de prosa...

Veloso tinha um sorriso triste entre a barba grisalha. Acabara de pintar o próprio retrato com a volúpia rascante de quem se machuca por gosto. Depois, pretextando autos a arrazoar, despediu-se. Devagarinho, como de costume, engolfou-se na noite, curvado, arrastando o pé e batendo com a ponta da bengala na beira da calçada.


CAPÍTULO 6

Dias depois, voltando de uma audiência do juiz, Veloso passou pelo Felisberto para tomar o café do boticário.

Ao meio dia, aparecia invariavelmente na botica, vinda da casa pegada, onde residia o Felisberto com a família, uma negra velha com uma bandeja cheia de xícaras, que colocava sobre o balcão. Era para os empregados e os amigos. Estes não faltavam (explicou Veloso, de uma feita, ao vigário) porque Felisberto nunca fizera benefício a ninguém; além disso, porque tinha na língua venenos mais violentos que os que se alinhavam nas prateleiras, os quais não raro eram falsificados. A fina flor da sociedade candeiense prestava-lhe todas as homenagens, a começar pela de que ele mais gostava — o acharem-lhe infinita graça nos ditos, nas pilhérias e nos casos que contava, ainda que a não tivessem muita.

Veloso era um dos seus frequentadores: temia-o como comodista que não quer ter o trabalho de se aborrecer, de viver na contenção cansativa e lacerante das turras e rixas. Demais, (reflexionava) se fosse fugir de alguém pelo veneno que tivesse, de quem não deveria fugir em Candeias? Em troca o boticário poupava-o: apenas contava coisas hilariantes acerca de certas esquisitices do velho advogado, que ele caricaturava sob os contornos de um caráter egoístico e original.

Já não se dava o mesmo com o vigário. Este, logo ao chegar à terra, pelo que viu, pelo que ouviu, deixou o boticário à porta do seu coração, ou, quando muito, só lhe permitiu entrada na antecâmara ou gabinete que dava para fora, onde misericordiosamente acolhia toda a gente. O boticário, de seu lado, não gostou daquele homem calmo, chão e doce, mas um pouco remoto, simples a ponto de parecer orgulhoso, bonachão mas fundamentalmente sério, com um olhar penetrante e sereno, que desconcertava. Começou então, desde logo, a pôr em curso coisas engraçadas a respeito do vigário — e Candeias ria-se.

Quando Veloso entrou, Felisberto, acostado ao balcão, a coçar o queixo e a pentear a barbicha com os dedos magros, o olho mortiço, a boca mole, dizia qualquer pilhéria a um grupo que se contorcia e babava, enxugando lágrimas, apertando a barriga. Vendo o bacharel, o boticário chamou-o:

— Olá! Sirva-se de um cafezinho, descanse um pouco. Diga-me! como vai o filho do padre?

Veloso estacou intrigado. E Felisberto explicou, passando-lhe uma xícara:

— Aquele mulatinho achado ali na igreja, outro dia, não sabe? que caiu do céu por obra do Espírito Santo...

Ouviu-se uma risada geral. Veloso riu-se com os mais, sem exagero e sem ruído, mas também sem constrangimento aparente, e informou:

— O pequeno vai bem.

— Saiu parecido com o pai?

Veloso, sem se desconsertar, tomando o seu café:

— Mas quem é o pai?

— Ora, ora, doutor Veloso...

— Quem é?

— Sou eu. Está ouvindo? Eu! Fui eu quem mandou largar o bodinho, de manhã muito cedo, ali na porta da igreja; por uns excomungados de uns pretos que ninguém viu, de quem ninguém dá notícia... Qual, "seu" dr. Veloso, nisso tudo há grosso... milagre! Quem não vê que aí anda dedo... de Deus!

Veloso sorriu, abanou a cabeça, olhou para o ar, tornou a sorrir, e saiu da botica aterrado.

No dia seguinte, passou pelo seu barbeiro, o Nicola. A loja estava deserta. Da porta da rua, porém, o bacharel avistou o artista, em mangas de camisa, a conversar com o Bernardino, seu vizinho dos fundos, através da cerca de pau a pique. Bateu com o bastão no soalho, espantando o gato amarelo do barbeiro, que se desenrodilhou da cadeira de braços e elasticamente desapareceu pela janela.

— Ó "seu" Nicola!

O barbeiro voltou-se e veio de lá sossegadamente. Ao entrar na loja, reconhecendo o bacharel, deu-se pressa, fez uma mesura, e sorriu:

— Bom dia, signor dottore. Quer fazer a barba? Prontinho.

— Aparar.

— Sente-se. Vai num instante. Que novidades há, dottore?

— Que eu saiba.

— Oh dottore, aqui entre "noise": sabe o que estava dizendo o Bernardino, agora "meisimo"?

— Quê?

— Que aquela "criandça" do vigário que é filha de ele co'a Rosa!

— Como é que o Bernardino soube disso?

Nicola encolheu os ombros, parou a tesoura no ar, espichando a queixada angulosa, e acrescentou:

— Acho que não "sará" verdade, eh dottore!

— Claro que não. Pois você não vê que a Rosa, uma cinquentona horrenda... uh!

Aparada a barba, Veloso, que ficara calado todo o tempo, tomou um aspecto grave e bateu no ombro de Nicola:

— Meu amigo, escute: essa história da criança não é exata. Brincadeira de algum engraçado. Não é verdade? Não repita isso, está ouvindo? não repita.

E como o barbeiro tentava escusar-se, ajuntou, sem o deixar falar, sacudindo-o fortemente com a mão sobre o seu ombro magro:

— Escute "seu" Nicola: a pessoa que inventou essa história nem falou na Rosa. Isso já é acréscimo, e acréscimo posto por esse fogueteiro, que embirra com o padre desde a grande festa do ano passado, porque o padre mandou vir os fogos de São Paulo. Olhe, não diga nada, mas é isso. O Bernardino está-se vingando.

O bacharel pagou o serviço, pôs o chapéu e, na porta, entre brincalhão e repreensivo:

— "Seu" Nicola, não passe adiante essas mentiras, que senão eu conto ao vigário, você perde o freguês, e...

Nicola desfez-se em desculpas. Mas parece que não deixou de falar no caso da criança a toda a gente com quem se encontrou naqueles dias, ajuntando sempre: "Mas eu acho que não "sará" verdade, eh!"

E assim foi ziguezagueando a atoarda pela vila, com graciosos coleios de regato adolescente.


CAPÍTULO 7

Um domingo estava o padre na sacristia a paramentar-se para a missa, quando lhe vieram dizer que o sacristão adoecera. Procurou alguém que o acolitasse, e sem demora se lhe apresentou o professor Camacho, na sua sobrecasaca esverdinhada, amarelo e hirto como um defunto que não tivesse acabado de ressuscitar.

— Às suas ordens, sr. padre.

— Muito obrigado, sr. Camacho. Ainda uma vez é o senhor quem salva a situação.

Camacho sorriu, com o ar contrito que tinha na igreja e mesmo fora, salvo quando fazia brindes de mesa ou tocava requinta, e contritamente acabou de auxiliar a paramentação do sacerdote. Arranjou-lhe as pregas da alva muito engomada, sob o cordão da cintura; pôs-lhe a estola ao alcance da mão, endireitou-lhe a casula. O padre depôs o véu sobre o cálice, pegou neste de encontro ao peito, baixou ligeiramente a cabeça, e foi para o altar, seguido do acólito Camacho, e do Vito com o turíbulo.

Os devotos, cá no corpo da igreja, edificavam-se na contemplação da modéstia. da virtude e da polimórfica sapiência de Camacho, professor de primeiras letras, advogado criminal, tocador de requinta, jornalista e, por fim, perfeito ajudante de missa. Era com supersticioso respeito que punham os olhos no seu dorso esquinado e no posterior da sua cabeça grisalha e piriforme, ladeada pelas conchas largas das orelhas como por duas alças.

Acabada a missa, Camacho auxiliou o padre a despir as vestes de celebrante e a guardá-las nos gavetões da sacristia, foi-lhe buscar o chapéu e o guarda-chuva ao cabide, foi com o Vito fechar as portas, e saíram juntos o padre e o professor para o adro, a conversar. Camacho, visto de longe a conversar com pessoas de respeito, dava a ideia de um pombo: falava grosso e baixo, todo grave e suave, balançando a cabeça junto do interlocutor.

Padre Guilherme, muito tranquilo e bem disposto (quase como uma senhora na doçura e na paz da maternidade recente) parou sobre as lájeas do adro, a contemplar com satisfação, através dos óculos grossos, o céu muito claro, os morros muitos azuis, as aves que aos chilreios se banhavam na frescura luminosa da manhã, e os últimos fiéis que se dispersavam por entre os compridos coqueiros da praça, respirando honesta alegria sob o bom sol do Senhor. E o padre, naquele jeito ligeiramente oratório, de que o seu sorriso manso e natural era o corretivo imediato, exclamou:

— Eis aí, eis aí, sr. Camacho: paz e beleza na terra e no céu!...

Camacho não apanhou logo todo o valor da frase proferida pelo padre, porque, enquanto este passeava o olhar sereno por perto e por longe, ele Camacho conservava o seu pelo chão. Entendeu-lhe, porém, o sentido lógico e, também sorrindo, com o gesto despreocupado:

— É exato, senhor padre, é exato.

Deu uns passos nas pernas magras e, plantando-se diante do vigário, a abanar a cabeça:

— O pior é que esta paz na terra é ilusória! Os rostos sorriem, os corações rugem.

O padre julgou que Camacho pairava na esfera das generalidades e, quase em tom de gracejo:

— Ó sr. Camacho, não faça injustiça às minhas ovelhas.

Mas o professor insiste:

— Não é injustiça, sr. padre, é a verdade.

O padre olhou Camacho com uma contração de sobrolhos, ainda a sorrir, contudo, como a dizer: "Ora, esta! que é lá isso?"

— É a pura verdade, sr. padre! As suas ovelhas, não todas, mas em boa parte, são mas é uns lobos!

E como o vigário se conservasse calado, a fixar-lhe os olhos nos olhos fugidios:

— Pois então é brinquedo isso que dizem de vossa reverendíssima!

— De mim!... Que é que dizem de mim, sr. Camacho? Aquilo que já me contou, outro dia, não é verdade? Uns que sou pouco zeloso das tradições festeiras da paróquia, onde no tempo de padre Jesuíno, de padre Antônio, havia a cada passo festividades de truz, com bandas de música, com fogos de São Paulo, ou de Sorocaba... Outros, que sou mais amigo da irmandade do Santíssimo do que da irmandade de São Benedito... e coisas! Não é isso?

Camacho abanou a cabeça e esboçou um sorrisinho indeciso. Depois, levantando as sobrancelhas e apertando os beiços numa caramunha de contrariedade, arrulhou:

— Eu julgava que vossa reverendíssima estava ao fato de tudo, e foi por isso que me atrevi a falar.

— Desembuche.

— Referia-me ao pequeno, ao enjeitadinho, que as línguas perversas deram agora para assoalhar que é filho do sr. vigário...

Padre Guilherme baixou as sobrancelhas híspidas sobre o olhar coruscante, enquanto ouvia o professor, e assim se conservou por um tempo.

— Então dizem isso de mim?

Camacho fungou um suspiro.

— Por toda a parte, sr. padre.

— Mas dá-se credito a semelhante infâmia? Que caráter tem isso? De notícia certa? De boato vago? De pilhéria? E quem é que o diz, sr. Camacho? a quem é que o senhor já ouviu dizer isso, sr. Camacho?...

O mestre-escola gaguejou umas evasivas. E o padre, pegando-lhe na manga e dando-lhe pequenos repelões:

— Dessas "minudências" o senhor não sabe, hem! sr. Camacho... O senhor sabe que me caluniam, que me arrastam o nome por essas sarjetas, mas não sabe mais nada, não viu, não percebeu... não quis perceber mais nada!

E o olhos do padre fuzilavam por trás dos óculos sobre a cara parda de Camacho, que sorria amarelo, mastigando frases. Por fim, o padre largou-lhe a manga, deu-lhe costas e partiu, entre os coqueiros altos da praça, que balouçavam lá no alto os seus leques verdes e ciciosos, a velar o sono sereno da igrejola fechada.


CAPÍTULO 8

Padre Guilherme, como de ordinário procedia quando alguma coisa o preocupava, pensou logo em Veloso, e desceu a ladeira que ia da praça da Matriz para os lados do rio; despencou por ela, fazendo rolar pedregulhos às topadas, raspando o chão aos escorregões.

A casa do bacharel ficava a menos de uma quadra do ribeirão das Almas: uma casa larga e baixa, com quatro janelas a um metro do solo. A rua, ali, já era quase simples caminho: em vez de calçada, a casa tinha ao pé uma tira verde de capim e no lugar onde devera ser a sarjeta a água da chuva cavara uma boçoroca, que se ia dali aprofundando e alargando quase por todo o leito da rua, até bem perto do ribeirão. Entre essa fenda, onde os vizinhos vinham não raro despejar o seu lixo, e os lados da rua, onde dali em diante não havia mais que umas cercas de pau-a-pique amarradas com cipó, corriam dois trilhos de cabra, aos corcovos e aos serpeios, ladeados de touceiras de barba-de-bode, de juá bravo e de rubim.

Chegando a essa pacifica ponta de rua, onde só se via de quando em quando uma lavadeira que passava, um pescador com a vara ao ombro, ou um grupo de meninos vadios, atirados a exercícios de natação e a caçadas de passarinho pelo mato, o padre parou fatigado e pôs-se a contemplar aquilo tudo: a casa solitária de ar pobretão e tristonho, mas tranquila e acolhedora, os quintais umbrosos, o céu de louça, a boçoroca por cujo fundo uma aguinha escorria entre canalículos rasgados na areia, clara, fresca, desferindo límpidos reflexos em suas cachoeirinhas microscópicas. E teve uma saudade doída de seus anos de criança, em Pirapora, a brincar com outros pequenos numas pontas de ruas plácidas e pitorescas, horas inteiras, de pés nus e de coração sossegado...

Por fim, deu um suspiro e foi bater à porta do bacharel, cuja única folha era mantida aberta por um tijolo. As pancadas do seu grosso guarda-chuva ressoaram pelo interior da casa como por uma cripta. Ao cabo de longos minutos, o padre ouviu que vinha lá dos fundos um lento arrastar de chinelos; depois, entreabriu-se a porta que separava o corredor da sala de jantar e enfiou-se pela fisga a cabeça meio calva de Veloso. Reconhecendo o padre, Veloso escancarou a porta e o semblante, e os braços:

Benedictus qui venit in nomine Domine!

— Está almoçando?

— Ia começar. Almoçaremos juntos.

Padre Guilherme nada respondeu. Sem tirar o chapéu, foi ao pequeno lavatório colocado a um canto da vasta sala, junto ao poial onde bojava o ventre úmido do pote, com a sua concha de coco em cima da tampa em forma de palmatória. Encheu a bacia, lavou as mãos e, a enxugá-las, dizia ao amigo:

— Vá almoçando. Não quero nada. Sem fome. Venho só para lhe dar uma notícia.

Veloso, serenamente curvado sobre um frango loiro, a acariciá-lo com os olhos ao mesmo tempo que o retalhava com a faca, suspendeu a operação e ergueu a cabeça.

— Uma notícia?

— Uma notícia engraçada.

— Vejamos.

— Uma notícia que você não esperava: sou pai.

Veloso fincou os olhos na cara do padre:

— Que é que você está dizendo?

— É isso mesmo, sou pai. Há pouco fiquei sabendo essa novidade, que já é velha em Candeias. O Matias, veja você! é meu filho...

E o vigário ria amargamente, numa resignação fingida, palpando com a mão aberta o relevo ossudo da maxila, para um lado e para outro. Veloso tinha a flutuar entre a barba o seu sorriso bonachão. Depois de uma pausa, voltando-se para o padre:

— Saboreie este peito de frango... Olhe que tentação!

Padre Guilherme não reteve um gesto de impaciência — empurrou o prato, em sinal de recusa, e virou a cara. Veloso sorria. Mastigou tranquilamente o que conseguira arrancar de uma asa que sustinha entre as pontas dos dedos, enxugou-as no guardanapo, e perguntou ao amigo:

— Mas você inquisilou-se deveras com essa história?

Padre Guilherme confessou que experimentava um sentimento doloroso de revolta. Não sabia dizer bem tudo quanto se passava dentro dele: era raiva, era cólera, era nojo, era desanimo... Ver-se vilipendiado miseravelmente, de chofre, quando ia mais contente e confiante pelo seu caminho! E por quê? Por nada! por uma boa ação que praticara! porque recolhera nos braços um desgraçadinho, abandonado no chão como um animalejo importuno! Eis aí a sua falta!... a sua falta!... A falta de ser compassivo, a falta de não ser miserável a ponto de rejeitar com o pé aquele filho de Deus que a sorte lhe punha diante do passo! E o que mais lhe doía ao padre era a estúpida, a opaca, a brutal injustiça que se fazia a toda a sua vida de seis anos em Candeias. Não havia na vila um único indivíduo que o não conhecesse bem... Era como se vivesse numa casa de vidro... Gente venenosa e ingrata! Cainçalha tinhosa e feroz!

Quando padre Guilherme acabou de falar, a Tereza, cozinheira da casa, vinha com a bandeja de café. Veloso tomou uma xícara, passou-a ao padre, pegou a outra e, mexendo devagarinho o açúcar depositado no fundo:

— Padre, você tem razão de estar furioso.

O vigário, por uma espécie de pudor sacerdotal, não gostou do termo e corrigiu:

— Furioso, não...

Veloso sorriu e emendou:

— Você tem toda a razão de estar sentido. Mas, quer que lhe diga? bem se vê que você faz a sua estreia de caluniado. E olhe, pensando bem, na sua idade!...

— Está gracejando.

— Nem de longe, meu amigo. A mentira e a calúnia são os nosso pão espiritual de cada dia! São a nossa arma predileta na luta da vida! São nossos utensílios de trabalho! São o mais inocente dos nossos brincos, o mais doce dos nossos passatempos! Mente-se e calunia-se por ódio e por despeito: é a fúria destruidora do homicida transformada em energia errante, — menos intensa, porém mais extensa, e mais durável. Mente-se e calunia-se sem ódio nem despeito; agrada, convém ao superior de "X" que "A" sofra a tortura de se ver pintado como um salafrário, exposto à risota e ao desprezo da multidão estúpida e cruel? Pois, alma de cachorro, "X" oferecerá esse prazer ao amo. Mente-se e calunia-se por interesse, por cálculo, por desfastio, por descuido, por graça. Mente-se e calunia-se por engano... E não só por palavras, mas também por pensamentos e obras! A mentira e a calúnia estão no ar que respiramos, estão na substância do nosso espírito. São uma secreção regular da nossa alma. Padre, mente-se e calunia-se até por virtude!

— Ora, essa! Sussurra o padre.

— Sim, por virtude — e são vocês, os sacerdotes, os maiores responsáveis desse aperfeiçoamento. O homem, descendente degenerado do gorila, estava fadado a ser um bruto feroz e leal, a ter a agressividade rija, direta e explosiva dos grandes vertebrados, que lutam à luz do Sol, atirando-se ao inimigo, sem cerimônias, sem disfarces, quando isso lhes dá na gana, mordendo, escoiceando, pisando, rasgando carnes, rebentando ossos, espalhando sangue, aos berros, aos guinchos, aos pinotes. Vieram vocês, e convenceram o bicho de que era preciso ser humano, ser humilde, ser desambicioso, ser compassivo, ser justo. Macaco caborteiro, o homem arrependeu-se então, gravemente, das culpas de seus semelhantes... E pôs-se a corrigi-las com fúria incansável: aquele roubou! aquele traiu! aquele é adúltero! aquele é avarento! aquele é falsário... O bruto ganhou em peçonha, em perversidade recolhida e fedorenta o que perdeu em brutalidade esbarrondante e sadia: já não assalta nem esquarteja o inimigo, amargura-lhe, comodamente, a existência; envenena-lhe os prazeres, se os têm; agrava-lhe as dores e as melancolias, que as têm pela certa; põe-lhe um sabor de lama na água que ele bebe, um cheiro excrementício nos perfumes que ele respira; entra-lhe pelo corpo com o pão que ele come, tornando-lho duro e dissaborido; precipita-se-lhe na torrente do sangue, e queima-o em febre; fustiga-lhe as fibras recônditas dos nervos, e chama-se insônia; põe-lhe nos olhos as lágrimas que ele deve estilar em silêncio, às escondidas, e é então a amargura que mata. E ninguém escapa! ninguém! Esse inocente, que você adotou por filho, já entra na vida ferreteado na testa com o labéu de fruto de uma união danada. Invejável destino!... Você, entretanto, só agora, aos quarenta anos... Não é a sua idade?

— Trinta e nove.

— Só agora, pela primeira vez, tem ocasião de se revoltar contra uma calúnia! E como, além de tudo, essa calúnia não é das piores, você, afinal, não me sai daqui sem os meus parabéns.

E Veloso, em seguida, pôs-se a desfiar o rosário das calúnias de que já fora vítima em Candeias — havia-as de todos os formatos e todas as cores. De repente, fazendo uma pausa, perguntou ao padre:

— Daqui aonde vai?

— Para casa.

— Quando sair eu o acompanho para, ali adiante, em cenário adequado, lhe contar uma história que vai achar divertida.

— Pois vamos lá.


CAPÍTULO 9

Perto da casa de Veloso, num terreno cheio de vassourinha, de cuja massa emergiam algumas laranjeiras andrajosas, carregadas de ervas parasitárias, e alguns arbustos de jardim esgalhados e pensos, agachava-se um casebre de porta e janela. As paredes, rachadas aqui, esfuracadas ali, mostravam por toda a parte a ossatura podre dos barrotes e ripas. A janela, pequena e baixa, estava arrombada, e por ela se via o compartimento da frente, de chão batido, com um resto de fornalha a um canto e todo negro de fumaça. Do teto de telha-vã e dos caibros que se lhe cruzavam por baixo, tudo crespo de picumã e teias de aranha, jorravam, em vários sentidos, largas réstias oblíquas de luz doirada, pois o dia estava claro e lindo. Num dos lados do compartimento, outra janela escancarava-se para o quintal, e por ela espiava, como a querer invadir a casa vazia, um tufo de maravilhas roxas.

— Sabe quem morou aí? perguntou Veloso ao padre.

— Tenho uma ideia vaga. Um latoeiro, creio...

— Não, um ferreiro. Conhece o caso desse homem e sua gente?

— Já ouvi qualquer coisa...

— Errada, sem dúvida. Ninguém sabe como eu essa história.

Ali morou o Manuel da Costa, um homem lá do litoral, de Cananeia ou Xiririca, sujeito esquisitão, mas honrado e bom. Gostava de viver em casa, entre a forja e a família, e só o viam na rua quando havia festa grossa na igreja, ou sessão do júri para que ele fosse sorteado. A família era a mulher, — uma mulher pouco interessante, gorda e feia, com ares de virago, que fazia sequilhos para vender; um filho, o Paulo, de seus dezesseis anos, que o ajudava na tenda; e uma filha, a Raquel, criaturinha linda, com uns olhos muito grandes, uma carinha fresca e doce, a flor da casa. Nunca vi chefe de família tão exemplar — tão severo e tão meigo, tão diligente e tão piedoso. Era o pater familias primevo, respirando uma bárbara segurança do seu papel, satisfeito de carregar a sua gente às costas, contente da sua suave e terrível missão de povoar o mundo, e de dar aos filhos o pão e o ensino, provido e austero.

Também nunca vi casa mais feliz. De manhã muito cedo, passando-se por aqui, era certo ver-se a Raquel, nos seus tamanquinhos e no seu avental de chita, a varrer a testada até o meio da rua, com uma vassoura de guaxuma, deixando ali um retângulo de chão todo arranhado e brunido. La dentro, sinh'Ana, esperta, sacudia as banhas, a preparar o café, a ralhar com o Paulo que era dorminhoco, a rachar lenha, a dar milho à criação, que entrava familiarmente pela casa a reclamar a ração matinal. E durante o resto do dia era a mesma atividade alegre e a mesma ordem.

Manuel da Costa vivia, desde o romper do dia até à noitinha, à beira da fornalha e da bigorna, com o seu avental de couro sobre a camisa de algodão, as mangas arregaçadas até o cotovelo. Às vezes parava para descansar, chamava a Raquelinha, punha-a entre os joelhos, envolvia-lhe o rostinho na onda áspera das barbaças negras, perguntava-lhe coisas, mandava-lhe ler a cartilha, e alisava-lhe com a mão calosa os cabelos cor de mel. E então a sua cara severa, barbaçuda, tostada pelo bafo da forja, ficava como a cara de um santo, de São Pedro ou São Paulo, venerável e doce... O enlevo em que ele caía, junto dessa criança!

Depois, mandava-a entrar, e voltava à forja, e gritava ao filho que não dormisse na corda do fole, e malhava, malhava sonoramente, repicando, a estremecer tudo, a despedir faíscas para todos os lados... E cantava. A casa era pobre, os petrechos primitivos, o piso de terra, o teto de telha-vã, as paredes negras, mas ali dentro vivia a simplicidade, o amor e a saúde. E o bom vulcano cantava, pontuando o canto a marteladas — e como estas e aquele era tudo expansão da mesma força e da mesma alegria, podia-se duvidar se ele cantava por obrigação ou se martelava por prazer.

Quando não tinha muito que fazer (o que era raro) o ferreiro fabricava o que lhe dava na cabeça — umas rosetas de espora, para as oferecer a um amigo do sítio, uns ferrolhos de porta para o compadre Fulano. Aquela tenaz que eu tenho, com a qual a Teresa traz a você, às vezes, uma brasa para acender o cigarro, foi presente do Manuel da Costa.

Um dia, lembrou-se de fazer uma pulseirinha para a filha, coisa de brincadeira. Começou-a, numa hora de folga. Com o trabalho veio-lhe o desejo de aperfeiçoar a obra. A mão pesada, afeita ao serviço grosso de uma forja primitiva, os instrumentos imperfeitos de que dispunha, como que conspiravam para lhe quebrar a pequenina e graciosa ambição. Tomava um pedaço de ferro, afilava-o, polia-o, e tanto se esmerava que, de repente, ei-lo torto, lascado, partido. Afinal, num momento de mais calma, sempre conseguiu bater e rebater uma vergazinha até deixá-la numa fita estreita e lisa. Depois, aproveitando com todo o cuidado outros momentos de sossego, tornava a pegar a pulseirinha, e punha-se a repolir-lhe as asperezas, devagar, devagar, paciente e amorosamente. Ao mesmo tempo, forcejava por dar à curva do aro a maior suavidade possível, e só isso quanto lhe custou! Quanta suada pachorra, quanta marteladazinha nas unhas! Afinal, um dia, deu por terminada a conformação, e tratou de fechar a roda ajustando por cima das duas extremidades unidas um anelzinho também de ferro, onde se abriam as quatro pétalas de uma flor quimérica, de sob as quais partiam dois filamentos a enroscar-se pela haste da pulseira, até certa distância, como gavinhas.

O trabalho que lhe deu esse arremedo de joia! O tempo que lhe levou! Lavrou-o, a princípio, nas horas de lazer, como por brinco e distração. Depois, foi entrando aos poucos pelas horas de ocupação obrigatória, e ao dar os últimos retoques quase não fez outra coisa, por muitos dias. Quando chamou a Raquel e enfiou-lhe no braço a sua linda pulseira, a filha estava com dezesseis anos...

Tinham-se passado cinco.

Mas, como se não houvessem passado, a mocinha recebeu como menina a sua pulseira de ferro, e remirou-se encantada, como se houvesse ganho uma pulseira daquelas que o Martinho, o mascate judeu, andava a vender aos ricos na sua caixa atafulhada de ouro e pedraria.

Por esta altura ausentei-me de Candeias. Negócios vários chamavam-me a São Paulo, onde me demorei meses. Nas vésperas do regresso, lembrei-me do meu amigo Manuel da Costa, e lembrei-me da Raquel. Fui a uma loja, comprei uma grande boneca para a minha amiguinha, que tantas vezes me servira um café aromático, numa tigelinha de louça com riscas vermelhas e azuis, ali na oficina, onde às vezes eu ia conversar com o Costa.

Voltei. Chegando à casa com as malas, imaginei que ia dar uma grande alegria à mocinha, que eu sabia que conservava o gosto de brincar com bonecas, pois via-a muitas vezes entretida a vestir e desvestir umas pobres bruxas de trapo, com olhos de linha preta e boca de linha vermelha, a cara chata e o corpo mole. Informando-me, porém, com a Teresa do que se passara cá na terra em minha ausência, soube que a Raquel era morta... Senti um grande soco cá dentro.

Nada disse à Teresa, mas peguei na boneca, escondi-a em baixo do paletó e dirigi-me ao poço velho no fundo do meu quintal. Afastei a tábua que o cobre, e arremessei lá dentro a boneca, na própria caixa de papelão, como num esquife, com umas pedras nos cantos. A caixa bateu na parede limosa do poço, toda crespa de avencas, e caiu na água, abrindo uma infinidade de círculos concêntricos, cada vez mais lentos na fuga...

Quando a água voltou à serenidade, meu amigo, vi lá dentro o meu rosto, pálido, carregado, e tive a impressão de que alguém, de um outro mundo, severamente, me condenava tanta puerilidade. Mas eu saí dali com o coração transtornado.

Acusada por línguas danadas de ser demasiado complacente aos agrados de um velhote (esse velhote era eu...) que "inexplicavelmente" lhe frequentava a casa e de repente "fugira" da vila sob esfarrapados pretextos, a desgraçadinha ficou numa grande tonteira, não soube sequer como se justificar, não teve mais coragem de aparecer a ninguém. O velho Costa, vendo a sua casa assaltada pela calúnia, e vendo sua filha enrolada na teia torturante, perdeu a cabeça, e procurou o autor da infâmia para lhe enterrar uma faca na cernelha; mas não encontrou senão portadores inocentes de uma notícia ouvida. Caiu numa grande tristeza. Dias houve em que o foram encontrar sentado numa tripeça, calado, o olhar duro fincado no chão, o punho sumido na barba, junto da fornalha fria. E com isso a pobre rapariga ainda mais se desesperava.

Depois, um domingo, a Raquel aguardou a costumada visita do primo Eduardo, um rapagão que a adorava e com quem a casamenteavam desde criança. Penteou com vagar os cabelos cor de mel, enxugou as lágrimas, calçou umas meias e o tamanquinho novo, e pôs no braço a sua pulseirinha de ferro. Foi para a porta, encostou-se ao batente, e ali ficou, a enrolar e desenrolar o lenço de ramagens entre as mãos nervosas. O Eduardo não apareceu...

No dia seguinte, o ferreiro mandou acender a fornalha. Era preciso forjar — forjar o pão para a boca.

Pôs-se a trabalhar, trabalhou até a hora do café. Chegada essa hora, como de costume gritou para dentro: "Eh! Raquel!!" Ela já sabia... Daí a pouco viria com a tigela fumegante, e com um pedaço de broa ou uns doces secos numa cestinha de taquara... Manuel da Costa gritou mais uma vez, a mão em concha junto à boca, voltado para o interior da casa: "Eh! Raquel!..." E como ela ainda não viesse, largou o malho ao pé do cepo da bigorna, atravessou a casa deserta e foi falar à mulher, que lavava umas peças de roupa junto ao poço, no fundo do quintal. A mulher também não sabia da filha, e perguntou surpreendida:

— Pois não está lá dentro?... Não está no quarto?... Não está ali em frente, no vizinho?

Saiu com o marido, a procurar, ambos numa aflição extrema. Procura que procura, indaga que indaga — depois de duas horas foram dar com a menina lá em baixo, numa curva do ribeirão, enroscada nos galhos de um ingazeiro que ainda lá se debruça por cima da água: boiava como uma folha caída... Perto, sobre um espinheiro, o seu xale de lá cor de rosa e, sobre ele, pousada delicadamente, a pulseirinha de ferro.

Manuel da Costa e sinh'Ana ficaram como dois fantasmas — vagueavam por dentro de casa, na sombra e no silêncio, magros e doentes, a suspirar e a gemer. O Paulo saiu à busca de emprego. A forja nunca mais se acendeu.

Meses depois do desastre, aquele ferreiro robusto como um touro caia para não mais se levantar, desfeito por um sopro... A mulher não tardava a segui-lo.

A casa, posta em praça, não encontrou quem a quisesse. Dentro de pouco tempo começou a esboroar-se e a rachar-se, a encher-se de barrigas e corcovas. O jardinzinho ali ao lado, onde sinh'Ana cultivava uns canteiros de dálias, sempre-vivas e cravos — flores de pobre — mirrou, encheu-se de mato e de formigas. O poço esbeiçou-se e revestiu-se de limo, afogado no vassoural. Um dia, meninos vadios arrombaram essa janela. Hoje a casa é lugar de divertimento para esses animaizinhos; e por ela entram com os meninos os tico-ticos e as corruíras; e as borboletas, aos pares, vêm namorar-se e bailar nesta ruína, no meio desta tranquilidade da natureza...


CAPÍTULO 10

Padre Guilherme resolveu seguir o conselho e o exemplo do velho amigo, e não se importar com a infâmia. Tratou de fechar consigo o seu sofrimento e de continuar mostrando à humanidade de Candeias o mesmo semblante sorridente com que ela o vira até então. Ninguém mais, além de Veloso, ouviu uma queixa ao padre. O seu teor de vida não sofreu alteração sensível. Somente o seu sorriso já não tinha a transparência de outrora, e a sua serenidade era uma serenidade de máscara. Os cantos dos lábios, que ordinariamente se lhe embebiam no sulco redondo das bochechas, descaíam-lhe agora, de leve, prolongando-se para baixo em dois riscos direitos; e o lábio inferior avançava de um jeito amargo e duro. Não raro, no curso de uma conversa aparentemente despreocupada, ele pontuava as pausas e os silêncios com suspiros entrecortados e engolidos.

Tudo isso, porém, eram coisas muito sutis, que Candeias mal percebia. Dos amigos do padre, só as percebia bem o perspicaz Veloso. Por isso, Veloso não se cansava de lhe proporcionar distrações. Visitava-o mais amiúde que nunca, levava-lhe livros, inventava passeios, sugeria aos amigos comuns gentilezas inéditas e redobradas para o padre.

Quanto a passeios, o vigário poucas vezes os aceitava. Embalde Veloso tentava fazer-lhe ver que o seu ressentimento excedia a importância do agravo. Afinal, com os diachos, o padre ficava sempre acima de tais porcarias. Nem toda a gente dava crédito à infâmia. E que desse! Então para que é que servia uma consciência limpa?

— Por ter a consciência limpa é que me revolto, Veloso (bradava o padre). Não, não me posso conformar com esta ideia de que a "minha" pessoa não é afinal "minha", não me pertence, não é aquilo que eu quero que ela seja, aquilo que eu tenho o direito de querer que ela seja, aquilo que eu vivo a trabalhar toda a minha vida para que ela seja!... E essa ideia estúpida, essa ideia trágica é a realidade, a realidade objetiva, a realidade tangível! A "minha" pessoa é uma coisa como qualquer outra, é um objeto, é um traste, é um punhado de matéria desprezível que o primeiro ladrão apanha, desconjunta, torce e deforma à sua vontade, por desfastio, por malvadez, por pilhéria, sei lá!...

Veloso sorria, deixava passar a onda de exaltação, e insinuava uma nova advertência, ou repisava um conselho. Um dia, depois de ouvir os queixumes amaríssimos do amigo, disse-lhe à queima-roupa:

— Padre, você ainda dispõe de um recurso que não está ao alcance de toda a gente.

— Que recurso?

— A oração...

Padre Guilherme corou ligeiramente da lição daquele "ímpio" que era como lhe chamava. De fato, Veloso frequentava com perfeita regularidade as missas conventuais e as grandes solenidades da igreja, mas (confessava-o ao padre) apenas para dar uma toadinha à vidoca".

— Tem razão, Veloso, mas era escusado o conselho, porque rezar, isso rezo eu todo o santo dia.

Veloso balbuciou imperceptivelmente:

— Não parece...

O padre, sentado na sua rede, ao lado do amigo encovado numa poltrona de braços em S, pôs os olhos no teto, recostou-se de banda, e imprimiu com o pé um ligeiro movimento ao assento pênsil, que gemeu nas ferragens. Depois de alguns minutos passados assim, num silêncio rendilhado apenas pelo ruído áspero e cadenciado dos ganchos da rede friccionados pelas argolas dos punhos, o padre parou, enfiou os chinelos, e pôs-se a dar passadas de um lado para outro da sala, as mãos nas costas, os sobrolhos contraídos. Veloso, calado, entretinha-se com a sua boceta de rapé, de prata velha, presa entre as unhas longas do polegar e do mínimo, a fazê-la girar com a ponta do indicador. De repente, parando diante do amigo, o vigário pôs-lhe a mão no ombro e murmurou, num tom de confidência doida:

— Veloso, não sei se lhe diga... Olhe, eu tenho sofrido tanto com este negócio, tenho sofrido tanto!...

Veloso apanhou no ar a dolorosa confissão, que ainda não descrevera o voo completo, e esganou-a.

— Não diga mais nada.

O padre baixou a cabeça, e franziu o rosto num suspiro estrangulado, que lhe veio estremecendo a arca do peito, a garganta e a cabeça. Veloso levantou-se também e, com voz meiga, mas firme:

— Que culpa tem Deus de que você exagere a sua sensibilidade? Você é que devia ter a força de desprezar o que é desprezível; mas não desprezar de gesto e de palavra — desprezar de toda a vontade, de toda a alma, num desprezo integral e sereno... Você não tem essa força, e padece... Mas reconheça ao menos que também esse padecimento é providencial. Nós nos orgulhamos facilmente das nossas boas partes; e aquele que se compraz em reconhecê-las em si mesmo, já desmereceu um pouco, só por isso. A má língua chama-nos à realidade, força-nos a ser modestos, a juntar ainda uma qualidade, preciosa entre as mais, às qualidades que já possuímos...

— E de que servem essas qualidades todas, que têm de se alimentar do mal que dizem delas? gemeu o padre.

Veloso, meio desmontado, apenas replicou:

— De nada...

— Não servem de nada (repetia o bacharel consigo, logo depois, parado diante da janela que dava para a rua). Isto de concepções morais nada têm que ver com a vida. Eis aí a vida...

Aproximou-se da janela e escancarou-a. Entrou por ela uma caudal de luz doirada na sala escura, e um quadro maravilhoso se alargou a seus olhos estáticos. Primeiro a massa irregular dos telhados da frente, em tintas queimadas de bistre e de sépia. Sobre ela, dois corvos se disputavam uma longa fita de carniça, aos pulinhos, abaixando e erguendo desgraciosamente as asas e os pescoços, como aves empalhadas que de repente se pusessem a imitar a vida. Logo por trás, umas grandes ondas de vegetação forte, árvores ramalhudas de um velho pomar, entre cujas copas, umas densas e escuras, outras esparsas e leves, passavam e repassavam asas e entrecruzavam-se trinados, pios e chilreios, longos e trêmulos, sobressaltados e agudos, lânguidos e interrogativos...

Mais para além, uma grande superfície verde-clara arredondava-se como o esboço de um ventre colossal, e logo adiante se arremessava em arestas e em grimpas, num impulso vivo de matéria em ebulição repentinamente solidificada, uma cadeia de morros azuis, cujos contrafortes e desvãos tomavam uns tons violáceos e transparentes sob a forte claridade do céu profundo. Das vizinhanças, no silêncio da rua deserta, vinham arrulhos de pombos que andavam pelos telhados.

Veloso achegou-se mais à janela, abriu os braços de encontro aos lados, e mergulhando-se todo naquela delícia, exclamou para dentro de si mesmo:

— A brutalidade magnífica e feliz da natureza!... Porque os homens não haviam de ser assim, integrar-se nesta sinfonia, e afogar a sua consciência miserável nesta divina estupidez!

Despedindo-se do padre, Veloso saiu a percorrer lentamente os arrabaldes de beira-rio, uma guirlanda de lindos aspectos tranquilos e harmoniosos — "a única harmonia de Candeias".


CAPÍTULO 11

Um domingo, acabada a missa, padre Guilherme foi para casa e, como habitualmente, lá encontrou sobre a sua mesa de jantar a Gazeta de Candeias, jornalinho de pouco mais de palmo, "literário e noticioso", dirigido por Albano Gomes, mas de fato orientado e escrito por Salomão Camacho, o mestre-escola. Leu-o ao almoço. Pouca matéria: quatro notícias locais, outras tantas da Corte, algumas de São Paulo, umas "Variedades" de almanaque, e um pequeno artigo — "Aniversário natalício", que rezava assim:

Ainda é recordado com saudades por toda a sociedade candeiense, assim do high-life como das classes mais modestas, o ilustre sacerdote e emérito pregador, o Revmo. Sr. frei Antônio Jeremias de Sant'Águeda, que há meses nos visitou, no seu árduo e santo mister de missionário.

Verdadeiro tipo de ministro da sublime religião do Mártir do Gólgota, o Revmo. frei Antônio alia às suas peregrinas virtudes de apóstolo os dons de um intelecto majestoso como o de Mont'Alverne e outras águias da palavra que sabem agradar e convencer ao mais exigente auditório.

É, pois, muito diferente de certos ministros de Cristo que, ou por falta de competência, ou por excesso de comodismo, não gostam de subir ao púlpito e ensinar as almas sedentas de verdade a verdadeira doutrina de nossa santa religião, que tantos transviados necessitam dela não só para sua salvação como também para serem elementos úteis à sociedade.

Além de tudo, o Revmo. Sr. frei Antônio é excessivamente modesto, não se dedignando de atender com angélica bondade todos que dele se aproximam, quer por necessidade, quer por mero prazer, sem distinções de fortuna, de posição social ou de cor. Todos encontram no virtuoso capuchinho a mesma atenção, sem as soberbias que tão mal assentam em certos levitas, aliás bem precisados, quem sabe, da tolerância e magnanimidade dos homens sensatos.

De fluindo hoje a data natalícia do venerando pregador, a Gazeta de Candeias, que nunca se esquece de prestar homenagens a quem na sua consciência merece-as, envia a frei Antônio Jeremias de Sant'Águeda muito saudar, desejando-lhe ex-imo ainda longos anos de existência com as bênçãos do céu.

Padre Guilherme nunca soube que o autor desse artigo, que não podia ser outro senão o professor Camacho, fosse tão amigo de frei Antônio. Frei Antônio fora hóspede do vigário, havia cinco ou seis meses, e passara menos de uma semana em Candeias, onde nunca estivera anteriormente... Era, pois, com alguma estranheza que o vigário presenciava aquela torrente de encômios, tão calorosos e tão inesperados.

Não tardou que Veloso aparecesse. Falou-lhe no artigo e na sua surpresa.

— Já li. Não há que estranhar. Você, padre, é como lhe digo sempre, você vive fora deste mundo... Olhe, quando vir um cavalheiro muito entusiasmado com um seu semelhante, a tecer-lhe panegíricos ardentes, pode estar certo, noventa vezes num cento, de que esses elogios são feitos "contra" alguém. Isto na hipótese simpática de que não se trate de meras adulações! "Eles", em regra, são incapazes de abrir a boca para louvar um indivíduo, se a pena de o fazer não é compensada ao menos pela esperança de machucar com isso um outro indivíduo. Demais, meu caro reverendo, a intenção desse Camacho é tão clara!

— Acha?

— Mas entra pelos olhos, meu amigo! Frei Antônio Jeremias é apenas um venerável cabide, onde esse mono imbecil dependura as qualidades de que despe o vigário de Candeias. Pois você não viu logo isso?

— Desconfiei.

— O maroto procede justamente como meu pai — santo homem! — quando eu fazia alguma das minhas, em pequeno. Se eu fugia da escola, se me ia às guabirobas com a molecada do meu tempo, se não aprendia a lição de catecismo, ou se brigava com os meninos da vizinhança no jogo do pinhão ou do pião, meu pai, em regra, não me castigava pelos processos ordinários. À hora das refeições, quando aos pequenos não era permitido arredar pé da mesa, meu pai fazia, simplesmente, o elogio dos pirralhos vizinhos, da minha idade: elogiava todos, até os piores, catando neles as virtudes que a seu ver me faleciam, catando-as com a pachorra de quem catasse piolhos na gadelha dura de um bugre... E como eu sofria!... Esse processo, depois o verifiquei, é universalmente adotado — entre os adultos. É o processo que lhe aplica o nosso ilustre Camacho. Não há neste artigo uma linha, uma frase, cujo avesso não se projete sobre a sua pessoa...

Padre Guilherme quedou-se edificado. Depois de uma longa pausa, sorriu acremente, e declarou a Veloso:

— Tem razão... Agora me explico, veja você! Agora me explico o formidável elogio que ele me fez, o Camacho, nesta mesma Gazeta, há três para quatro anos, quando brigou com o juiz. Como deve lembrar-se, eu e o juiz, sem sermos propriamente inimigos, não nos podíamos aproximar, porque ele era um caráter autoritário e eu, um caráter resistidor. Espiávamo-nos de longe, com pouca simpatia, mas com mútuo respeito, e íamos vivendo. Um belo dia, Camacho rompe com o juiz, e passa-me um tremendo elogio; eu era, positivamente, a primeira personalidade de Candeias, e a todos os aspectos... Nunca pude saber o motivo de tamanha gentileza. Sei-o agora.

E o padre quedou-se silencioso, com a cara amarrada, a ruminar mais essa decepção retrospectiva.


CAPÍTULO 12

Deixando a casa do padre, Veloso saiu a meditar na transformação extraordinária que se passara na alma do seu amigo, desde o maldito incidente do enjeitadinho: fora um terremoto. Resolveu ir à redação da Gazeta, a ver se evitava maiores dissabores. Camacho era o homem de mais talento no município, e tudo se deve esperar de um homem de talento que está convencido de que o é, e que tem rancores a pôr em dia.

A Gazeta era composta e impressa na própria casa de Albino Gomes, Rua da Constituição, perto do Cemitério. Caminhando para lá, Veloso matutava nas razões que teriam levado — não Camacho a escrever o artigo, porque isso estava suficientemente esclarecido pelo incidente do adro, que o padre lhe contara, mas o Gomes a consentir na publicação. Cauto e calculista, Gomes teria impugnado o artigo, mas Camacho haveria insistido. A Gomes não lhe convinha perder o único homem que em Candeias era capaz de encher, regularmente, e com proficiência invariável, todas as semanas, as duas páginas que na Gazeta se reservavam à redação.

Depois, Gomes era parente chegado do fogueteiro, detrator contumaz do vigário desde o caso dos fogos encomendados para São Paulo — e não há nada que facilite e promova a união de duas almas como os laços cordiais de um ódio comum.

Chegando à tipografia, Veloso, por fortuna, encontrou o estabelecimento funcionando. Ao bater à porta, ouviu lá dentro o ranger do prelo, e alegrou-se. Veio abrir-lhe o próprio Gomes, com as mangas da camisa presas acima do cotovelo por elásticos, e a cara escorrendo suor entre os tocos crescidos da barba.

— Ainda atarefado com o jornal de hoje?

— Ainda. Entre, doutor.

Veloso entrou para a tipografia, onde entre caixotins alinhados junto às paredes se erguia o vulto gótico de um velho prelo, que era pouco mais que uma grande prensa com rodas. E Gomes, enxugando a testa na manga, acrescentou com a mais tranquila naturalidade:

— Estamos acabando a tiragem. São trezentos e vinte e cinco exemplares. Candeias cresce.

— E com ela a alavanca do seu progresso, amigo Gomes. Pois é tocar para diante... Mas escute. Vim ver se você me arranja os últimos números do Monitor. Não o recebe?

— Recebo. Já lhos dou, com todo o prazer.

Deslizando, habilmente, de assunto para assunto. Veloso voltou aos domínios privados da Gazeta, louvou-lhe os progressos, a feitura, o critério dos seus artigos, a graça das suas "Variedades"... Aqui, Albino sorriu modestamente.

— O doutor lê aquilo? Eu faço essa coisinha por passatempo, nas horas vagas, colhendo aqui, colhendo ali, por jornais e almanaques... O caso é que tem leitores, principalmente aí pelas famílias.

— Mas em grande número, meu amigo. Depois, Veloso referiu-se, como se se tivesse lembrado disso no momento, ao artigo dedicado a frei Antônio Jeremias.

— Muito bom, e justo. Mas houve quem lhe achasse uma certa intenção de alfinetar o nosso vigário...

Gomes protestou que não. E, muito inocente:

— Ali não se fala no vigário, nem se alude individualmente a ninguém. Onde é que descobriram a alfinetada? Agora se a carapuça lhe serviu, a culpa é que não é nossa!

— Em todo caso você reconhece que há uma carapuça, que podia servir ao padre.

O impressor tartamudeou evasivas. Veloso mudou de assunto. Lembrou a impressão deixada pelo artigo sobre a Paixão do Senhor, na Semana Santa, — o melhor artigo, talvez, de Camacho inteiro, e que por sinal fora calorosamente louvado pelo vigário. Discorreu sobre as tremendas dificuldades com que luta a imprensa neste pais onde o povo é analfabeto e onde os mandões são, geralmente, piores que analfabetos, porque nem sequer são analfabetos perfeitos. Por fim, alisando a copa do chapéu na manga do paletó, como quem se aprestava a partir:

— Pois muito obrigado pelo Monitor! Até breve.

E, na porta da rua, até onde o acompanhara o dono da casa:

— Olhe, seu Albino, devo-lhe várias obrigações, quero-lhe dever mais uma: poupe-me o vigário.

— Mas, doutor, não demos uma linha contra o vigário.

— Acredito. Mas a impressão que se tem é que vocês visaram ao padre.

— Não senhor, ninguém pode...

— Perfeitamente, "seu" Albino. Mas escute, peço-lhe que evite daqui por diante a publicação de qualquer coisa que possa dar a ideia, embora muito vaga, de uma remota censura ao vigário. E sabe por quê? Porque anda doente, coisas de estômago e de rins, uma complicação, está ouvindo? Para que é que havemos de agravar a aflição ao aflito?

— Nós nada fizemos para isso, doutor.

— Bem sei, bem sei. Até logo. Volte ao prelo, dê luz a esta gente. E mande buscar lá em casa, quando quiser, o Lunário Perpétuo que lhe prometi. Pode-lhe ser útil para as "Variedades

— Oh! sr. doutor, muitíssimo agradecido! exclamou o tipógrafo, numa reverência ao bacharel que se afastava devagar, assoviando despreocupadamente entre a barba grisalha.


CAPÍTULO 13

Os ternos cuidados de Veloso nada adiantaram. Padre Guilherme, cada vez mais amofinado e sorumbático, — a vida mortiça de Candeias facilitava a hipertrofia da ideia fixa, — tomou, de repente, a resolução de se ir embora. Embalde Veloso tentou desconvence-lo, embalde lhe representou em vários modos e tons a sem-razão e os inconvenientes de tal passo. Ir-se-ia em breve para a capital, onde contava descansar uns tempos com velhos companheiros de estudos, até ver que destino dava à sua vida.

— Pois vá, e depois volte.

— Nunca.

— E o pequeno?

— O pequeno aí fica com a Rosa. Deixo-lhes a casa e os trastes, com a condição única de ela continuar a cuidar do menino. De longe, como puder, ainda velarei por ele. Talvez um dia possa mandá-lo buscar para fazer desse pobrezinho alguma coisa... Imagine a minha saudade, Veloso! Deixo-o com um ano quase completo... Mais que o tempo de uma gestação. É, legitimamente, um filho adorado das minhas entranhas espirituais, gerado pelo meu coração... filho pelo qual eu tenho um amor de pai e de mãe...

Aqui, por um momento, padre Guilherme recobrou o gosto antigo do tom ligeiramente oratório, e concluiu com a mão no ombro de Veloso, a sorrir contrafeito:

— A mim me são vedadas as boas e doces afeições humanas... Tenho de ser um fantasma sem músculo, uma doutrina encarnada, um feixe de sínteses e abstrações, um respeitável comediante da bondade e da perfeição...

— Que não existe! atalhou Veloso.

No primeiro domingo, em breve prática, feita com acompanhamento de lágrimas pelo Chicão, padre Guilherme comunicou aos paroquianos que se retirava de Candeias, apenas chegasse o substituto que solicitara. O povo escutou-o com ar de surpresa e mágoa. O professor Camacho, muito direito na sua sobrecasaca rapada, as mãos juntas a segurarem sobre o baixo ventre o lenço vermelho de ramagens, tinha um ar solene e compungido. Quando o vigário terminou, correu por todo o templo um murmúrio abafado, entre cujas ôndulas espipocavam gemidos de beatas lacrimosas.

No domingo seguinte foram as últimas despedidas. A Gazeta de Candeias, generosamente reconciliada com o padre, mercê da intervenção de Veloso, dera um artigo sobre a pessoa ilustre do virtuoso vigário e suas obras de religião e de caridade em Candeias — o novo sino, a imagem de Nossa Senhora restaurada, os reparos no coro e no batistério, a aula de catecismo instituída havia quatro anos com tantos frutos espirituais e as esmolas, as infinitas esmolas feitas em silêncio... O artigo, já se vê, era de Camacho, que se esmerou no estilo — aquele estilo floreado do artigo sobre a Paixão, de que o padre gostara "imensamente" segundo lhe disse Albino Gomes, que o ouvira ao doutor Veloso... Com esse artigo, com a presença das irmandades incorporadas e com a criançada do catecismo a encher de flores a escada do altar, tudo estava preparado para um grande exercício geral de prantos. E houve muitos prantos, discretos, porém.

Depois, Veloso dizia ao padre:

— Afinal, você é quem tem razão. A sem-razão é muitas vezes mais razoável do que a sabedoria. A sem-razão é a vida. Você, reagindo, vive. É um erro a sua saída de Candeias. Bendito erro! Boa maneira de fazer um gesto largo e salutar de desprezo e de cólera... Não adianta, nem a você, nem a ninguém... "Eles" não fizeram por mal — foi porque tinha de ser... Ninguém é mau, o que é mau é a burrice de uns, a leviandade ou a fraqueza de outros, a rasteirice e estreiteza em que tem fatalmente de viver o rebanho humano... Você compreende isso, mas não se conforma. Bendito disparate. Você vive... Para as dores da vida, as consolações da vida. Morderam-no? Você dá um pontapé, e retira-se. Isto lhe aquece a alma melhor do que quanta reflexão sabichona... Ao passo que eu, ai! meu caro... Como é triste, meu amigo, como é imensamente triste compreender tudo, e tudo perdoar!


CAPÍTULO 14

Quando o padre partiu, após um abraço que durou minutos, Veloso entrou em casa meio tonto, com uma dor muito funda lá dentro do peito.

A Tereza compreendeu o que se passava e, interessada:

— "Seu" padre foi-se embora, não é, "seu" doutor?...

— Foi-se, Tereza... É isso. Vive a gente a malhar e a polir, num enlevo, anos a fio, a sua pulseirinha de ferro... De repente, zás!...

E, entrando para o quarto, onde se ia encerrar para que não lhe vissem as lágrimas:

— ... a marcha bruta e impassível da vida esmaga, tritura e dispersa tudo... E quem olha o pequenino objeto, e brinca com ele entre os dedos, não imagina sequer o mundo de ilusões e de dores que coube dentro dessa minúscula circunferência...


CAPÍTULO 15

Três meses depois, Candeias já tinha esquecido o antigo vigário, e já em torno do novo vigário a vida tecia a sua teia implacável. Chicão continuava, muito entretido, — na vila, com os seus deveres de sacrista; no bairro onde residia, com os seus amores vagabundos e cautos por aquelas barrocas e matos... De repente, a esposa de Chicão, desconfiada, fareja um dos crimes da metade, coisa velha, persegue-o, descobre-o, queixa-se aos irmãos, dois caboclos duros, e arma-se um grande reboliço com muita pinga, muito choro, muita descompostura, várias porretadas e facadas. No fim, tudo se esclareceu na polícia. Chicão há muito que desfrutava a macia passividade de uma mulatinha meio sarambé, meio caborteira, e dela houvera um filho. Caborteiros ambos, combinaram, a conselho da Rosa, a cozinheira, esperta como um doutor, largar o petiz nas mãos dadivosas e puras do padre. Tudo eram benefícios nessa solução: livrava-se Chicão das iras da esposa, forrava-se a mulata ao castigo possível do pai, ganhava a criança um protetor capaz de a fazer feliz, coitadinha! Assim, um dia, muito cedo, Chicão pegou no pequeno fardo, atravessou em silêncio a vila silenciosa, e foi largá-lo, com uma chupeta na boca, à entrada da igreja. Depois, chamou o Vito, pô-lo de guarda ao templo, recomendando-lhe, com uma carranca imperativa, que não saísse da sacristia, e foi chamar o padre... O resto sabe-se.

Candeias achou imensa graça à finura dos brutos, e riu-se regaladamente da peça pregada a padre Guilherme de Meneses.

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