5/18/2019

Bernardo Guimarães: romancista e poeta (Ensaio)



Bernardo Guimarães: romancista e poeta

Dizia-me, outro dia, um dos filhos de Bernardo Guimarães, Afonso Silva Guimarães, esse Silva Guimarães autor da magnífica coleção de contos que são "Os Borrachos": se a celebração do centenário natalício do autor de "Ermitão de Muquém" tivesse ocorrido nos dias de hoje, sob o influxo do governo Getúlio Vargas, cioso como é ele das expressões do caráter de brasilidade, teríamos tido, certamente, e com grande fulgor, a revivescência de seu brilho literário de poeta e romancista, com a reedição de suas obras, em parte esgotadas, para a admiração das novas gerações.

Tal afirmativa de um dos filhos de Bernardo Guimarães é duplamente significativa, pois, ao mesmo tempo em que implica um elogio, pelo interesse com que são tratadas as coisas da literatura nacional no governo atual, representa uma queixa pela indiferença com que tem sido tratada uma grande figura das nossas letras, cuja obra marca, de certo modo, "um ponto na evolução do romance nacional", como já foi dito.

Embora situado como melhor poeta do que romancista, por Manuel Bandeira, para quem o poema "O devanear de um cético" "é a produção mais característica da geração a que ele pertenceu", Bernardo Guimarães deixou sulcos profundos no que diz respeito ao romance brasileiro. Aliás, para Agripino Grieco ele foi maior romancista do que poeta.

VELHOS TEMPOS...

Na verdade, Bernardo Guimarães foi antes de tudo um dispersivo. Dispersou tempo, imaginação e talento. Espontâneo, como assinalou Sílvio Romero, ele era também um contemplativo. Amava a natureza, as longas caminhadas, os campos e a floresta, em que se perdia em busca de material para as esculturas que esculpia a canivete em pedaços de madeira. Absorvia-o a natureza e quebrava-se assim a continuidade nos seus trabalhos literários.

Encheu, sim, foi a vida de episódios, naqueles tempos de Álvares de Azevedo, Aureliano Lessa e outros, em São Paulo, onde chegara conduzindo um escravo e uma mesada limitada em vinte mil réis, o que o obrigava, para esticá-la, a lecionar latim e francês.

No meio daquela turma de "byronianos" em que o lema era "The best of life is intoxication ", foi ele um dos mais fervorosos seguidores  desse romantismo a que tudo se sacrificava.

É dessa época, em que os "bestialógicos" andavam na ordem do dia. O seguinte episódio pitoresco e '"boêmio, espalhara-se a notícia de que Álvares de Azevedo  havia  morrido.  Sobre  uma mesa arranjada às pressas o poeta jazia estendido na "república", enquanto os amigos, ao mesmo tempo que choravam aos quatro ventos iam fazendo uma "coleta" para o "enterro". Horas se passaram. Noite alta,  Álvares de Azevedo continuava "morto", enquanto, apurada a renda, numa sala vizinha, os amigos se banqueteavam com bons vinhos e chorosos discursos. Bernardo Guimarães improvisava um dos seus "bestialógicos" fazendo o elogio ao "morto" amigo. Dizia em dado momento o orador: "Álvares de Azevedo não morreu; o seu espírito está entre nós..." Coincidiu que Álvares de Azevedo, cansado de "estar morto", ergue-se e, com seu aspecto macilento, surgia mesmo, à porta para onde apontava o braço de Bernardo Guimarães. Pavor, alarme, gritos, enfim tudo que era de prever nos que não estavam ao par da pilhéria. Até a amante do autor de "Uma noite na Taberna", uma loira de belos cabelos, chorosa, atira-se pela janela, em fuga doida pela rua...

DISPERSIVO E DESINTERESSADO...

Dessas noitadas  de boemia do  romancista de "Escrava Isaura" havia de, surgir o mal que um dia o haveria de matar.

Dispersivo. Dispersivo e desinteressado. Um desinteresse que chegou ao ponto de recusar várias vezes o título de barão que lhe oferecia o imperador. Barão sem baronato...

Comentando essa "oportunidade", dizia-me outro dia Silva Guimarães, que me forneceu estas notas: "Foi pena (dizia-me sorrindo). Ter-me-ia situado melhor, mesmo na República, como filho de barão, do que como filho de poeta."

Byroniano como poucos foi de verdade Bernardo Guimarães. Se Byron atravessava os Dardanelos para passar a noite com a amada na Turquia asiática, o poeta de "O devanear de um cético", bom nadador, nos seus tempos de solteiro, juiz municipal em Catalão, fronteira de Goiás, estivesse o Paranaíba calmo ou revolto, atravessava-o a nado para dormir em Minas Gerais...

Dispersivo. Entretanto, deixou Bernardo Guimarães, ao falecer, em 1884, aos 59 anos, além das obras já citadas, mais "A voz do Pajé", "Maurício, ou os paulistas em São João del-Rei", "O bandido do rio das Mortes", entre outras...

Numa época em que o indianismo era moda, Bernardo Guimarães focalizava paisagens, ambientes interiores e costumes característicos da nossa terra e da nossa gente.


MILTON PEDROSA
27 de abril de 1944.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...