5/18/2019

Leandro Gomes de Barros e a chave do mundo (Ensaio)



A chave do mundo


Agora que o mundo volta a sofrer inquietações alarmantes, recuemos aos fins do século passado, e aos princípios deste século XX, na apreciação de um dos mais populares poetas do nordeste, o repentista pernambucano Leandro Gomes de Barros.
 
Esse incorrigível boêmio do Recife, ao balancear a primeira década do século que tantas esperanças trouxe ao povo, declarou que “o mundo trancou-se e perdeu-se a chave”. Não sabemos se o leitor já ouviu falar em Leandro Gomes de Barros. Seja como for, permita-nos uma página em homenagem a esse poeta que teve tão vasta visão acerca do mundo, dos séculos e dos homens.

Leandro era um filho do povo. Versejava sem conhecer métrica, nunca ouviu falar em alexandrinos ou hemistíquios... Fazia versos com a espontânea naturalidade com que uma ave canta, quebram ondas as praias, murmuram os regatos nos leitos de pedra. Suas poesias corriam os sertões de Alagoas aos do Ceará, enfeixadas em brochuras que eram vendidas a um tostão. Dentre os seus mais famosos poemas um fez época e conquistou celebridade: “O Casamento do sapo”, joia folclórica de encantadoras tintas.

Os maiores acontecimentos políticos, sociais, religiosos ou científicos, eram imediatamente descantados na lira de Leandro com muita graça e poesia. Houve em Alagoas um rival: Pacífico Pacato Cordeiro Manso; mas o nome do pernambucano conquistou maior fama.

Leandro era incorrigível. Boêmio por vocação, gostava de saborear seus goles de pinga tendo produzido muitos versos em honra a Baco e seus canaviais pernambucanos. Para mostrar o estro do aedo popular, reproduzimos aqui a primeira estrofe de um martelo em louvor do álcool:

A bebida é boa,
Cheira e é gostosa.
É tão saborosa,
Que ninguém enjoa.
Então, a pessoa
Que dá-se com ela,
Não fica amarela,
No sente fastio.
Então, quando há frio.
Oh! que vida aquela?

Dentre as pessoas de sua família havia uma tia que chorava de desgosto ao vê-lo embriagado, e muitas vezes o censurava em público, condenando-lhe o vício da bebida. Leandro, porém, não se corrigia e se vingava em versos como estes:

Chega minha tia,
Derramando prantos,
Dizendo que os santos
Nenhum só bebia.
Eu digo: ó titia.
Você tá danada,
Deixe de mancada,
Eu sou verdadeiro,
Se não tem dinheiro,
Eu pago a bicada.

Numa noite, lá para as bandas de Caxangá, festejava-se o dia da padroeira. O dono da casa, sabendo que ele era poeta, pediu-lhe uma saudação em verso para glorificar Nossa Senhora. O poeta não fez de rogado e pronunciou, sem pestanejar, estes versos diante do altar que se erguia na sala de visitas:

Lá no céu Maria é tudo.
Emblema da Divindade,
Coração vivificante,
No seio da Eternidade
Dom que nenhum mortal tem,
Remédio que nos faz bem,
Origem da Caridade.

Na passagem do século XIX para o XX houve no Recife festa de rua como se fosse um carnaval. Toda a cidade esteve desperta e as ruas cheias de povo a pisar tapetes de folhas de canela e a exalar seu forte aroma. Arcos de triunfo, postes de iluminação adornados de palmas, bandeirolas de papel por todo o canto, coretos por toda parte, música, alegria, entusiasmo do povo em delírio.

Anos depois lavrou em Pernambuco tremenda crise econômico-financeira. Não havendo dinheiro legal, circulava por toda parte uma espécie de “vale” a que deu “o nome de “cascalho”, tendo os primeiros vindo do engenho “Provisório”, que emitia notas de alto valor, “cascalhos” de 500 réis... E Leandro glosou a época nestes versos de saboroso pitoresco, e sempre atuais, embora de métrica defeituosa, talvez por defeito de impressão:

Neste século novo
Nos meteu o pau,
Chegamos a um grau,
Que não há quem se salve.
Não há homem que cave,
A sorte enterrou-se
O mundo trancou-se
E perdeu-se a chave.

Já velho, evitava a cachaça. Certa vez insistiram com ele para que provasse uma nova "marca de monjopina”, tendo o poeta mal tocado os lábios no copo, os companheiros mofaram dele e perguntaram se nunca bebera. Leandro respondeu no fogo da pólvora:

No tempo que eu era moço,
Que tinha minha saúde,
Aproveitei bem meu tempo,
Bebi a cana que pude,
Cana no bucho mexia
Que só água no açude.

Era Leandro Gomes de Barros um poeta verdadeiramente do povo. Marcou época, celebrou festas, bebeu muita cachaça, fez rir e fez chorar. Morreu velho e seu nome nem mesmo em “notícia” se converteu.

Meditando na atual situação do mundo, com assembleias internacionais reunidas para defender a paz; com delegações de todos os povos credenciados pela Organização das Nações Unidas, para que se elabore um novo Código Moral para os Direitos do homem: com as batalhas da eloquência e em dialética a vibrar em todas as línguas do mundo, irradiadas desde a França conturbada pela política e pelos choques das massas proletárias; examinando o panorama em que se agita a humanidade, que julga e pune com a forca os criminosos da última guerra, e já volta a falar com insistência em uma nova conflagração; pensando nos quinze milhões de famintos e desabrigados que erram pela Europa esquálida à procura de um refúgio para escapar da morte pela inanição, veio ao nosso espírito aquela profecia do "Homero pernambucano", ao analisar o que nos deu o século XX logo que decorreram os seus primeiros anos:

O mundo trancou-se
E perdeu-se a chave.

A mensagem é perfeita. Imaginemos uma pessoa que entra numa casa forte, com um dos cofres à prova de todos os assaltos, e que por inadvertência deixa que a porta feche às suas costas. Além dessa catástrofe, não se sabe onde está a chave. O que será da pessoa que está lá dentro? E se irromper um incêndio?

Pois essa pessoa, leitor, é a humanidade de hoje. Novas tempestades ameaçam o mundo e, se não houver mútuos entendimentos, compressões e renúncias recíprocas, não há quem se salve, o mundo trancou-se o perdeu chave...

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RENATO DE ALENCAR
Revista da Semana, 6 de novembro de 1948.
Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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