5/04/2019

Garcia Márquez: poeta, repórter, romancista (Ensaio)



Garcia Márquez: poeta, repórter, romancista
“Viver para contar”
(Editora Record - 2003)
Vivir para contarla, part one. Assim poderia se chamar o livro de memórias de Gabriel Garcia Márquez. Aliás, se você já o conhece das diversas obras de ficção e reportagens que circulam por aí, prepare-se para reler tudo de novo, tudo por causa deste livro autobiográfico. Nele Gabo – como é chamado pelos íntimos – pretende desmemorializar seus primeiros passos como escritor de reportagens e editoriais – e também a vivência, o entrelaçamento social, os entraves políticos ou não, em que se viu enredado durante a juventude, nos primórdios da vida literária. Primeiro como poeta, por supuesto...
Pecado inominável: a edição sai sem nenhuma nota de pé de página nem índice remissivo. Sem esse oxigênio, imprescindível alimento para as obras memorialistas, sua maior virtude passa a residir nas raras, mas importantes dicas sobre o ato da criação, tanto de ficção (sobre a qual Gabo confessa jamais ter total domínio), até nos afazeres domésticos, como deve o escritor proceder, deveres e obrigações para com a vida jornalística. A gente entra no livro de chofre – como se fosse uma de suas ficções – quando termina se tem a impressão de estar na plataforma do metrô à espera do vagão com a part two.
Gabriel Garcia Márquez, por não conseguir se mostrar igual aos demais autobiografadores, relata esta parte de sua vida de modo tão confuso quanto suas ficções. “Viver para contar” não é nem memória nem autobiografia, é uma reportagem sobre o passado. A história começa não se sabe quando, dá voltas ao seu mundo em oitenta ou mais dias, circula sobre rodas como um skatista, um calendário einsteiniano...
Nessa volta e meia o leitor vai sendo absorvido, digerido, assumindo vozes de autor e personagem. Sem carecer de demônios interiores basta a Gabo discorrer sobre as entidades vivas – parentes, afins, vizinhos, aderentes – circulam nas casas, nas ruas, nas igrejas, nos rios, nas cidades eternas, para realizar o tempo passado. Aracataca é o campo arado, a seara e a colheita.
Durante toda a existência Gabo foi perseguido por uma congênita timidez. Por isso sempre se saía bem no jornalismo, em matérias informativas e editoriais feitas coletivamente, ao abrigo do anonimato. Essa timidez incurável faz com que considere os seus contos imperfeitos e traz dificuldade de narrar a própria vida existida – que afinal é a dele mesmo.
O resultado é que algumas passagens se mostram dúbias, indefinidas, no lusco-fusco, como nas estranhas ficções do mago colombiano. Nessas relembranças o espaço tempo não obedece a nenhum ritual senão o da imaginação e resulta que as memórias de Gabo seguem num zigue-zague perpétuo, assim como vai esta croniqueta. Elucidem-na.
Capítulo a parte merece a tradução. O espanhol tem sutilezas capazes de atropelar qualquer tradutor mais distraído. Esta edição, definitivamente feita às pressas, na ânsia de dispor a obra nas livrarias no ano do lançamento, minou a tradução com traças e cascalhos, alguns quase invisíveis, outros quase insensíveis. Quem leu a edição brasileira do inesquecível romance Cem anos de solidão na tradução impecável de Eliane Zagury, há de concordar que Gabo merecia coisa melhor. O paradoxo é que essas memórias são imprescindíveis para conhecê-lo. Comprar, ler... E aguardar a parte II.

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