5/04/2019

Memórias são como balas (Ensaio)



Memórias são como balas
“Confesso que vivi”
(Editora Bertrand Brasil - 2010)
Pablo Neruda aproveitou bem esse seu contar de memórias, que começa com as andanças de um jovem buscando a vida nas florestas chilenas, até chegar ao senhor barrigudo exilado que retorna para morrer na “pátria doce e dura”.
Antes mesmo de ler esse ‘Confieso que he vivido’, escrevi algures um artigo no qual redescobria o lado mais humano da poesia de Pablo Neruda. Na verdade o escrito refletia ardorosa reação a uma referência de Floriano Martins, qualificando Neruda como “um grande mal poeta”...
No artigo citado (Pablo Neruda ou a Poética do coração) eu dizia:
“Como se mede um poeta? Como se mede, a uma distância considerável o poeta e sua obra? Retiram-no do espaço e tempo a que estava confinado, do qual fazia parte? Exclui-se a geografia física, foco da paisagem em derredor? Elimina-se a ideologia que entendeu, teve afinidade e abraçou? Apaga-se a utopia da igualdade social que fere e machuca quando se torna consciente? Destrói-se a construção política que assimilou, o sonho que erigiu a sangue e suor? Como se mede o poeta sem misticismo, sem religiosidade, sem eternidade? A imortalidade de Neruda vai durar porque, no momento em que lhe foi dada a bênção das musas, soube interpretar como nenhum o anseio da terra e dos povos em derredor. No momento certo trouxe à lembrança todo o mal que o invasor (especialmente o espanhol), causou. Sem leviandade.
Essas considerações vêem empiricamente após leitura do artigo de Floriano Martins “Neruda”. Parece que para alguns o poeta chileno representa um ícone – mas também um incômodo. O que se pretende é destotemizá-lo. Não se pode derrubar o altar de qualquer um senão daquele que conseguiu abalar a estrutura da poesia hispânica. Frívolo, inconsequente, desmesurado. Tudo que Floriano Martins escreveu e citou de uma dezena de críticos importantes a respeito de Pablo Neruda é absolutamente verdadeiro”.
Pablo Neruda ampliou as fronteiras da poesia latino-americana. Ninguém reconhece oficialmente, mas existe um abismo entre a poesia brasileira e a poesia hispano-americana – como de resto na política e nas artes em geral. Com uma voz ao mesmo tempo índia e européia, o poeta dedicou-se a cantar o continente – Canto General – sem esquecer as raízes ibéricas. Por ocasião da impressão dramática do seu livro Espanha no coração – sobre o qual Neruda dedica nas memórias todo o Caderno 5 – o poeta assiste à derrocada da república espanhola para as tropas do general Franco. Na mesma ocasião que Federico Garcia Lorca é fuzilado em Granada, todo o batalhão formado por artistas, poetas, escritores, pintores, abandona a as trincheiras partindo para o exílio na França. Entre nós, o poeta Manuel Bandeira reflete de imediato o sentimento universal de liberdade que desponta naquela poesia:

NO VOSSO E EM MEU CORAÇÃO
Manuel Bandeira

Espanha no coração:
No coração de Neruda,
No vosso e em meu coração.
Espanha da liberdade,
Não a Espanha da opressão.
Espanha republicana:
A Espanha de Franco, não!
Velha Espanha de Pelayo,
Do Cid, do Grã-Capitão!
Espanha de honra e verdade,
Não a Espanha da traição!
Espanha de Dom Rodrigo,
Não a do Conde Julião!
Espanha republicana:
A Espanha de Franco, não!
Espanha dos grandes místicos,
Dos santos poetas, de João
Da Cruz, de Teresa de Ávila
E de Frei Luís de Leão!
Espanha da livre crença,
Jamais a da Inquisição!
Espanha de Lope e Góngora,
De Goya e Cervantes, não
A de Filipe Segundo
Nem de Fernando, o balandrão!
Espanha que se batia
Contra o corso Napoleão!
Espanha da liberdade:
A Espanha de Franco, não!
Espanha republicana,
Noiva da revolução!
Espanha atual de Picasso,
Do Casals, de Lorca, irmão
Assassinado em Granada!
Espanha no coração
De Pablo Neruda, Espanha
No vosso e em meu coração!

(Belo Belo)

E continuo, no meu artigo, tentando entender o porquê de comparar Neruda a Vicente Huidobro, um poeta que não tinha a mínima ligação emocional com as raízes índias do Chile – que são fundas. Pois neste Caderno 5 das Memórias o próprio Pablo Neruda elucida, sem mágoa, essa contradição, quando descobre as intrigas que Huidobro fazia, enchendo a cabeça de César Vallejo ‘de invenções contra mim’...
Além do mais, existe a necessária contradita temática, tão necessária à poesia:
“O próprio Floriano Martins o reconhece ao citá-lo, quando comparado com o classicismo moderno de Vicente Huidobro. Mas, dá para imaginar a leitura de Gonçalves Dias sem a ótica edênica e indígena que sempre o acompanhou? Como chegaria até nós a leitura de Casimiro de Abreu sem a viagem feiticeira de uma só via? Como seríamos capazes de ler Joaquim de Sousândrade sem a contingência intercontinental a que foi submetido, impregnando-o de um futurismo paranormal? E mais próximo a nós, como ouviríamos Mário de Andrade, se excluído do urbanismo erótico desenfreado a que se escravizou como um sacrificado? E ler Brecht sem o marxismo dialético? Eis um exercício que se pode fazer ad infinitum, à exaustão, esgotando todas as fábulas possíveis. Finalmente, como não se pode falar mal de un pequeño malo poeta, vamos crescer à custa de un gran malo poeta – pois tudo tem princípio. Em frente!”
No entanto, essa digressão cai por terra quando se lê o Caderno 11 das memórias “A poesia é um ofício”. A criatura supera a criação? Não neste caso, porque Pablo Neruda, em pleno exercício de sua profissão, refletiu muito sobre os poetas e a poesia de seu tempo. Escolheu com a cabeça fria (se pode dizer-se isso de Pablo Neruda) o caminho que, como poeta, tinha escolhido para trilhar. O mundo e o homem estavam em sua agenda poética, a política e o humanismo, o espírito e a vida, o sonho e a utopia. Como sempre a escolha recaiu sobre o tempo vivido.
Diz o poeta numa nota introdutória:
Estas memórias ou lembranças são intermitentes e, por momentos, me escapam porque a vida é exatamente assim. A intermitência do sonho nos permite suportar os dias de trabalho. Muitas de minhas lembranças se toldaram ao evocá-las, viraram pó como um cristal irremediavelmente ferido.
Eu:
Neruda traz na poesia a tradição dos payadores, poetas populares cuja matéria prima é a emoção.
Pablo Neruda:
As memórias do memorialista não são as memórias do poeta. Aquele [o memorialista] viveu talvez menos, porém fotografou muito mais e nos diverte com a perfeição dos detalhes: este [o poeta] nos entrega uma gaveta de fantasmas sacudidos pelo fogo e a sombra de sua época.
Talvez não vivi em mim mesmo, talvez vivi a vida dos outros.
Eu:
Algo que se pode dizer de Neruda – um tiquinho parecido com Mário de Andrade – é que poeta como ele não existe mais. Ninguém mais adota a poesia do coração, que parece com o evangelho: uma poética estranha e familiar, ao mesmo tempo ingênua e amiga. Ninguém faz a poesia que significa “amor à beleza”, essa beleza que se confunde com o bem. O que diremos da poética do coração? A poética do coração é essencialmente a interpretação contemplativa da vida. Simplificando e fazendo abstração das diferenças, pode-se dizer que a poética do coração opõe a corrente ativa, à corrente intelectualista e monástica, sem deixar de colocar a liberdade como fundamento. Preconiza fundamentalmente um caminho mais curto e mais fácil de poética, de volta ao reino interior, para se impregnar de expressões familiares. O método não se diz inédito, invoca toda uma tradição, menos concernente à vida poética solitária, em favor da solidariedade. O poeta “reconduz o espírito ao coração” e “une-o à alma”. Variante de fórmulas clássicas atualizadas em nosso tempo, a poética do coração não é algo novo e sim baseado em perspectivas anteriores. Trata-se de “guardar o coração pelo espírito” e “reconduzir o espírito da razão para o coração”.
Pablo Neruda foi uma decepção para esses críticos, que são tenazes e intransigentes na análise técnica e erudita, mas que se mostram bem fracotes quando esbarram naqueles que escapam do academicismo tipo cu-de-ferro e alcançam um nível de popularidade. Pablo Neruda – popular e ao mesmo tempo erudito – ganhou o Prêmio Nobel como uma comenda de guerra. Em suas memórias ele confessa ter preferido viver a vida de seu tempo, defender a sua pátria e o seu povo, a submeter-se à tirania, tanto literária quanto política, que lhes eram impostas de cima para baixo.
Do que deixei escrito nestas páginas se desprenderão sempre – como nos arvoredos de outono e como no tempo das vinhas – as folhas amarelas que vão morrer e as uvas que reviverão no vinho sagrado.
Minha vida é uma vida feita de todas as vidas: as vidas do poeta.
Não é preciso dizer mais nada, mas, sim, totalmente necessário continuar lendo as poesias de Pablo Neruda, que já fazem parte do poemário popular latino-americano e se completam com suas memórias.
Rio de Janeiro, Cachambi, 23 de janeiro de 2012.

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