5/04/2019

Guimarães Rosa - O espelho (Ensaio)


Guimarães Rosa:  o espelho
Conto como o conto foi...
Diante do espelho:
A estrutura narrativa do conto, entre os subterfúgios da criação, exige de antemão clareza e concisão. A narrativa linear do conto, de princípio cobre essa premissa. Mas a linearidade do conto narrado na primeira pessoa é cheia de armadilhas. A narrativa linear na primeira pessoa dirigida a um contraponto imaterial, assexuado, tira e dá liberdade ao narrador. Este espelho de que tratamos aqui não reflete necessariamente o valor científico. Portanto, o ouvinte invisível e mudo é incapaz de traduzir as injunções induzidas pelo autor, com base em séries de raciocínios e intuições?
Sigam-me:
O espelho é simbologia pura. Através do espelho Alice se transportou para o país das maravilhas, que outras não eram senão derivadas de raciocínios e intuições. Narciso morreu debruçado no espelho. O vampiro e os mortos não se refletem no espelho. Mas aqui não se pretende o espelho vulgar, o espelho químico, o espelho que serve para barbear, maquilar, pentear a ilusão cotidiana. O espelho honesto que reflete o rosto, seu aspecto próprio, a imagem fiel. Não. Reporto-me ao transcendente. Mas, cabe nesta realidade perceber o transcendente, resultante do concreto?
Um milagre:
Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo. Entre os milagres somam-se os fenômenos sutis. Pois é disso que tratamos. Enquanto a magia do tempo transporta para um futuro invisível, vindos de um passado que se esfumou, vivendo no mesmo dia a dia feito de fragmentos de tempos passados e vindouros também não visíveis – enquanto isso esqueço que o espelho é o olhar. O tempo é mágico, o olhar é o espelho. Desconfie do que os olhos veem. Sabia que a ninguém é devido o dom de ver o rosto de outra pessoa e o seu próprio reflexo no espelho?
A descoberta:
Por começo, a criancinha vê os objetos invertidos, daí o seu desajeitado tatear. Donde se deduz que os olhos não são as portas da alma, mas o portal e o porvir de todos os enganos. O espelho, como olhar, acompanham a premissa: mesmo o espelho que nos reflete todos os dias não é diferente dos espelhos do parque de diversões que deformam a criatura. Enquanto ali sorrimos do monstro que não somos, no cotidiano é o olhar que nos protege da criatura deformada. Sob a proteção feiticeira do olhar, sobrevivemos ao espelho sem medo. Responda rapidinho: os animais e os anjos se miram no espelho?
O caçador:
Quem procura enigmas encontra enigmas. Deixe a mente esvoaçar. Não caia na tentação de remover os bloqueios visuais que a sábia natureza se nos impõe. Permaneça com os olhos submetidos a uma gaiola como o passarinho. Os olhos domados, sim, são a janela para a paisagem, a luz... Saiba que os olhos da gente não têm fim, desde que não se submeta a transar com novas e desconectadas percepções. Do contrário, preste atenção, o que vê no espelho será o bicho que dormita dentro de você. Assim, com a mente distraída, fala sério!
Preste bem atenção! Que bicho é esse aí pressentido? Refletido num relance?
A caça:
Meditação transcendental. Ioga. Vidas passadas. Concentração. Espiritismo. Reencarnação. Metempsicose. Análise dos sonhos. Pirâmides. Cromoterapia. Os cristais. Ajuntados os elementos naturais com as coligações empíricas para chegar ao supra-sumo do espelho: o olhar não-vendo. E perceber assim, o elemento hereditário – as parecenças com os pais e avós – que são também, dos nossos rostos, um lastro evolutivo residual. A Prudência é um espelho rodeado por uma serpente. Num dia qualquer a imagem desaparece do espelho. É prudente parar a investigação. Eu era - o transparente contemplador?
O não ver:
Tudo se transforma em claridade, luz misteriosa que não se vê, espelho no qual nada se reflete, apenas a luz, depois o raio, arco-íris, raio que precede o trovão, halo sobreposto ao corpo do santo, luminosidade da alma encantada, anel luminoso da cabeça de Jesus, raio que circunda os vegetais, fulgor dos corpos imantados, luz da energia, clarão do desconhecido, brilho da lâmpada, luminescência do fiel que adora, sol dos sóis, fogo das lavas, radiação do átomo, lume primordial, cintilação de brasa, tremular de tocha. Que luzinha, aquela, que de mim se emitia, para deter-se acolá, refletida, surpresa?
Atrás do espelho:
Albert Einstein contou que o universo é da forma de uma bolha de sabão. Na suposição de que o nosso olhar alcançasse o fim veríamos refletida nossa própria nuca. Chegamos a uma outra fórmula da mesma conclusão. Na qual o espelho é a vida. A existência também é da forma de uma bolha de sabão, uma bolha de espelho, capaz de todos os reflexos: gente, bicho, alma, santo, monstro. Reflexo de mim mesmo, ainda não rosto, não delineado, emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal. E era não mais que: rostinho de menino, de menos-que-menino, só. Só?
Rio de Janeiro, Cachambi, 9 de julho de 2013.

OMELETE SEM OVOS
Entre as finalidades da estilística, segundo V. V. Vinogradov, encontra-se a tarefa de “conhecer o estilo individual do escritor, independentemente de toda tradição, de toda obra contemporânea”. Não obstante, o próprio Vinogradov aconselha violar esse [e todos] os demais princípios, mesmo porque, “as obras de um escritor escritas em épocas diferentes não se projetam imediatamente no mesmo plano. Devemos descrevê-las segundo sua ordem cronológica” (id).
Ora, de Guimarães Rosa sabemos que, “partindo da apreensão do magma regional, elevou-se à universalidade cósmica, através da manipulação de mitos regionais de significação universal, graças as novas dimensões que lhe emprestou a sua penetração psicológica”.
Cronologicamente o conto “O espelho”, que integra o volume de contos “Primeiras estórias” (1962), que reúne 21 contos. Nos textos, as pesquisas formais características do autor, uma extrema delicadeza e o que a crítica considera "atordoante poesia".
Situa-se depois de “Sagarana” (1946), “Com o vaqueiro Mariano” (1952) e do romance “Grande sertão: veredas” (1956). Esse conjunto de obra consagrou Guimarães Rosa como um artífice da linguagem, da pesquisa etimológica, estendendo-o ao campo etnográfico, mitológico e folclórico.
A crítica moderna brasileira posterior ao Formalismo Russo – escola a que pertence o mentor destas notas – seguiu as novas regras de estilística, sem deixar de preservar a tradição. Com efeito, a crítica literária brasileira assumiu a universidade antes mesmo de enterrar os comentaristas que preferiam o ufanismo da amizade e os efeitos dos fogos de artifício para enaltecer mais o gênio do autor que a perenidade da obra.
Difícil estabelecer um marco, mas certamente as lições de Agripino Grieco foram suficientes para libertar a crítica literária das amarras. Pode-se (mas não se deve) enterrar esse ciclo passadista com Silvio Romero. Depois de Grieco Alceu Amoroso Lima e Afrânio Coutinho estabeleceram os alicerces da crítica da literatura brasileira.
Como base analítica, era o texto, entendido como artifício narrativo, a técnica, a imagística, a caracterização, estilo e convenções dramáticas, intencionais ou não. Para se firmar como dogma, a nova atitude tratou de desacreditar aquela crítica exclamativa de que se falou atrás. Agora era mais importante ensinar a ler, traduzir o que havia de literatura embutida na obra, interpretar o significado intrínseco, descobrir os mecanismos da linguagem, a literatura dentro da linguagem.
Eleva-se o primado do texto sobre a premissa do tema. Esse método de estudo estilístico, que Vinogradov chama de funcional e imanente, tem como base “o estilo de um ciclo formado de obras heterogêneas de um escritor, representado como um sistema de procedimentos estilísticos comuns a todas as suas obras”. (Id.) Quem provar que o procedimento pode ser adotado para análise da obra de Guimarães Rosa ganha um doce.
No entanto, navigare necessari est.

AS ARTES DO CONTO
Em “O Espelho” Guimarães Rosa rompe com a linguagem experimentada nas obras anteriores, como por exemplo, em “Meu tio Iauaretê”, de Sagarana. Neste caso Rosa provoca uma violenta ruptura com a língua padrão. Agora, não. Mas tecnicamente há uma semelhança, no sentido em que existe ali também um “diálogo” que se mantém até ao fim apenas com a fala do narrador. Não há como recusar a expressão “monólogo”.
Ainda mais quando o monólogo se torna uma realidade, apesar [ou em razão] da presença invisível e estática da segunda pessoa na narração. Busca-se provar também que é inverossímil todo solilóquio implica[r] em uma emissão dialógica, mesmo que o interlocutor esteja em um plano imaginário e/ou idealizado. (Ruy Perini) Aqui não há metamorfose: é apenas um espelho casual, para que a narrativa não se perca no espaço. A fala do narrador atinge o leitor diretamente, sem intermediários.
Em “O espelho” Guimarães Rosa segue as normas técnicas da boa literatura. Aproxima-se fisicamente da A.B.L., tem a provar que não é um escritor regionalista, sem deixar perceber que ser regionalista é uma pecha. É tempo de regionalismo em todo o Brasil, da Amazônia aos Pampas. Neste caso não há ruptura linguística, mas aparentemente, sem o perceber, ele se aproxima de outro vício imanente. Na mesma época importa-se da Europa uma literatura que rompe os limites espaciais: o realismo fantástico.
Enquanto que Gabriel Garcia Márquez realiza a mais fantástica incursão no gênero, Guimarães Rosa caminha por trilhas avançadas na arte de narrar: tem um interlocutor presente/ausente, interlocutor não nomeado, interlocutor silencioso, interlocutor/leitor, interlocutor que pensa que ouve. Tem o narrador do tema, narrador da metamorfose, o narrador radical, narrador vivendo onça, o narrador verdadeiro. Tem um tema que beira o mágico, o fantástico, o verdadeiro e o inverossímil e com ele trafega entre a ciência e a magia.
O espelho é também um narrador invisível: quando reflete a verdade, quando reflete a mentira, quando reflete o suposto. Não existe um objetivo direto na narrativa a não ser aquele representado pelo círculo: humanizar, animalizar, bestializar desumanizar e de novo humanizar – pelo pecado original, resquício de vida humana. Não há interesse na divinização da mitologia universal do espelho e do olhar como fator de progresso, também de desgraças.
O espelho é o olhar, o olhar é o espelho. A persona é tanto o que reflete, quanto o que absorve por reflexo, corpo do corpo, sombra da sombra.

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Referências e Consultas
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CANABRAVA, Euríalo – Análise da estrutura interna
COUTINHO, Afrânio – Enciclopédia de Literatura Brasileira
HOLANDA, Sérgio Buarque – http://almanaque.folha.uol.com.br/
HOUAISS, Antônio – Correntes cruzadas [artigo sobre o livro de AC] (1954)
PORTELLA, Eduardo - Em torno de um conceito de crítica literária
JAKOBSON, Roman – Biografia in www.pt-wikipidia.org
MARTINS, Heitor – Do Barroco a Guimarães Rosa (1984)
MENEZES, Edna - A viagem pelo labirinto - http://www.revista.agulha.nom.br/
MERQUIOR, José Guilherme – Formalismo e tradição moderna
NOVA CRÍTICA – http://www.triplov.com/hipert/pratica_critica.htm
PERINI, Ruy - Da escrita e da escritura - http://www.revista.agulha.nom.br/
RÓNAI, Paulo – Tutaméia - João Guimarães Rosa
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Imagem:Revista Manchete, nº 234, 13 de outubro de 1956.

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