Guimarães
Rosa: o espelho
Conto como o conto foi...
Diante do espelho:
A estrutura narrativa do conto, entre os
subterfúgios da criação, exige de antemão clareza e concisão. A narrativa
linear do conto, de princípio cobre essa premissa. Mas a linearidade do conto
narrado na primeira pessoa é cheia de armadilhas. A narrativa linear na
primeira pessoa dirigida a um contraponto imaterial, assexuado, tira e dá
liberdade ao narrador. Este espelho de que tratamos aqui não reflete
necessariamente o valor científico. Portanto, o ouvinte invisível e mudo é
incapaz de traduzir as injunções induzidas
pelo autor, com base em séries de
raciocínios e intuições?
Sigam-me:
O espelho é simbologia pura. Através do
espelho Alice se transportou para o país das maravilhas, que outras não eram
senão derivadas de raciocínios e
intuições. Narciso morreu debruçado no espelho. O vampiro e os mortos não
se refletem no espelho. Mas aqui não se pretende o espelho vulgar, o espelho
químico, o espelho que serve para barbear, maquilar, pentear a ilusão
cotidiana. O espelho honesto que reflete o rosto, seu aspecto próprio, a imagem
fiel. Não. Reporto-me ao transcendente.
Mas, cabe nesta realidade perceber o transcendente, resultante do concreto?
Um milagre:
Quando
nada acontece, há um milagre que não estamos vendo. Entre os milagres somam-se os fenômenos sutis. Pois é disso que tratamos. Enquanto a magia do
tempo transporta para um futuro invisível, vindos de um passado que se esfumou,
vivendo no mesmo dia a dia feito de fragmentos de tempos passados e vindouros
também não visíveis – enquanto isso esqueço que o espelho é o olhar. O tempo é
mágico, o olhar é o espelho. Desconfie do que os olhos veem. Sabia que a
ninguém é devido o dom de ver o rosto de outra pessoa e o seu próprio reflexo
no espelho?
A descoberta:
Por
começo, a criancinha vê os objetos invertidos, daí o seu desajeitado tatear. Donde se deduz que os olhos não são as portas da
alma, mas o portal e o porvir de todos os enganos. O espelho, como olhar,
acompanham a premissa: mesmo o espelho que nos reflete todos os dias não é
diferente dos espelhos do parque de diversões que deformam a criatura. Enquanto
ali sorrimos do monstro que não somos, no cotidiano é o olhar que nos protege
da criatura deformada. Sob a proteção feiticeira do olhar, sobrevivemos ao
espelho sem medo. Responda rapidinho: os animais e os anjos se miram no
espelho?
O caçador:
Quem procura enigmas encontra enigmas.
Deixe a mente esvoaçar. Não caia na tentação de remover os bloqueios visuais
que a sábia natureza se nos impõe. Permaneça com os olhos submetidos a uma
gaiola como o passarinho. Os olhos domados, sim, são a janela para a paisagem,
a luz... Saiba que os olhos da gente não
têm fim, desde que não se submeta a transar com novas e desconectadas
percepções. Do contrário, preste atenção, o que vê no espelho será o bicho que
dormita dentro de você. Assim, com a mente distraída, fala sério!
Preste bem atenção! Que bicho é esse aí
pressentido? Refletido num relance?
A caça:
Meditação transcendental. Ioga. Vidas
passadas. Concentração. Espiritismo. Reencarnação. Metempsicose. Análise dos
sonhos. Pirâmides. Cromoterapia. Os cristais. Ajuntados os elementos naturais
com as coligações empíricas para chegar ao supra-sumo do espelho: o olhar não-vendo. E perceber assim, o elemento hereditário – as
parecenças com os pais e avós – que são também, dos nossos rostos, um lastro
evolutivo residual. A Prudência é um espelho rodeado por uma serpente. Num
dia qualquer a imagem desaparece do espelho. É prudente parar a investigação. Eu era - o transparente contemplador?
O não ver:
Tudo se transforma em claridade, luz
misteriosa que não se vê, espelho no qual nada se reflete, apenas a luz, depois
o raio, arco-íris, raio que precede o trovão, halo sobreposto ao corpo do
santo, luminosidade da alma encantada, anel luminoso da cabeça de Jesus, raio
que circunda os vegetais, fulgor dos corpos imantados, luz da energia, clarão
do desconhecido, brilho da lâmpada, luminescência do fiel que adora, sol dos
sóis, fogo das lavas, radiação do átomo, lume primordial, cintilação de brasa,
tremular de tocha. Que luzinha, aquela,
que de mim se emitia, para deter-se acolá, refletida, surpresa?
Atrás do espelho:
Albert Einstein contou que o universo é
da forma de uma bolha de sabão. Na suposição de que o nosso olhar alcançasse o
fim veríamos refletida nossa própria nuca. Chegamos a uma outra fórmula da
mesma conclusão. Na qual o espelho é a vida. A existência também é da forma de
uma bolha de sabão, uma bolha de espelho, capaz de todos os reflexos: gente,
bicho, alma, santo, monstro. Reflexo de mim mesmo, ainda não rosto, não
delineado, emergindo, qual uma flor
pelágica, de nascimento abissal. E era não mais que: rostinho de menino, de
menos-que-menino, só. Só?
Rio
de Janeiro, Cachambi, 9 de julho de 2013.
OMELETE
SEM OVOS
Entre as finalidades da estilística,
segundo V. V. Vinogradov, encontra-se a tarefa de “conhecer o estilo individual
do escritor, independentemente de toda tradição, de toda obra contemporânea”.
Não obstante, o próprio Vinogradov aconselha violar esse [e todos] os demais
princípios, mesmo porque, “as obras de um
escritor escritas em épocas diferentes não se projetam imediatamente no mesmo
plano. Devemos descrevê-las segundo sua ordem cronológica” (id).
Ora, de Guimarães Rosa sabemos que,
“partindo da apreensão do magma regional, elevou-se à universalidade cósmica,
através da manipulação de mitos regionais de significação universal, graças as
novas dimensões que lhe emprestou a sua penetração psicológica”.
Cronologicamente o conto “O espelho”,
que integra o volume de contos “Primeiras estórias” (1962), que reúne 21
contos. Nos textos, as pesquisas formais
características do autor, uma extrema delicadeza e o que a crítica considera
"atordoante poesia".
Situa-se depois de “Sagarana” (1946),
“Com o vaqueiro Mariano” (1952) e do romance “Grande sertão: veredas” (1956).
Esse conjunto de obra consagrou Guimarães Rosa como um artífice da linguagem,
da pesquisa etimológica, estendendo-o ao campo etnográfico, mitológico e
folclórico.
A crítica moderna brasileira posterior
ao Formalismo Russo – escola a que pertence o mentor destas notas – seguiu as
novas regras de estilística, sem deixar de preservar a tradição. Com efeito, a
crítica literária brasileira assumiu a universidade antes mesmo de enterrar os
comentaristas que preferiam o ufanismo da amizade e os efeitos dos fogos de
artifício para enaltecer mais o gênio do autor que a perenidade da obra.
Difícil estabelecer um marco, mas
certamente as lições de Agripino Grieco foram suficientes para libertar a
crítica literária das amarras. Pode-se (mas não se deve) enterrar esse ciclo
passadista com Silvio Romero. Depois de Grieco Alceu Amoroso Lima e Afrânio
Coutinho estabeleceram os alicerces da crítica da literatura brasileira.
Como base analítica, era o texto,
entendido como artifício narrativo, a técnica, a imagística, a caracterização,
estilo e convenções dramáticas, intencionais ou não. Para se firmar como dogma,
a nova atitude tratou de desacreditar aquela crítica exclamativa de que se
falou atrás. Agora era mais importante ensinar a ler, traduzir o que havia de
literatura embutida na obra, interpretar o significado intrínseco, descobrir os
mecanismos da linguagem, a literatura dentro da linguagem.
Eleva-se o primado do texto sobre a
premissa do tema. Esse método de estudo estilístico, que Vinogradov chama de funcional e imanente, tem como base “o estilo de um ciclo formado de obras
heterogêneas de um escritor, representado como um sistema de procedimentos
estilísticos comuns a todas as suas obras”. (Id.) Quem provar que o
procedimento pode ser adotado para análise da obra de Guimarães Rosa ganha um
doce.
No entanto, navigare necessari est.
AS ARTES DO CONTO
Em “O Espelho” Guimarães Rosa rompe com
a linguagem experimentada nas obras anteriores, como por exemplo, em “Meu tio
Iauaretê”, de Sagarana. Neste caso Rosa provoca uma violenta ruptura com a
língua padrão. Agora, não. Mas tecnicamente há uma semelhança, no sentido em
que existe ali também um “diálogo” que se mantém até ao fim apenas com a fala
do narrador. Não há como recusar a expressão “monólogo”.
Ainda mais quando o monólogo se torna
uma realidade, apesar [ou em razão] da presença invisível e estática da segunda
pessoa na narração. Busca-se provar também que é inverossímil todo solilóquio implica[r] em uma emissão
dialógica, mesmo que o interlocutor esteja em um plano imaginário e/ou
idealizado. (Ruy Perini) Aqui não há metamorfose: é apenas um espelho
casual, para que a narrativa não se perca no espaço. A fala do narrador atinge
o leitor diretamente, sem intermediários.
Em “O espelho” Guimarães Rosa segue as
normas técnicas da boa literatura.
Aproxima-se fisicamente da A.B.L., tem a provar que não é um escritor
regionalista, sem deixar perceber que ser regionalista é uma pecha. É tempo de
regionalismo em todo o Brasil, da Amazônia aos Pampas. Neste caso não há
ruptura linguística, mas aparentemente, sem o perceber, ele se aproxima de
outro vício imanente. Na mesma época importa-se da Europa uma literatura que
rompe os limites espaciais: o realismo fantástico.
Enquanto que Gabriel Garcia Márquez
realiza a mais fantástica incursão no gênero, Guimarães Rosa caminha por
trilhas avançadas na arte de narrar: tem um interlocutor presente/ausente,
interlocutor não nomeado, interlocutor silencioso, interlocutor/leitor,
interlocutor que pensa que ouve. Tem o narrador do tema, narrador da
metamorfose, o narrador radical, narrador vivendo onça, o narrador verdadeiro.
Tem um tema que beira o mágico, o fantástico, o verdadeiro e o inverossímil e
com ele trafega entre a ciência e a magia.
O espelho é também um narrador
invisível: quando reflete a verdade, quando reflete a mentira, quando reflete o
suposto. Não existe um objetivo direto na narrativa a não ser aquele
representado pelo círculo: humanizar, animalizar, bestializar desumanizar e de
novo humanizar – pelo pecado original, resquício de vida humana. Não há interesse
na divinização da mitologia universal do espelho e do olhar como fator de
progresso, também de desgraças.
O espelho é o olhar, o olhar é o
espelho. A persona é tanto o que
reflete, quanto o que absorve por reflexo, corpo do corpo, sombra da sombra.
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Referências e Consultas:
CANABRAVA, Euríalo – Análise da estrutura interna
COUTINHO, Afrânio – Enciclopédia de Literatura Brasileira
HOLANDA, Sérgio Buarque – http://almanaque.folha.uol.com.br/
HOUAISS, Antônio – Correntes cruzadas [artigo sobre o livro de AC] (1954)
PORTELLA, Eduardo - Em torno de um conceito de crítica literária
JAKOBSON, Roman – Biografia in www.pt-wikipidia.org
MARTINS, Heitor – Do Barroco a Guimarães Rosa (1984)
MENEZES, Edna - A viagem pelo labirinto - http://www.revista.agulha.nom.br/
MERQUIOR, José Guilherme – Formalismo e tradição moderna
NOVA CRÍTICA – http://www.triplov.com/hipert/pratica_critica.htm
PERINI, Ruy - Da escrita e da escritura - http://www.revista.agulha.nom.br/
RÓNAI, Paulo – Tutaméia - João Guimarães Rosa
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Referências e Consultas:
CANABRAVA, Euríalo – Análise da estrutura interna
COUTINHO, Afrânio – Enciclopédia de Literatura Brasileira
HOLANDA, Sérgio Buarque – http://almanaque.folha.uol.com.br/
HOUAISS, Antônio – Correntes cruzadas [artigo sobre o livro de AC] (1954)
PORTELLA, Eduardo - Em torno de um conceito de crítica literária
JAKOBSON, Roman – Biografia in www.pt-wikipidia.org
MARTINS, Heitor – Do Barroco a Guimarães Rosa (1984)
MENEZES, Edna - A viagem pelo labirinto - http://www.revista.agulha.nom.br/
MERQUIOR, José Guilherme – Formalismo e tradição moderna
NOVA CRÍTICA – http://www.triplov.com/hipert/pratica_critica.htm
PERINI, Ruy - Da escrita e da escritura - http://www.revista.agulha.nom.br/
RÓNAI, Paulo – Tutaméia - João Guimarães Rosa
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Imagem:Revista Manchete, nº 234, 13 de outubro de 1956.
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