5/04/2019

Isabel Allende: Conversas com Paula (Ensaio)



Isabel Allende: Conversas com Paula
“A soma dos dias”
(Editora Bertrand Brasil - 2009)
Estava eu lendo o livro Fazes-me falta, da escritora portuguesa Inês Pedrosa, já em adiantado espírito de chateação e estresse (vide o blog anterior sobre o livro), quando minha irmã me emprestou este A soma dos dias, da chilena Isabel Allende. Fazes-me falta me levou, sim, à chateação máxima, porque o livro de Inês Pedrosa foi publicado no Brasil em português lusitano, não sei se por exigência da escritora, ou resultado de uma imitação burra da atitude burra de seu conterrâneo José Saramago. Enfim, sou muito capaz de ler um texto escrito em espanhol, mas não sabia que traz um estresse imensamente maior ler um livro em português lusitano. Por isso, não leio mais – e pronto! 
Neste A soma dos dias, Isabel Allende retoma o diálogo imaginário que manteve com sua filha Paula e resultou no livro de igual título. Com a publicação de Paula, Isabel Allende provocou uma reação brutal e sem precedentes na história da literatura contemporânea. Uma avalanche de cartas, artigos, visitas e manifestações de diversos matizes, explodiram de repente.
O volume de correspondência foi tão grande que acabou por resultar em outro volume, Cartas a Paula, uma coleção representativa dessa correspondência. Esse movimento nunca acaba e se mantém vivo até hoje representado por milhares de cartas que chegam pelo correio, pelo grande volume de e-mail enviado à escritora e pelas manifestações pessoais que recebe. 
Essas memórias são, pois, ainda uma consequência daquela tragédia visceral que abalou a vida da escritora em 1996. Ao dirigir a conversação para a memória de Paula, Isabel Allende expõe a vida que se seguiu a partir daquela data. Só que desta vez, estando a alma já em repouso, o texto flui de modo menos agressivo, mais terno e mais pensado. Agora trata-se de falar de pessoas vivas, de exteriorizar fatos muito recentes, de tentar resolver incompreensões, de expor dramas familiares. Trata-se de mostrar os problemas (que atingem também a população familiar periférica) e chegar às soluções de um modo sereno, que não agrida a ninguém. 
Sob a fórmula de memórias, Isabel Allende preferiu manter o método da conversação íntima, embora muitas vezes a narrativa exceda as fronteiras do simples diálogo. No entanto, tanto por se tratar de memória recente, quanto por fantasiar a conversa com Paula, Isabel Allende se desloca dos fatos em si para relatar o drama eterno que sempre acompanha o show da vida.
É com esse deslocamento que ela transporta o leitor consigo e o leva a medir o peso da história contemporânea, a tragédia política, a guerra terrorista, os ataques contínuos – de ética e de moral – a que são submetidos os emigrantes latinos em terras do Tio Sam, para tornar legítima a sua aspiração. Sob esse aspecto a narrativa de Isabel Allende encontra o auge de expressividade, tornando-se, senão única, uma das primeiras na literatura contemporânea.
Isabel Allende começa a narrativa discutindo com a sua editora sobre a conveniência ou não de escrever memórias de pessoas vivas.
– Escreva algumas memórias, Isabel.
– Já escrevi, não lembra?
– Isso foi há treze anos.
– Minha família não gosta de se ver exposta, Carmem.
– Não se preocupe com nada. Se for preciso escolher entre contar uma história e ofender os parentes, qualquer escritor escolhe a primeira.
Isabel Allende sabe que – para o escritor e, por extensão, para o artista – a liberdade de criação é maior que todas as liberdades.
– Não falta drama em minha vida e me sobra material de circo para escrever.
A soma dos dias começa justo no espaço de tempo em que a vida física de Paula terminou: 
– Na segunda semana de dezembro de 1992, assim que parou a chuva, fomos em família espalhar tuas cinzas, Paula, cumprindo as instruções que você deixou numa carta escrita muito antes de cair doente.
É o tipo de narrativa que alguns escritores odeiam quando estão na iminência de ter a obrigação de realizar. E a regra é esta: nada de apascentar ovelhas. Muitos críticos e compêndios ensinam que o escritor deve, logo de início, pegar o leitor pelo gasganete e assim levá-lo até a última página.
Isabel Allende pouco liga para esses terroristas da literatura. Não só escreve com a paciência dos pastores, como aceita de maneira livre interferência extraordinária: 
– Minha amiga Celia Correas Zapata, professora de literatura, que havia trabalhado com meus romances durante mais de dez anos e estava escrevendo um livro sobre eles, Vida e espírito, ficou uma noite para dormir no quarto que você ocupava e acordou à meia-noite com um intenso cheiro de jasmim, apesar de ser inverno.
É a presença de Paula que atravessa os anos e permanece arquivada na memória, guardada nos armários do quarto da menina, espalhada pelas roupas, pelo ambiente em forma de aroma, de cheiro, de perfume.
– Também mencionou os ruídos, mas ninguém deu muita importância a isso tudo até que um jornalista alemão, que ficou para fazer uma longa entrevista comigo, jurou que vira a estante se afastar quase meio metro da parede, deslizando sem barulho e sem alterar a posição dos livros. Aceitamos a ideia de que você costumava nos visitar, embora essa possibilidade deixasse a faxineira muito nervosa. 
Quando a escritora Isabel Allende muda de roupagem para personificar a avó – do mesmo modo quando vestia a fantasia de mãe – o principal elo de contato continua sendo a narrativa. A avó insistia numa promessa íntima feita pela escritora, de oferecer um romance inventado especialmente para os netos. Foi após publicar Retrato em sépia, que a escritora sentiu haver chegada a hora de cumprir a promessa.
Os aventureiros seriam os próprios netos revestidos de heróis, o cenário estava na cabeça da escritora desde o dia em que visitara a Amazônia, tendo por base a cidade de Manaus. Mas não foi bem assim, conforme ela explica: 
– Poucas semanas depois de ter começado o primeiro volume da trilogia, compreendi que era incapaz de fazer a imaginação voar com a audácia que o projeto requeria. Custava-me muito vestir a pele desses adolescentes que viveriam uma aventura prodigiosa, ajudados por seus ‘animais espirituais’, como na tradição de algumas tribos indígenas. 
Isabel Allende agora se depara com o enigma da presunção: como elaborar uma narrativa para adolescentes na qual os espíritos teimam em participar ativamente como personagens? Mais do que aparenta, a tradição indígena é cheia de entes de força espiritual, que abrange não só o folclore da figura humana, mas também a poderosa magia do meio-ambiente, a floresta, os rios, a chuva, os animais, o sol e a lua.
– Lembro os terrores de minha própria infância, quando não tinha nenhum controle sobre minha vida ou o mundo que me rodeava. Temia coisas bem concretas, como que meu pai, desaparecido fazia muitos anos, a ponto de seu nome ter-se perdido, viesse me buscar, ou que minha mãe morresse e eu terminasse num sombrio orfanato, alimentada com sopa de couve, mas temia muito mais as criaturas que povoavam minha própria mente. 
Agora se percebe como que os seres extraordinários sempre trataram de travar duros embates, ao povoar de obstáculos – muitos deles inexpugnáveis – a vida daquela que veio ser a escritora Isabel Allende. Trata-se de uma perseguição que não terá fim, senão com a regurgitação contínua, para o papel, das cidades e dos seres que nela habitam.
– Acreditava que o diabo aparecia de noite nos espelhos, que os mortos saíam do cemitério durante os tremores de terra, que no Chile são muito comuns; que havia vampiros no forro da casa, grandes sapos malévolos dentro dos armários e almas penadas entre as cortinas do salão; que nossa vizinha era uma bruxa e que a ferrugem nos canos era sangue de sacrifícios humanos. Estava certa de que o fantasma de minha avó me mandava mensagens cifradas nos farelos do pão ou nas formas das nuvens, mas isso não me dava medo, era uma de minhas poucas fantasias calmantes. 
Mas agora a artista sente a necessidade do camaleão, a de se transfigurar vestindo a roupa de cada ambiente que frequenta: 
– Para escrever meus romances juvenis não podia lançar mão de minhas macabras fantasias dessa época, já que não se tratava de evocá-las, mas de senti-las nos ossos, como se sentem na infância, com toda a carga emotiva. Precisava voltar a ser a menina que havia sido um dia, a menina silenciosa, torturada por sua própria imaginação, que perambulava como uma sombra pela casa do avô. Tinha de demolir minhas defesas racionais e abrir a mente e o coração. 
Faz tempo que Isabel Allende não se questiona mais sobre o porquê sua infância – como todas as infâncias normais – não fora povoada de duendes, fadas, dragões bonzinhos, feiticeiras e príncipes encantados. As histórias que ouvia não eram fábulas, nem contos da carochinha, nem as aventuras de Alice ou Branca de Neve. Mesmo assim em sua existência existe um componente sublime e inexplicável, difícil de ser decifrado, mas que nem ela mesma se esforça em conhecê-lo.
Eis quando a vida se transforma em caminhada, uma jornada que não temos como escolher nem a serenidade do lago ou das noites do deserto, nem a violência da erupção vulcânica ou do terremoto. Esse misterioso deslumbramento vai seguindo paralelo à sua vida, como um sopro, uma nuvem, uma lembrança e dele não se livrará jamais:
– Desde a tua morte, Paula, costumo me perder em tua mata de sequóias, em calmas excursões em que você me acompanha e me convida a examinar a alma. Em todos esses anos sinto que foram se abrindo minhas cavernas lacradas e, com a tua ajuda, a luz entrou. Às vezes, mergulho na saudade e me invade uma tristeza surda, mas isso não dura muito, logo sinto você caminhando ao meu lado e me consola o rumor das sequóias e a fragrância do alecrim e do louro. 
Só em alguns raros momentos tudo se torna plácido, pois são esses o exato momento em que devemos transformar a celeridade em calma, a correria em passos medidos para que não se percam:
–...se você veio buscar Vovó Hilda, espero que não se esqueça de fazer o mesmo comigo. Esses passeios me fazem bem. Quando acabam me sinto invencível e agradecida pela tremenda abundância de minha vida: amor, família, trabalho, saúde, uma grande alegria.
Isabel Allende recebeu o dom medieval e divino para representar a forma mais antiga de intercomunicação. Porém, o mais importante nesse processo enigmático é a forma de agir de quem recebe esse dom, porque a passividade ou a negativa do agente receptor, de repente interrompe esse processo e a pessoa volta para a vida dita “normal”. Isabel Allende simplesmente se encaixou nesse processo, entregou sua vida orgânica, transformou-se em antena para receber e transmitir a sua vida, seu eterno relacionamento com Paula:
– Descrevi em meus romances o amor romântico, esse que dá tudo, sem escamotear nada, porque sempre soube que existia, embora talvez nunca estivesse ao meu alcance. O único vislumbre dessa entrega sem restrições eu a tive com você e com teu irmão, quando eram muito pequenos; somente com vocês senti que éramos um só espírito, apenas em corpos separados.

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