5/22/2019

Mário de Alencar: A poesia de Catulo (Ensaio)



A poesia de Catulo

Se fosse possível definir o indefinível, diria eu que a poesia é a expressão comovida e harmo­niosa do mundo tal como é revelado pelo sentimento. Tê-la-ia definido aproximadamente ao menos?

Contenta-me que nessa fórmula estejam os ele­mentos essenciais: — de um lado, o mundo, ou an­tes a representação do mundo ante o homem, na sua realidade presente, na sua origem, na sua possibili­dade, no seu destino, e o mesmo homem, dentro dele; mas com a condição de serem mais sentidos que entendidos, pois que a inteligência raciocinante ana­lisa, decompõe e abstrai, ao passo que o sentimento percebe concretamente por imagens; — do outro lado, a emoção que essas imagens excitam no espírito, não confusa, mas em linhas harmoniosas e concer­tada em ritmo, que é próprio modelo da emoção verdadeira.

Tal é a ocasião da poesia, e tudo pode sê-lo, contanto que se relacione com o sentimento humano.

De dois homens, ambos poetas, é possível que o mesmo fenômeno, ato ou coisa, tenha para um a força inspiradora, e ao outro pareça insignificante e trivial. A diferença procederá menos da capaci­dade da pessoa, da sua inteligência, que do estado do seu sentimento, o qual é constituído pelos antecedentes e circunstâncias aleatórias. A um homem da cidade, contente da cidade, não oferece o campo com o seu cenário e os seus costumes, um tema de poesia; a um homem campestre a cidade, ou im­pressiona pelo tumulto inadequado a inspirá-lo, ou desperta, pelo contraste, a imagem do campo, que ele sente e pelo qual se comove.

Despertando, entretanto, o sentimento de um ou do outro, este pelo campo, aquele pela cidade, para um e outro reciprocamente o campo e a cidade assumirão a força poética, se a expressão que os comunicar, for sinceramente comovida.

Não basta pois em si o objeto inspirador; é mister que o interprete um sentimento; e não basta ainda ter sido sentido, é preciso compor-se em co­moção, que induza em outrem sentimento equi­valente.

É difícil dizer o que é que mais releva, se o sentimento inicial, se a emoção ulterior que lhe dá corpo. Na verdade existe uma relação, como de causa e efeito, e entre causa e efeito não há sepa­rar dependência; e nesta espécie, causa e efeito invertem-se e influem-se mutuamente, durante a gestação recôndita da obra poética.

Feita essa consideração, cuja análise interessa mais à psicologia que à estética, pode-se afirmar que na poesia o principal é a expressão, porque é o que a torna sensível, é o que a faz existir para os outros, é como no homem físico, o semblante, que o manifesta e o distingue. É pois individual, como a fisionomia, ainda que, como a fisionomia, tem os traços comuns da espécie, da raça e da família.

Aos traços comuns da espécie, da raça e da família, corresponderiam na expressão poética os dos gêneros épico, lírico e dramático. Às feições indi­viduais responderiam as qualidades do estilo. Do mesmo modo que no semblante humano as feições são diferentes, embora sejam comuns os traços de família e de raça, dos quais elas se formam; assim a expressão de cada poeta, formada na iden­tidade da língua e dos costumes, do meio e do pen­samento, distingue-se pela característica pessoal, de índole, de emoção, de impressões sucessivas, da in­fluência obscura das circunstâncias; e isso lhe con­stitui o estilo. A expressão que resulta do senti­mento experimentado e da pessoalidade do estilo, individualiza o que em natureza existe aparente­mente confuso; e ao mesmo tempo, pelo só efeito da individualização, predomina sobre todas as manifestações comuns daquele sentimento. Exem­plificando: o amor é um sentimento comum a to­dos os homens; todos o exprimem necessariamente, mas a expressão poética do amor, como a dá o poeta sincero ao seu amor individual, parece a todos os homens a única, embora essa unicidade seja suces­sivamente atribuída a cada nova expressão sinceramente poética do amor. Cada expressão indi­vidualiza um estado, um momento de amor, mas pela sua mesma força de comoção vivida, torna-se um tipo universal.

A poesia coexiste com o mundo e o homem; a expressão da poesia, porém, humana e pessoal, va­ria com a mutação das idades e dos meios; e cada idade e cada meio possuiria modos de expressão nitidamente diversos dos anteriores e estranhos, se não fosse o prestígio conservador, e por sua vez inspirador, das expressões que no passado atingi­ram a graça da perfeição e da perpetuidade.

O efeito, p. e., do progresso material e cien­tífico, que determinou a explicação máxima atingível das coisas do mundo e o conhecimento total da terra e dos seus habitantes, foi a extinção dos mitos, e o predomínio da razão. A poesia do ho­mem moderno, em condição progressiva, devera exprimir-se na linguagem da prosa, que é a forma própria da análise. Perduraria a expressão simé­trica somente em raros poetas, que pudessem ficar alheios à marcha analítica e prosaica do espírito humano, preservando a alma elementar que foi a da infância do mundo, ignorante na ilusão e no sonho do mistério. A sobrevivência da poesia em verso, na maior parte dos que versejam, procede da imitação deleitosa, e em si mesma artística, das formas consagradas da beleza. Por isso subsistem ainda os gêneros, conservados pelo talento a serviço da vontade, por arte aliada à eloquência, por economia do esforço e pelo reflexo inspirador das glórias antigas.

Mas ainda algumas almas elementares sobrenadam ao nivelamento; e para estas, cada vez mais raras criaturas, o verso é bem a legítima e ingênua forma de expressão poética. A uns uma feliz contingência os fez apontar, em plena civilização de desencanto, encantados, quase selvagens, extremes de ciência, com os sentidos virginalmente cheios da sensação direta e simples da vida. A outros, uma força preserva intactas, sob as aquisições da ciência e as impressões dos tempos, como sob uma máscara, a ingenuidade e a pureza da infância da alma: há no espírito deles compartimen­tos impermeáveis entre si, em que o espírito vive, casado à razão, casado ao sentimento; culto ou in­culto, lógico ou místico; e pode ser assim ora a alma elementar da poesia, ora a razão poderosa e sutil da filosofia e da crítica.

Está, entre aqueles primeiros, Catulo Cea­rense. Nascido no interior brasileiro, em terras que reproduzem a fase da infância da terra, ali viveu toda a idade plástica do espírito, vendo, ouvindo, cheirando, gostando, palpando, até a saturação dos sentidos, a natureza agreste brasileira. Não ficava lugar para a penetração de outras imagens estranhas; e as que recebesse depois seriam superposições flutuantes, indecisas, efêmeras, incapazes de apa­gar as primitivas, que já lhe formavam a consciência estética.

Permanecesse Catulo no sertão, teria sido na­turalmente poeta, como são poetas as criaturas sim­ples, na sua fala ingênua, de tom concreto, inspi­radas da natureza vizinha e familiar; e o teria sido ainda pelo dom pessoal do sentimento e da imaginação vivaz. A sua concepção poética, porém, ficaria restrita em virtude da sua mesma familiaridade dos costumes e pela habituação do cenário; não iria talvez além das impressões, incisivas embora, mas curtas, que dão a matéria dos versos populares, raros excedentes de uma quadra, jamais dilatados à proporção de um canto. Nem o auditório que estimula o cantor, tem ali capacidade de atenção para o desenvolvimento dos temas, nem o mesmo cantor possui as condições de coordenação e elaboração de demorados assuntos de poesia. A ocasião de compô-la oferecem-na os desafios à viola, de compasso breve; e o improviso significa a in­stantaneidade do sentimento provocado ao pé de uma fogueira festiva, ou a par de um baião, antes como acessório ou pretexto, do que como causa. Amortecida a dança, calado o instrumento, toda a inspiração se corporificou em cantigas dialogadas, ou desconexas. O sentimento, quando real e agre­dido, expandiu-se no desforço físico; e tudo entra na necessidade do meio rudimentar da natureza, trivial ou só por momentos trágico. Algum senti­mento mais profundo que surja, traduz-se na toada vaga e inarticulada da música solitária, porque para a palavra não acha a simpatia continuada de alheio ouvido.

O bem ou mal do Catulo foi o seu afastamento do sertão natal. Distante, sob a experiência de ou­tros costumes, deixou de ser ator no cenário na­tivo, para ser o espectador alongado e mais sensível dele. A humanidade embrionária do sertão cresceu aos seus olhos em figuras acabadas; os senti­mentos, limitados aos desafios, tomaram a intensi­dade de estados de alma, estuosos e ardentes; os usos quotidianos tocaram-se do prestígio para a revelação a estranhos: surgiu o cenário em relevo, nas suas partes mais indiferentes aos seus olhos de outrora; tornou-se possível a perspectiva; cresceu a saudade; deu-se o choque vibratório de todas as sensações adormecidas e da saturação dos sentidos virgens resultou a força imaginativa do poeta ser­tanejo em plena cidade.

A mesma relação necessária entre o objeto inspirador e a emoção expressiva, há entre o poeta e o auditório. O isolamento — e estar no campo é como estar isolado — é negativo para a criação. O trabalho espiritual procede com a condição da dualidade da luz e do som, que não existem sem o meio transmissor: não há luz no vácuo, não há som sem a ondulação do ar ou a vibração de um corpo. A voz do passado só ressoa para o ouvido alheio, próximo ou distante, mas possível, que a esperança realiza.

Agora na cidade havia auditório para escutar o poeta sertanejo; e curiosidade para estimulá-lo.

O tema, encurtado em cantigas, dilatou-se em poemas.

Não tinha Catulo precisão de modelo. Bas­tava-lhe contar o que vira, ouvira, cheirara, palpara e gostara no seu sertão distante. A condição do êxito era a espontaneidade e a harmonia da ex­pressão e do tema: em suma que ele fosse em tudo sertanejo sincero. Convinha que ele esque­cesse o que lhe tinha dado a civilização da cidade, e a cultura literária, com os seus benefícios e sobre­tudo com os seus perigos de imitação e artificialismo.

Não conheço senão poucos versos dos que ele escreveu antes de Meu sertão. Não eram os versos da sua poesia. Esta revelou-se em toda a sua força e originalidade nos poemas Quinca Micuá, O marroeiro, A promessa, A vaquejada, O canga­ceiro, Terra caída, daquele volume, e A resposta de Jeca Tatu, e Braz Macação, deste novo livro.

A poesia de Catulo, produzida na plena con­formidade do seu talento, é a narrativa dramática, e caracteriza-se pela perfeita objetivação. A pes­soa do poeta se desvanece, e exemplifica bem o estado da inspiração poética, segundo a concebiam os gregos, o entusiasmo divino: o poeta age inconsciente sob o domínio da emoção. É um puro instrumento vibrátil, em que o som se forma por impulso exterior, adquire tonalidades que ele pela sua contextura lhe comunica, mas não anuncia na sua composição a qualidade material do mesmo instrumento.

Na voz de Catulo canta não a pessoa dele, mas o sertão e o sertanejo. A métrica do verso é, nem devia ser outra, a mesma redondilha que é o vagido poético do povo; a prosódia é também a do povo matuto, abreviada, abrandada e simplificada, quase dialetal. Podia, dentro do mesmo número de sílabas, ser grafada como a linguagem comum; mas seria uma alteração da voz, do que Catulo foi um eco, e um transmissor orgânico; se­ria como exigir-se-lhe uma consciência de homem de cidade naquele estado de inconsciência inspirada.

Não lhe peçam ao poeta outra língua, nem ex­plicação da sua poesia, nem lhe sugiram ou soli­citem outros assuntos que não os da natureza e humanidade agreste do Brasil, nem outra forma que a da narração objetiva. Arriscar-se-iam a vê-lo diferente e menor, sem a originalidade es­pontânea, ao contrário contrafeito, canhestro ou artificioso. Cada poeta tem o seu talento peculiar e o seu gênero de criação; e ainda nesse gênero e com esse talento não existe continuidade de poesia, senão momentos de poesia, que não hão de ser buscados.

Contentemo-nos com a poesia de Catulo naquelas composições citadas; essa é a sua poesia, e é a grande poesia. Os temas que a originam são, como na grande poesia, as paixões humanas, o amor à mulher, raro contente, quase sempre desiludido, o sentimento religioso e o da honra, o ca­valheirismo, a bravura, a tenacidade, o orgulho, a tristeza e a saudade. É em suma a alma humana tão vivamente dramatizada, que em cada situação, não importa o meio agreste em que ele se agita, parece caracterizar o homem na sua universalidade. A natureza não figura em primeiro plano, como ele­mento descritivo principal; mas não se pode dizer que seja secundário, porque está essencialmente conjugada ao homem; é como a própria tinta que o contorna e lhe define os traços, a cor e os movi­mentos. Tem-se a impressão de que o poeta não descreve por palavras, senão que as próprias coisas e pessoas surgem vivas em imagens da natureza.

Num dos poemas deste livro, diz um violeiro da casa da mulher amada:

A casa onde ela morava
dava à gente uma alembrança
dum brinquedo de criança.
Numa biboca da serra,
bejada pulo um regato,
parecia aquela casa
uma frô feita de terra
sonhando dento dos mato.

O símile define a imaginação de Catulo. As suas imagens, nos seus grandes poemas, são assim: não deixam perceber nem lembrar o trabalho que as fez, nem as partes de que se compõem; pa­recem flores nativas da terra, desabrochando em to­dos os seus matizes e formas.

Essa é a imaginação genial do poeta; e dos poemas de Catulo se colheriam inúmeros e exemplos da definição de Wordsworth:

“A função peculiar da poesia, o seu emprego ­peculiar, o seu privilégio e o seu dever, é tratar das coisas não como elas são, mas como elas a­parecem; não como elas em si mesmas existem, mas como parece existirem aos sentidos e às paixões”.

Debaxo das asa verde
de uma jaboticabera
disfoiei toda a minh’arma
neste acalanto maguado.

Em um poema de humor diferente, quase sa­tírico, o Jeca Tatu, diz a um político:

Vassuncê só abre o bico
pra cantá como um cancão
quando qué fazê seu ninho
nos gaio de uma inleição.

Imagens dessas não se premeditam, não se rebuscam, não se inventam em toda uma vida de espírito; porque nascem por si, sem esforço, são a própria linguagem de quem só percebe por ima­gem. Ali não há elaboração de raciocínio, nem análise; há transbordamento de sensações de sen­tidos que viveram concertamente a vida da natureza; há relâmpagos de gênio, que abrangem e acla­ram, associando-as num feixe de luz, distâncias in­transponíveis ao olhar mais agudo e ao espírito mais célere.

Daí as sínteses que há em cada imagem: as transposições das propriedades das coisas que lhes dão mais realidade que na realidade; são golpe­s de luz que da confusão fazem irromper o tipo de beleza da verdade vivaz e único.

Não sei se um poeta genial, agreste como o sertão que o formou, precisa ser julgado sob o cri­tério da arte. Há duas espécies de arte. Uma que se revela, cuidada, pontilhosa, trabalhosa, porfiada em aparecer elegante, sem jaça, sem defeito, medida; brilha, encanta, seduz mas acaba insinuando o cansaço do esforço em que se gerou; e transparece então o artifício que lhe fez o arcabouço e o semblante. Essa arte não a tem Catulo. A outra, irregular na aparência, desordenada, precipitada, descurada de pormenores, como é a arte da natureza, que não se detém na simetria das partes mínimas, nem alisa as superfícies, mas se funda na harmonia essencial; essa é a arte ingênita, a grande arte; e essa a possui Catulo. Revela-se na dramatização­ dos seus poemas, na narrativa direita e rápida, no movimento dos quadros, no talento da pintura e quase digo da escultura animada das pessoas e das coisas. Completo, perfeito em todas as partes de cada poema? Não, antes incompleto, imperfeito em muitas partes dos seus poemas. Mas no fim de cada poema e ainda nas suas poesias menores, a impressão definitiva que ele nos deixa é a de um grande poeta e grande artista, como a natureza.


MÁRIO DE ALENCAR
29 de novembro de 1919.

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