5/22/2019

Monteiro Lobato: Manuelita Rosas (Ensaio)


Manuelita Rosas

Manuelita Rosas, a filha única de Don Juan Manuel Ortiz de Rosas, esse homem de gênio, o mais belo, o mais forte, o mais hábil do seu tempo na América (para nós ainda hoje apenas o “tirano Rozas”, com “z”, da História do Brasil, de Lacerda), foi um caso notável de reequilíbrio biológico. De Vries, Mendel e outros entendidos em hereditariedade veriam nele uma resultante lógica do ardente punzó materno e do frio azul paterno, formando o mais suave e tranquilo lilás, graças a um salto regressivo aos avós, Dona Agustina e Don Léon, tipos de fidalgos do século dezoito.

Para definir o caráter e a finura destes ancestrais basta um trecho de carta do pai ao filho, reeleito para uma função governativa: “Amado filho, é de necessidade que venhas ver tua mãe e trates com teus melhores meios de desimpressioná-la dos efeitos que tem causado em sua imaginação a notícia da tua reeleição para o governo. Seus suspiros contínuos me cortam a alma”...

É um nec plus ultra de finura século dezoito, suspirar a velha porque o filho subiu ao governo, e alegar o velho, como razão decisiva, esses suspiros que lhe traspassavam a alma...

Vem assim ao mundo Manuelita como revanche da natureza assustada diante de duas criações fortes em excesso.

Rosas foi o gênio da premeditação implacável, o calculista frio, a razão que jamais erra, pois não se ilude a respeito de nenhum dos valores psicológicos que compõem uma coletividade.

Em Los Cerrillos teve esse homem a mocidade ocupada numa tarefa que não passou de aprendizagem de governo.

Darwin, que pernoitou nessa estância de setenta léguas quadradas, diz que ao avistar-lhe a sede teve a impressão de uma cidade com a sua fortaleza; notou ainda que os moradores eram de tal modo disciplinados e aguerridos que a estância estava a coberto de todos os ataques dos índios.

Nessa escola, verdadeira miniatura do país, Rosas estudou os homens, compreendeu-os e apreendeu as linhas gerais da técnica de conduzi-los. Impôs-se a todos pela força física, tornando-se o melhor cavaleiro, o melhor amansador de potros das redondezas; vestia e falava à moda gaúcha, de chiripa, jaqueta e poncho, sabendo, entretanto, manter a distância; era o chefe completo pela norma que a natureza indica, a um tempo protetor e verdugo, juiz e pai, distribuidor do bem e do mal. Afável e severíssimo, risonho e terrível, amenizando fulminações de Júpiter com bromas de bufão, criou o fanatismo da sua pessoa e a obediência cega. O cacique Cachuel dizia, exprimindo o modo de pensar comum: “Juan Manuel nunca nos enganou. Eu e toda a minha tribo morreremos por ele. Sua palavra é o mesmo que a palavra de Deus”.

Este estado de espírito, conseguido no feudo à força de compreensão psicológica e de rigor justiceiro, deu-lhe ali o comando único, temporal e espiritual.

O caso de Rosas é virgem na história. Vence por hipertrofia do seu feudo. As terras vão-se-lhe aumentando sempre, pela aquisição de novas estâncias, e com elas vai crescendo o seu prestígio e o número dos súditos agregados. Infatigável, e dotado de uma capacidade de trabalho que só tem parelha na de Bonaparte, Rosas é um proprietário que à custa de diligência cresce a ponto de acabar dono de todo o país.

Seu feudo torna-se um estado dentro do Estado; um Estado organizado, disciplinado, eficiente, onde todos percebem a mão construtora e a cabeça firme do chefe, dentro de um Estado em desordem, presa do permanente tremor de terra político de um liberalismo ideológico, rico em palavras sonoras, mas incompreensivo e incapaz de implantar a ordem.

O estado nuclear de Rosas, ordenado, cresceu tanto à custa do seu rival desordenado, que terminou por substituir-se a ele. Rosas não assumiu a ditadura de assalto, o que é a regra; a Argentina é que veio aos poucos colocar-se sob o regime por ele criado para Los Cerrillos. E como chefe supremo da nação agiu com a mesma segurança, aplicando a mesma técnica que a experiência lhe ensinara como a melhor para a direção da estância. É inimigo? Elimina. É boi, cavalo bravo? Amansa, mete na canga. É díscolo? Olho da rua. A prova da excelência do sistema foram os vinte e tantos anos de ordem que o país teve, período que permitiu o surto das riquezas pastoris e preparou a base econômica da Argentina atual.

Rosas varreu do país o liberalismo palavroso. Uma fórmula simplicíssima dizia tudo, entrava cabeça a dentro ao mais bronco e tornava inúteis a arenga comprida, o discurso, a justificação, mil coisas complicadas e ineficientes. Essa fórmula começou assim: Mueran los salvajes unitarios. Unitário abrangia tudo quanto era antirrozista, o poeta autor dum soneto desagradável ao paladar do déspota, o padre que murmurava no sermão contra um ato seu, o filósofo que filosofava sobre as necessidades da pátria, etc. Mais tarde, para combater a onda crescente do liberalismo tiririca, que brota sempre por mais que a enxada lhe corte as raízes, enfeitou a fórmula mágica de mais dois adjetivos: Mueran los salvajes, asquerosos, imundos unitarios.

Isto, para vencer a imaginação; para vencer o músculo criou a mazorca, espécie de fascismo desenfeixado e sem organização militar. Era a matilha da plebe, que funcionava aparentemente por conta própria, mas de fato açulada pelas habilíssimas sugestões do ditador. Com estes simples ingredientes Rosas alijou da Argentina o liberalismo, encurralou-o no exílio e pôde à vontade organizar Los Cerrillos transformado em Argentina.

Mas a máquina de dominar (havia ainda duas peças, os bufões Don Eusébio e Biguá) revelou-se falha.

A Argentina inteira não era, como Los Cerrillos, composta só de peões. Havia nela uma elite que, embora pequena, significava muito; havia ainda o elemento estrangeiro, os diplomatas, os viajantes ilustres, escol para cuja coação não bastava a fórmula mágica. Esse elemento sutil não vai pela força; quer ceder pela sedução.

Entra em cena a sedutora: Manuelita, herdeira de todas as qualidades nobres do pai, acrescidas umas, modificadas outras, e herdeira também do senso da oportunidade que caracterizava sua mãe.

Dona Encarnacion Escurra foi uma virago de alta potência, bem merecedora do cognome de Heroína da Federação que lhe conferiu Rosas. Era feia, máscula, mulher de armas levar, exaltada, violenta, maliciosa, suspicaz, sem o menor toque de graça ou langor femininos. Foi uma companheira de Rosas escolhida a dedo pelo Destino. Sem ela talvez Rosas não vencesse, como sem Manuelita talvez não se prolongasse tanto a sua dominação. E os fados, sábios em suas combinações, fizeram desaparecer da cena a mulher violenta no momento preciso em que, obtida a vitória, era mister consolidá-la, papel prescrito não mais à mãe e sim à filha.

Rosas, para que sua auréola crescesse sempre, morava longe das cidades onde seus rivais se consumiam pelo atrito. Vivia ou nas estâncias ou em campanhas contra os índios — o mesmo truque de Napoleão com a sua campanha do Egito. Crescia-lhe assim o prestígio, insuflado pela notícia de feitos bélicos que a distância ampliava.

Mas Rosas, como Bonaparte, nada deixava ao acaso e, embora sempre longe do cenário político e como alheio a tudo, de fato manobrava todos os cordéis por intermédio de Dona Encarnacion.

Era o tipo da agitadora, esta mulher, da intrigante habilíssima que não escolhe meios e vai como a seta ao alvo. Aliciava, comprava adeptos, tramava, matava, espancava — uma verdadeira fúria esquecida a Ariosto.

Todas as cóleras e ódios chamava-os para sua cabeça, desviando-os assim da cabeça do seu marido — tão longe, o coitado, a desbastar índios no deserto...

Para ilustração do caráter desta heroína basta a leitura de uma das suas cartas ao marido:

“A mulher de Balcarce (era o governador que os restauradores queriam derrubar) anda de casa em casa vomitando tempestades contra mim; o menos que diz é que vivo na dissipação e no vício e que tu me olhas com a maior indiferença, e que por isso não cuido de conter-me. Elogia-te o quanto degrada a mim; este é o sistema, porque a eles lhes dói, por seus interesses, perder-te e porque ninguém dá a cara do modo que eu a dou. Mas nada se me dá de tais maquinações; tenho bastante energia para contrabatê-las; só me faltam tuas ordens, que em certos casos as supre minha razão e a opinião de teus amigos, a quem ouço e classifico conforme valem, pois a maioria de casaca tem medo e só me faz o “chambalé”... Tagle (ministro de Balcarce) mandou pedir-me uma conferência, que só desejo para cortar-lhe as orelhas”...

E esta outra:

“Um mulato, Carranza, muito unitário, foi para o exército; dizem que te leva um barril de azeitonas; não as comas sem que alguém o faça primeiro, não sejas tolo... Mando-te os pasquins saídos estas últimas noites. Miñana foi para o Norte muito bem instruído sobre o modo como deve agir (para a revolução restauradora): se o descobrem estes malvados (os do governo) me lançarão a culpa a mim, mas isso pouco me importa. Por toda a parte tienen bomberos; um dos que espiam nesta casa é o “pícaro” de Castañon, o “edecán”, porém no dia em que o pilhe hei de metê-lo dentro e le he de pegar una soba... Don Elias não aparece, creio que anda “cubileteando” porque me tem muito medo”.

E mais este trecho de outra carta, em que narra a invasão da casa do cônego Vidal, elemento contrário à política de Rosas:

“Tiveram muito bom êxito os balázios e o alvoroço que mandei fazer no dia 29, pois disso resultou que se vai embora para sua terra o facinoroso cônego Vidal”...

Não é preciso mais nada para definir a poderosa auxiliar de Juan Manuel, executora das suas ordens e para-raios dos ódios que ele atraía. A atuação foi perfeita e oportuníssima. Fez-se a revolução, Balcarce foi derrotado e organizou-se um interinato fragílimo, mero guarda-cadeira que viveria até que viesse tomar o leme do comando o comandante nato. Rosas aparece então preguiçosamente, como quem não quer, rogado e implorado pela nação inteira de mãos postas. A sua técnica, como a de Bonaparte no Egito, produziu um resultado maravilhoso. Tornou-o único no meio da multidão de políticos estragados pelo uso e enfraquecidos pelas rivalidades. Veio do deserto como um triunfador e displicentemente acedeu ao clamor deplorativo das rãs que pediam rei, dando à Argentina a honra de presidir os seus destinos.

Vencer, como ganhar dinheiro, não é tudo; resta a segunda parte, conservar, que é muito mais difícil. Na primeira teve Rozas o instrumento ideal em Dona Encarnacion Escurra. Esse papel primacial caberia na segunda a Manuelita.

Resultante de duas forças extremadas, raiz e tronco, veio a flor com o seu perfume, o brilho das suas cores, a sutileza da sua inteligência, a sedução da sua plástica embelezar a tirania de Rozas durante largos anos, tornar-lhe possível a duração e transmitir ao futuro o ensinamento de que os droguistas americanos, os Ayer, os Reuter, tiraram tão ótimo partido: o açucarado e o dourado sobre a pílula amarga. Manuelita foi a fina flor de sentimento e razão que açucarou e abrigou uma das mais longas ditaduras da América.

Não se diria bela a filha de Rosas, no sentido grego da palavra; possuidora entretanto de todas as sub-belezas filhas da Graça e da Distinção, valia por belíssima. Beleza moderna, em suma, teia muito mais de prender olhos e coração do que a inexpressível, inumana e desinteligente beleza da Vênus de Milo. Su mirada es vaga, diz um contemporâneo, y sus ojos, como su cabeza, parece que estuvieram siempre movidos por ei movimiento de sus ideas. Era alta, morena, pálida, tinha abundantes cabelos negros e o ar mais distinto e elegante que se possa imaginar — diz Ventura de la Vega, que a conheceu em Londres. E acrescenta: Su conversacion es franca, pero muy fina y con golpes de talento que dejan parado.

Neste traço final está toda Manuelita e o segredo da sedução que exerceu sobre quantos se lhe aproximaram. Vibrava em seu rosto a beleza d’alma de mistura com a força da inteligência. Aqueles golpes de talento que dejan parado explicam melhor que longo discurso o prestígio de fada que a nimbou durante a vida inteira.

Valeram-lhe talvez este fato raro: passar pela tirania mais conspurcada da época sem que o acérrimo ódio a Rosas ousasse espirrar em seu regaço o menor respingo de lama.

A meninice de Manuelita foi o que podia ser uma meninice num agitado lar de caudilho — lar de carinho sem ternura e união sem delicadeza. Era a casa de Rosas um permanente quartel de conspiradores e fanáticos do mais variado pelo, e até dos seus aposentos ouvia a menina o rumor das armas, o vozeio da turba em exaltações a seu pai, com o entremeio das arremetidas de Dona Encarnacion em constante vociferar contra os unitários.

A fúria política varria a Argentina, forçando aquela infância melancólica a assistir a tremendos dramas de sangue e brutalidade, como a revolução de Lavalle e o fuzilamento de Dorrego.

Sua sensibilidade, rica de todas as finuras, recolhe-se consigo ao bafo recrestante de tal ambiente — e Manuelita sazona antes do tempo, qual manga verde metida em abafo morno de cinzas.

É contingência do caudilhismo político estear-se nas piores borras humanas. A casa de Rosas refervia de caudilhetes de bairro, fósforos eleitorais, cabos de motim, negros e mulatos espiões — futuras peças da Sociedade Restauradora e da Mazorca.

Nesse tempo abundavam em Buenos Aires os negros, encurralados nos subúrbios em zonas turbulentas, chamadas bairros del tambor em vista do constante tantã dos candomblés. Organizados em colônias de minas, mandingas, moçambiques, benguelas, congos, cada nação tinha lá seu rei, sua rainha de beiçarra e suas usanças d’África.

Rosas corteja-os, vendo nessa bárbara plebe de linhito boa matéria-prima para a máquina de compressão social que já idealizava. Em carta à esposa estabelece tal política:

“Já deves saber o que vale a amizade dos pobres (referia-se aos negros) e o quanto importa conservá-la sem desdenhar meios de atrair e cultivar suas vontades. Não cortes pois com eles.

Escreve-lhes, manda-lhes presentes sem que te doa gastar com isto.

Digo o mesmo a respeito das mães e mulheres dos negros e mulatos que nos são fiéis. Não deixes de visitar as que o mereçam, nem de socorrê-las em suas desgraças. Aos fiéis que já te hajam servido deixa-os que joguem bilhar em casa e obsequia-os como puderes”.

Manuelita, já utilizada pelos pais como força de sedução, era mandada à sala do bilhar, onde devia sorrir para aqueles “tertulianos” de cujas bocas só saiam sandices e “palabrotas”. Também ia, a convite, presidir tertúlias negroides, festas que não principiavam antes que a princesinha chegasse.

Iam buscá-la em préstitos. Conduziam-na a tronos. Só então começavam as danças, os cantos, a música, a vociferação sempre afinada pelos mesmos temas: louvores ao Magnânimo Restaurador das Leis e morte aos selvagens, imundos, asquerosos unitários.

Não se dispensava Rosas da colaboração feminina, revelando nisto sua alta intuição da psicologia humana. A esposa lhe servira às maravilhas enquanto o problema fora escalar o poder; sua tática, com base na dissimulação, exigia comparsa fidelíssimo, identificado em absoluto com os seus interesses e capaz de executar, a mandado e por inspiração própria, todo um maquiavélico plano de golpes enxadrísticos. Uma vez guindado ao poder, todavia, dispensava-se de uma Cerbera ao pé do trono, a rosnar, nem era esse o papel para que a natureza melhor adequara Dona Encarnacion.

Tratava-se de conservar o poder e isso exigia ingredientes mais fluídicos, essências que a alma da Heroína da Federação, demasiado violenta, não sabia estilar. Nascida para o assalto, para acometer, para “pelear”, ignorava o sorriso que descrispa os dedos agarrados ao punhal; ignorava a clemência que amaina o furor das paixões como o óleo amaina o furor das ondas.

A situação exigia, em vez de colmilhos arreganhados, o veludo negro duns olhos de fada donde fluísse o mel da clemência e da simpatia.

E o destino de Rosas deu-lhe em Manuelita o tópico ideal, que faria duradouro e tolerável o seu álgido despotismo.

Perfeita antítese da mãe, a vontade superior de Manuelita, norteada por sua inteligência de escol, dominava-lhe os ímpetos do temperamento herdado e a mantinha sempre num suave equilíbrio de serenidade. Poderia referver por dentro em lavas; essa lava ressortia fora transfeita em flores e sorriso. De alma aberta a todos os ventos e, pois, compreensiva de todas as impressões alheias, possuía a mais um controle absoluto de sentimento, a ponto de não lhe apontar a história uma só descaída de linha.

O cálculo frio de Rosas fez-se nela prudência: o impulsivo da mãe transfez-se em medida. E se a finura da sua sensibilidade, táctil a todas as nuanças das coisas, inclinava-a à ternura — foi terna sem arroubos, porque a inteligência, sempre de freio à imaginação, mantinha-a atenta às realidades, impedindo-lhe o deformá-las.

Em pleno delírio romântico (que outra coisa não é a revolução) recebia Manuelita o calor da onda de fogo sem inflamar-se, como não pegava de contágio nenhuma das febres ambientes. Seu realismo penetrante livrou-a até da efusão mística, tão comum às espanholas; piedosa e crente, não tomou da religião o histerismo e sim, apenas, a parte pragmática — consolo e resignação na desgraça.

A moral de Manuelita foi uma e inalterável: amar a seu pai e cumprir até ao estoicismo o seu dever de filha. Na filha boa do rei Lear, Shakespeare desenha traços da sua irmã platina. A juventude inteira sacrificou-a Manuelita ao egoísmo paterno, suportando em respeito de “su tatita” transes que lhe deveriam custar as piores torturas morais. Não seria das menores o forçar constantemente sua bondade ingênita a uma ação mais passiva que ativa, dando ao sorriso mais afabilidades que cordialidade.

Como instrumento diplomático foi de finura inexcedível — e com grande habilidade a empregou Rozas. Quando Oribe parte de Buenos Aires à frente das tropas que vão enfrentar Lavalle, manda Rozas, que a filha o acompanhe um bom pedaço. Efeito fulminante. Impressionado com a atitude da menina, Oribe escreve a Rosas: Con su señorita hija le mando decir que fineza de esta clase sólo se pagan con sangre como si llega el caso lo haré.

Outras vezes utiliza para firmar cartas por ele mesmo habilmente escritas, capazes de confundir ao mais hábil psicólogo de epistolografia feminina. Na época do terror encarregou-a do manuseio dos papéis secretos, das listas de proscrições — e o historiador de hoje “fica parado” ao imaginar a cena da fada boa a lidar com as listas negras do carrasco...

Além de seu melhor instrumento foi Manuelita a doce companheira do tirano. Consagrada inteiramente à tarefa de zelar por ele com carinhos de mãe, constituiu-lhe todo o lar, encheu-lhe toda a vida íntima.

Também tomava a si o contato do ditador com o mundo. Ela, quem atendia aos clientes, recebia os pedidos, ouvia as súplicas, dava esperanças, fazia promessas; ela, em suma, quem representava no sombrio palácio de Palermo a parte da graça e da misericórdia.

Amou, Manuelita?

Sim, embora menos do que foi amada. Amou a seu pai sobre todas as coisas e amou ao homem que mais tarde, no exílio, já em idade madura, veio a ser seu esposo.

Amada foi de numerosos galãs. Um enamorado britânico deixou crônica: Lord Howden. Par do reino, este romântico fidalgo fora enviado à Argentina como representante da Inglaterra para dirimir o conflito de que resultou o bloqueio do Rio da Prata pelas esquadras inglesa e francesa.

Homem de altas aventuras, ex-ajudante de ordens de Wellington, companheiro de Byron na Grécia, herói da batalha de Navarino, comissário inglês no cerco de Amberes, nem o muito mundo que correra, nem as muitas mulheres que vira o imunizaram contra os encantos de Manuelita. Frequentava assiduamente as tertúlias da princesinha e lá se enleou na sua teia de sedução.

Um dia promoveu uma passeata a cavalo, durante a qual conseguiu emparelhar-se com a filha do tirano e declarar o amor que o devorava.

Manuelita ouviu-o silenciosa e grave, com os olhos perdidos no azul do horizonte. Dias depois enviou a Lord Howden uma gentilíssima carta em que lhe pedia carinhosamente que apenas visse nela uma extremosa irmã.

Ibarguren transcreve a resposta do inglês, finíssima, modelo de ironia, que mal empalha o despeito ressentido ante a fina diplomacia da tábua...

Esse amor inspirado ao emissário inglês influiu seriamente na marcha dos acontecimentos.

Lord Howden rompe com o emissário francês, conde de Walewski — não o filho do Corso com a formosa condessa eslava — e faz suspender o bloqueio por parte das fragatas inglesas.

Ficam os franceses a sós com a prebenda, arcando com o rancor dos argentinos, que incontinenti tiram do lombo dos unitários e pespegam no dos franceses o terrível — “imundos e asquerosos”.

Howden era um homem de espírito. Entre agradar Manuelita e agradar à França não vacilou...

Mas o drama se precipita.

Soa em Buenos Aires o grito de Roma: Anibal ad portas!... As legiões de Urquiza avançam contra a capital, afogueadas de entusiasmo. Partem ao encontro delas as duas criaturas que Manuelita mais amava no mundo — seu pai, na chefia das forças oponentes e Maximo Terrero, o mancebo que soube conquistar o coração da princesinha federal. Ia o noivo incorporar-se às tropas e levava como talismã um lenço de Manuelita, bordado pelas suas próprias mãos.

Não há descrever os transes da filha e da noiva quando o eco dos canhões alvorotou a cidade. O embate seria decisivo e ela jogava o seu coração na batalha. Caiu de joelhos e orou...

Sobrevinha a noite quando Rozas reapareceu, fugitivo, disfarçado no poncho e no gorro vermelho de um ajudante de ordens. Apeou na legação britânica, mandou um rápido bilhete a lápis à filha e pediu o asilo da Inglaterra. Às 8 da noite Manuelita reúne-se ao pai, pronta para a fuga.

Seguem dali para a fragata Centaur” e desta para o “Conflict, que os leva para o exílio.

Estava terminado o papel de Rosas no mundo. Na Inglaterra iria vegetar numa casa de campo de Southampton como um bom boiadeiro retirado dos negócios, mais atento ao reumatismo do que à política de sua pátria.

Ao seu lado Manuelita redobra de carinhos filiais e ameniza o exílio do leão enjaulado. O egoísmo de Rosas revela-se em toda a sua grandeza. Continua a opor-se ao casamento da filha, exige o sacrifício da amável criatura nas aras da dedicação indivisa. Continuava à opor-se ao seu casamento com Terrero, não que lhe parecesse indigno o noivo, mas para não se apartar da filha.

Manuelita escreve a uma amiga em 53: “Aqui me tens na Inglaterra sem saber ainda onde iremos morar — mas há de ser numa casa de campo. Nela viveremos conformados com a vontade de Deus e observando a rigorosa economia que nossas circunstâncias impõem; passaremos como seja possível, confiantes na justiça do Céu. Esta escola de conformidade, que é a vida de meu querido paizinho, não me há faltado um só dia e assim vivo perfeita e humildemente submissa ao meu destino”.

Mas Terrero muda-se para a Inglaterra, arrastado pelo seu amor e isto revoluciona o coração da amável conformada, que afinal resolve quebrar a resistência do egoísmo paterno e receber como esposo o eleito do seu coração. Casa-se e escreve à mesma amiga: “Petronita! Já estou casada com o meu Maximo!... Tu, que o conheces, podes ter a certeza de que ele me fará completamente feliz. A doçura de pertencer-lhe me fez olvidar todos os maus momentos e todas as desgraças da minha vida. Abraça-me com força, e rejubila-te da felicidade da tua amiga”.

Já Rosas é num tom muito diverso que anuncia a Petronita esse casamento. “Muito pouco me resta hoje, depois que tua amiga (Manuelita) me abandonou com inaudita crueldade, e me deixou só no mundo, justamente quando mais necessitava da sua existência”.

Ficou ele em Southampton, na sua casa de campo, e Manuelita passou a residir em Londres, donde vinha visitá-lo amiúde.

Essa separação forçada era a única nuvem que empanava a felicidade de Manuelita, e daí o procurar amenizá-la com visitas frequentes.

Rozas alugara uma chácara e trabalhava para garantir a sua subsistência. É belo o fim da vida desse tirano que teve tudo, que foi dono da Argentina inteira e acabava trabalhando a terra para viver. Seu estoicismo espanta. Pobre e só, produzindo o pão de que vivia em terra estranha, nesse momento o homem apresenta-se-nos maior do que o tirano de Palermo.

“A justiça de Deus, escreve ele a dona Josefa Gomes, está acima da soberba dos homens. O homem verdadeiramente livre é o que, isento de fraquezas ou desejos excessivos, em qualquer país e em qualquer condição em que se ache, segue os mandamentos de Deus, atende à sua consciência e guia-se pela razão”.

Em Buenos Aires o partido vencedor leva a cabo o processo de Rozas e o condena à morte e ao confisco de todos os bens.

Rosas protesta. O seu julgamento “só compete a Deus e à História, porque só Deus e a História podem julgar os povos”.

Manuelita recebe a notícia qual uma punhalada. “Que lhe parece a vida, amigo meu? escreve a Francisco Plot. O general Rosas reduzido a viver do trabalho de suas mãos aos setenta anos de idade, vítima da mais cruel espoliação e das ofensas incessantes com que o perseguem seus inimigos com permissão do país ao qual tudo sacrificou! Os poucos recursos que trouxe, e isso devido a um acaso providencial, esgotaram-se. Se acaso meu pai necessitasse ainda de justificação, esta pobreza completaria a sua coroa de glória. Expulso da pátria, submetido sem murmurações ao seu destino, fiel aos seus princípios, sem faltar nunca ao respeito da autoridade seja lá quem for que a represente, privado dos seus bens de família, injuriado sem tréguas, é ele, no entanto, para mim, para seus fiéis amigos e para seu país, o mais grandioso espetáculo que a história apresenta entre os grandes decaídos.

Apesar disso, como filha carinhosa, cada vez que considero a sua posição choro sem termo, e minha dor é mais cruel porque me vejo despojada de tudo e não posso ajudá-lo. No meio de tudo, porém, ao contemplar tão grande infortúnio suportado com tamanha virtude e elevação de alma, confesso: é uma lição que aceito orgulhosa, pois vem desse grande homem a quem devo a vida”.

E assim transcorrem os últimos anos de Rosas, sempre assistido da grandeza moral de sua filha, a mais bela alma de mulher que ainda figurou na história americana.

Um dia Manuelita é chamada com urgência a Southampton pelo médico de Rosas. Vai. Era o fim. “Pobre tatita!” escreve ela de lá ao marido. Ficou tão contente ao ver-me chegar! As nossas predições desgraçadamente se realizam, pois dizíamos sempre a “tatita” que aquelas saídas com tempo úmido em pleno rigor do frio lhe haviam de trazer a pneumonia. A sua paixão pelo campo abreviou seus dias... Imagine que com um destes dias de frio espantoso que tivemos ele saiu e esteve fora até tarde. Resfriou-se e as consequências estão aí”. Rosas estava mal; não obstante conversou lucidamente com Manuelita e troçou do médico. Depois ordenou — até no último momento inda sabia ordenar — que a filha ficasse num aposento vizinho.

Às seis da manhã batem-lhe à porta. “Saltei da cama, escreve ela ao marido, e quando me cheguei ao doente beijei-o quantas vezes, como tu sabes que o fazia sempre, mas senti que sua mão estava fria. Perguntei-lhe: “Como vai, tatita?” Sua resposta foi mirar-me com a maior ternura: “Não sei, filhinha”. Sai do quarto para mandar vir com urgência o médico e o confessor; só me demorei nisso um minuto; mas quando tornei já ele tinha deixado de existir.

Vês, meu Maximo, que suas últimas palavras e seus últimos olhares foram para mim, para sua filha...”

Com a morte de Rosas desaparece do cenário do mundo Manuelita e surge em seu lugar a suave senhora Terrero. Viveu ainda longos anos, escondida como pérola no recesso do lar, e por fim se apagou com doçura, como as tardes serenas que caem lentamente após um longo dia tempestuoso.

Com esta imagem feliz fecha Carlos Ibarguren o seu precioso livro sobre Manuelita Rosas, donde colhemos o material deste retrato. E o leitor “fica parado” e acaba perdoando a Juan Manuel a sua ditadura em troca de haver enriquecido a história com tal filha — magnólia de inebriante perfume desabrochada sobre a lama rubra dum saladero.
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In: Na Antevéspera

Atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)

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