Manuelita Rosas
Manuelita Rosas, a filha
única de Don Juan Manuel Ortiz de Rosas, esse homem de gênio, o mais belo, o
mais forte, o mais hábil do seu tempo na América (para nós ainda hoje apenas o
“tirano Rozas”, com “z”, da História do
Brasil, de Lacerda), foi um caso notável de reequilíbrio biológico. De
Vries, Mendel e outros entendidos em hereditariedade veriam nele uma resultante
lógica do ardente punzó materno e do frio
azul paterno, formando o mais suave e tranquilo lilás, graças a um salto
regressivo aos avós, Dona Agustina e Don Léon, tipos de fidalgos do século
dezoito.
Para definir o caráter e
a finura destes ancestrais basta um trecho de carta do pai ao filho, reeleito
para uma função governativa: “Amado filho, é de necessidade que venhas ver tua
mãe e trates com teus melhores meios de desimpressioná-la dos efeitos que tem
causado em sua imaginação a notícia da tua reeleição para o governo. Seus
suspiros contínuos me cortam a alma”...
É um nec plus ultra de finura século dezoito,
suspirar a velha porque o filho subiu ao governo, e alegar o velho, como razão
decisiva, esses suspiros que lhe traspassavam a alma...
Vem assim ao mundo
Manuelita como revanche da natureza assustada diante de duas criações fortes em
excesso.
Rosas foi o gênio da
premeditação implacável, o calculista frio, a razão que jamais erra, pois não
se ilude a respeito de nenhum dos valores psicológicos que compõem uma
coletividade.
Em Los Cerrillos teve esse homem a mocidade ocupada numa tarefa que
não passou de aprendizagem de governo.
Darwin, que pernoitou
nessa estância de setenta léguas quadradas, diz que ao avistar-lhe a sede teve
a impressão de uma cidade com a sua fortaleza; notou ainda que os moradores
eram de tal modo disciplinados e aguerridos que a estância estava a coberto de
todos os ataques dos índios.
Nessa escola, verdadeira
miniatura do país, Rosas estudou os homens, compreendeu-os e apreendeu as
linhas gerais da técnica de conduzi-los. Impôs-se a todos pela força física, tornando-se
o melhor cavaleiro, o melhor amansador de potros das redondezas; vestia e
falava à moda gaúcha, de chiripa, jaqueta e poncho, sabendo, entretanto, manter
a distância; era o chefe completo pela norma que a natureza indica, a um tempo
protetor e verdugo, juiz e pai, distribuidor do bem e do mal. Afável e
severíssimo, risonho e terrível, amenizando fulminações de Júpiter com bromas
de bufão, criou o fanatismo da sua pessoa e a obediência cega. O cacique
Cachuel dizia, exprimindo o modo de pensar comum: “Juan Manuel nunca nos
enganou. Eu e toda a minha tribo morreremos por ele. Sua palavra é o mesmo que
a palavra de Deus”.
Este estado de espírito,
conseguido no feudo à força de compreensão psicológica e de rigor justiceiro,
deu-lhe ali o comando único, temporal e espiritual.
O caso de Rosas é virgem
na história. Vence por hipertrofia do seu feudo. As terras vão-se-lhe
aumentando sempre, pela aquisição de novas estâncias, e com elas vai crescendo
o seu prestígio e o número dos súditos agregados. Infatigável, e dotado de uma
capacidade de trabalho que só tem parelha na de Bonaparte, Rosas é um
proprietário que à custa de diligência cresce a ponto de acabar dono de todo o
país.
Seu feudo torna-se um
estado dentro do Estado; um Estado organizado, disciplinado, eficiente, onde
todos percebem a mão construtora e a cabeça firme do chefe, dentro de um Estado
em desordem, presa do permanente tremor de terra político de um liberalismo
ideológico, rico em palavras sonoras, mas incompreensivo e incapaz de implantar
a ordem.
O estado nuclear de
Rosas, ordenado, cresceu tanto à custa do seu rival desordenado, que terminou
por substituir-se a ele. Rosas não assumiu a ditadura de assalto, o que é a
regra; a Argentina é que veio aos poucos colocar-se sob o regime por ele criado
para Los Cerrillos. E como chefe
supremo da nação agiu com a mesma segurança, aplicando a mesma técnica que a
experiência lhe ensinara como a melhor para a direção da estância. É inimigo?
Elimina. É boi, cavalo bravo? Amansa, mete na canga. É díscolo? Olho da rua. A
prova da excelência do sistema foram os vinte e tantos anos de ordem que o país
teve, período que permitiu o surto das riquezas pastoris e preparou a base
econômica da Argentina atual.
Rosas varreu do país o
liberalismo palavroso. Uma fórmula simplicíssima dizia tudo, entrava cabeça a
dentro ao mais bronco e tornava inúteis a arenga comprida, o discurso, a
justificação, mil coisas complicadas e ineficientes. Essa fórmula começou
assim: Mueran los salvajes unitarios.
Unitário abrangia tudo quanto era antirrozista, o poeta autor dum soneto
desagradável ao paladar do déspota, o padre que murmurava no sermão contra um
ato seu, o filósofo que filosofava sobre as necessidades da pátria, etc. Mais
tarde, para combater a onda crescente do liberalismo tiririca, que brota sempre
por mais que a enxada lhe corte as raízes, enfeitou a fórmula mágica de mais
dois adjetivos: Mueran los salvajes,
asquerosos, imundos unitarios.
Isto, para vencer a
imaginação; para vencer o músculo criou a mazorca, espécie de fascismo
desenfeixado e sem organização militar. Era a matilha da plebe, que funcionava
aparentemente por conta própria, mas de fato açulada pelas habilíssimas
sugestões do ditador. Com estes simples ingredientes Rosas alijou da Argentina
o liberalismo, encurralou-o no exílio e pôde à vontade organizar Los Cerrillos transformado em Argentina.
Mas a máquina de dominar
(havia ainda duas peças, os bufões Don Eusébio e Biguá) revelou-se falha.
A Argentina inteira não
era, como Los Cerrillos, composta só
de peões. Havia nela uma elite que, embora pequena, significava muito; havia
ainda o elemento estrangeiro, os diplomatas, os viajantes ilustres, escol para
cuja coação não bastava a fórmula mágica. Esse elemento sutil não vai pela
força; quer ceder pela sedução.
Entra em cena a
sedutora: Manuelita, herdeira de todas as qualidades nobres do pai, acrescidas
umas, modificadas outras, e herdeira também do senso da oportunidade que
caracterizava sua mãe.
Dona Encarnacion Escurra
foi uma virago de alta potência, bem merecedora do cognome de Heroína da
Federação que lhe conferiu Rosas. Era feia, máscula, mulher de armas levar,
exaltada, violenta, maliciosa, suspicaz, sem o menor toque de graça ou langor
femininos. Foi uma companheira de Rosas escolhida a dedo pelo Destino. Sem ela
talvez Rosas não vencesse, como sem Manuelita talvez não se prolongasse tanto a
sua dominação. E os fados, sábios em suas combinações, fizeram desaparecer da
cena a mulher violenta no momento preciso em que, obtida a vitória, era mister
consolidá-la, papel prescrito não mais à mãe e sim à filha.
Rosas, para que sua
auréola crescesse sempre, morava longe das cidades onde seus rivais se
consumiam pelo atrito. Vivia ou nas estâncias ou em campanhas contra os índios
— o mesmo truque de Napoleão com a sua campanha do Egito. Crescia-lhe assim o
prestígio, insuflado pela notícia de feitos bélicos que a distância ampliava.
Mas Rosas, como
Bonaparte, nada deixava ao acaso e, embora sempre longe do cenário político e
como alheio a tudo, de fato manobrava todos os cordéis por intermédio de Dona
Encarnacion.
Era o tipo da agitadora,
esta mulher, da intrigante habilíssima que não escolhe meios e vai como a seta
ao alvo. Aliciava, comprava adeptos, tramava, matava, espancava — uma
verdadeira fúria esquecida a Ariosto.
Todas as cóleras e ódios
chamava-os para sua cabeça, desviando-os assim da cabeça do seu marido — tão
longe, o coitado, a desbastar índios no deserto...
Para ilustração do
caráter desta heroína basta a leitura de uma das suas cartas ao marido:
“A mulher de Balcarce
(era o governador que os restauradores queriam derrubar) anda de casa em casa
vomitando tempestades contra mim; o menos que diz é que vivo na dissipação e no
vício e que tu me olhas com a maior indiferença, e que por isso não cuido de
conter-me. Elogia-te o quanto degrada a mim; este é o sistema, porque a eles
lhes dói, por seus interesses, perder-te e porque ninguém dá a cara do modo que
eu a dou. Mas nada se me dá de tais maquinações; tenho bastante energia para
contrabatê-las; só me faltam tuas ordens, que em certos casos as supre minha
razão e a opinião de teus amigos, a quem ouço e classifico conforme valem, pois
a maioria de casaca tem medo e só me faz o “chambalé”... Tagle (ministro de
Balcarce) mandou pedir-me uma conferência, que só desejo para cortar-lhe as
orelhas”...
E esta outra:
“Um mulato, Carranza,
muito unitário, foi para o exército; dizem que te leva um barril de azeitonas;
não as comas sem que alguém o faça primeiro, não sejas tolo... Mando-te os
pasquins saídos estas últimas noites. Miñana foi para o Norte muito bem
instruído sobre o modo como deve agir (para a revolução restauradora): se o
descobrem estes malvados (os do governo) me lançarão a culpa a mim, mas isso
pouco me importa. Por toda a parte tienen
bomberos; um dos que espiam nesta casa é o “pícaro” de Castañon, o “edecán”,
porém no dia em que o pilhe hei de metê-lo dentro e le he de pegar una soba... Don Elias não aparece, creio que anda
“cubileteando” porque me tem muito medo”.
E mais este trecho de
outra carta, em que narra a invasão da casa do cônego Vidal, elemento contrário
à política de Rosas:
“Tiveram muito bom êxito
os balázios e o alvoroço que mandei fazer no dia 29, pois disso resultou que se
vai embora para sua terra o facinoroso cônego Vidal”...
Não é preciso mais nada
para definir a poderosa auxiliar de Juan Manuel, executora das suas ordens e para-raios
dos ódios que ele atraía. A atuação foi perfeita e oportuníssima. Fez-se a
revolução, Balcarce foi derrotado e organizou-se um interinato fragílimo, mero
guarda-cadeira que viveria até que viesse tomar o leme do comando o comandante
nato. Rosas aparece então preguiçosamente, como quem não quer, rogado e
implorado pela nação inteira de mãos postas. A sua técnica, como a de Bonaparte
no Egito, produziu um resultado maravilhoso. Tornou-o único no meio da multidão
de políticos estragados pelo uso e enfraquecidos pelas rivalidades. Veio do
deserto como um triunfador e displicentemente acedeu ao clamor deplorativo das
rãs que pediam rei, dando à Argentina a honra de presidir os seus destinos.
Vencer, como ganhar
dinheiro, não é tudo; resta a segunda parte, conservar, que é muito mais
difícil. Na primeira teve Rozas o instrumento ideal em Dona Encarnacion
Escurra. Esse papel primacial caberia na segunda a Manuelita.
Resultante de duas
forças extremadas, raiz e tronco, veio a flor com o seu perfume, o brilho das
suas cores, a sutileza da sua inteligência, a sedução da sua plástica embelezar
a tirania de Rozas durante largos anos, tornar-lhe possível a duração e
transmitir ao futuro o ensinamento de que os droguistas americanos, os Ayer, os
Reuter, tiraram tão ótimo partido: o açucarado e o dourado sobre a pílula
amarga. Manuelita foi a fina flor de sentimento e razão que açucarou e abrigou
uma das mais longas ditaduras da América.
Não se diria bela a
filha de Rosas, no sentido grego da palavra; possuidora entretanto de todas as
sub-belezas filhas da Graça e da Distinção, valia por belíssima. Beleza
moderna, em suma, teia muito mais de prender olhos e coração do que a
inexpressível, inumana e desinteligente beleza da Vênus de Milo. Su mirada es vaga, diz um contemporâneo,
y sus ojos, como su cabeza, parece que
estuvieram siempre movidos por ei movimiento de sus ideas. Era alta,
morena, pálida, tinha abundantes cabelos negros e o ar mais distinto e elegante
que se possa imaginar — diz Ventura de la Vega, que a conheceu em Londres. E
acrescenta: Su conversacion es franca,
pero muy fina y con golpes de talento que dejan parado.
Neste traço final está
toda Manuelita e o segredo da sedução que exerceu sobre quantos se lhe
aproximaram. Vibrava em seu rosto a beleza d’alma de mistura com a força da
inteligência. Aqueles golpes de talento
que dejan parado explicam melhor que longo discurso o prestígio de fada que
a nimbou durante a vida inteira.
Valeram-lhe talvez este
fato raro: passar pela tirania mais conspurcada da época sem que o acérrimo
ódio a Rosas ousasse espirrar em seu regaço o menor respingo de lama.
A meninice de Manuelita
foi o que podia ser uma meninice num agitado lar de caudilho — lar de carinho
sem ternura e união sem delicadeza. Era a casa de Rosas um permanente quartel
de conspiradores e fanáticos do mais variado pelo, e até dos seus aposentos
ouvia a menina o rumor das armas, o vozeio da turba em exaltações a seu pai,
com o entremeio das arremetidas de Dona Encarnacion em constante vociferar
contra os unitários.
A fúria política varria
a Argentina, forçando aquela infância melancólica a assistir a tremendos dramas
de sangue e brutalidade, como a revolução de Lavalle e o fuzilamento de
Dorrego.
Sua sensibilidade, rica
de todas as finuras, recolhe-se consigo ao bafo recrestante de tal ambiente — e
Manuelita sazona antes do tempo, qual manga verde metida em abafo morno de
cinzas.
É contingência do caudilhismo
político estear-se nas piores borras humanas. A casa de Rosas refervia de
caudilhetes de bairro, fósforos eleitorais, cabos de motim, negros e mulatos
espiões — futuras peças da Sociedade Restauradora e da Mazorca.
Nesse tempo abundavam em
Buenos Aires os negros, encurralados nos subúrbios em zonas turbulentas,
chamadas bairros del tambor em vista
do constante tantã dos candomblés. Organizados em colônias de minas, mandingas,
moçambiques, benguelas, congos, cada nação tinha lá seu rei, sua rainha de
beiçarra e suas usanças d’África.
Rosas corteja-os, vendo
nessa bárbara plebe de linhito boa matéria-prima para a máquina de compressão
social que já idealizava. Em carta à esposa estabelece tal política:
“Já deves saber o que
vale a amizade dos pobres (referia-se aos negros) e o quanto importa
conservá-la sem desdenhar meios de atrair e cultivar suas vontades. Não cortes
pois com eles.
Escreve-lhes, manda-lhes
presentes sem que te doa gastar com isto.
Digo o mesmo a respeito
das mães e mulheres dos negros e mulatos que nos são fiéis. Não deixes de
visitar as que o mereçam, nem de socorrê-las em suas desgraças. Aos fiéis que
já te hajam servido deixa-os que joguem bilhar em casa e obsequia-os como
puderes”.
Manuelita, já utilizada
pelos pais como força de sedução, era mandada à sala do bilhar, onde devia
sorrir para aqueles “tertulianos” de cujas bocas só saiam sandices e
“palabrotas”. Também ia, a convite, presidir tertúlias negroides, festas que
não principiavam antes que a princesinha chegasse.
Iam buscá-la em
préstitos. Conduziam-na a tronos. Só então começavam as danças, os cantos, a
música, a vociferação sempre afinada pelos mesmos temas: louvores ao Magnânimo
Restaurador das Leis e morte aos selvagens, imundos, asquerosos unitários.
Não se dispensava Rosas
da colaboração feminina, revelando nisto sua alta intuição da psicologia
humana. A esposa lhe servira às maravilhas enquanto o problema fora escalar o
poder; sua tática, com base na dissimulação, exigia comparsa fidelíssimo,
identificado em absoluto com os seus interesses e capaz de executar, a mandado
e por inspiração própria, todo um maquiavélico plano de golpes enxadrísticos.
Uma vez guindado ao poder, todavia, dispensava-se de uma Cerbera ao pé do
trono, a rosnar, nem era esse o papel para que a natureza melhor adequara Dona
Encarnacion.
Tratava-se de conservar
o poder e isso exigia ingredientes mais fluídicos, essências que a alma da
Heroína da Federação, demasiado violenta, não sabia estilar. Nascida para o
assalto, para acometer, para “pelear”, ignorava o sorriso que descrispa os
dedos agarrados ao punhal; ignorava a clemência que amaina o furor das paixões
como o óleo amaina o furor das ondas.
A situação exigia, em
vez de colmilhos arreganhados, o veludo negro duns olhos de fada donde fluísse
o mel da clemência e da simpatia.
E o destino de Rosas
deu-lhe em Manuelita o tópico ideal, que faria duradouro e tolerável o seu
álgido despotismo.
Perfeita antítese da
mãe, a vontade superior de Manuelita, norteada por sua inteligência de escol,
dominava-lhe os ímpetos do temperamento herdado e a mantinha sempre num suave
equilíbrio de serenidade. Poderia referver por dentro em lavas; essa lava ressortia
fora transfeita em flores e sorriso. De alma aberta a todos os ventos e, pois,
compreensiva de todas as impressões alheias, possuía a mais um controle
absoluto de sentimento, a ponto de não lhe apontar a história uma só descaída
de linha.
O cálculo frio de Rosas
fez-se nela prudência: o impulsivo da mãe transfez-se em medida. E se a finura
da sua sensibilidade, táctil a todas as nuanças das coisas, inclinava-a à
ternura — foi terna sem arroubos, porque a inteligência, sempre de freio à
imaginação, mantinha-a atenta às realidades, impedindo-lhe o deformá-las.
Em pleno delírio
romântico (que outra coisa não é a revolução) recebia Manuelita o calor da onda
de fogo sem inflamar-se, como não pegava de contágio nenhuma das febres
ambientes. Seu realismo penetrante livrou-a até da efusão mística, tão comum às
espanholas; piedosa e crente, não tomou da religião o histerismo e sim, apenas,
a parte pragmática — consolo e resignação na desgraça.
A moral de Manuelita foi
uma e inalterável: amar a seu pai e cumprir até ao estoicismo o seu dever de
filha. Na filha boa do rei Lear, Shakespeare desenha traços da sua irmã
platina. A juventude inteira sacrificou-a Manuelita ao egoísmo paterno,
suportando em respeito de “su tatita” transes que lhe deveriam custar as piores
torturas morais. Não seria das menores o forçar constantemente sua bondade
ingênita a uma ação mais passiva que ativa, dando ao sorriso mais afabilidades
que cordialidade.
Como instrumento
diplomático foi de finura inexcedível — e com grande habilidade a empregou
Rozas. Quando Oribe parte de Buenos Aires à frente das tropas que vão enfrentar
Lavalle, manda Rozas, que a filha o acompanhe um bom pedaço. Efeito fulminante.
Impressionado com a atitude da menina, Oribe escreve a Rosas: Con su señorita hija le mando decir que
fineza de esta clase sólo se pagan con sangre como si llega el caso lo haré.
Outras vezes utiliza
para firmar cartas por ele mesmo habilmente escritas, capazes de confundir ao
mais hábil psicólogo de epistolografia feminina. Na época do terror
encarregou-a do manuseio dos papéis secretos, das listas de proscrições — e o
historiador de hoje “fica parado” ao imaginar a cena da fada boa a lidar com as
listas negras do carrasco...
Além de seu melhor
instrumento foi Manuelita a doce companheira do tirano. Consagrada inteiramente
à tarefa de zelar por ele com carinhos de mãe, constituiu-lhe todo o lar,
encheu-lhe toda a vida íntima.
Também tomava a si o
contato do ditador com o mundo. Ela, quem atendia aos clientes, recebia os
pedidos, ouvia as súplicas, dava esperanças, fazia promessas; ela, em suma,
quem representava no sombrio palácio de Palermo a parte da graça e da
misericórdia.
Amou, Manuelita?
Sim, embora menos do que
foi amada. Amou a seu pai sobre todas as coisas e amou ao homem que mais tarde,
no exílio, já em idade madura, veio a ser seu esposo.
Amada foi de numerosos
galãs. Um enamorado britânico deixou crônica: Lord Howden. Par do reino, este
romântico fidalgo fora enviado à Argentina como representante da Inglaterra
para dirimir o conflito de que resultou o bloqueio do Rio da Prata pelas
esquadras inglesa e francesa.
Homem de altas aventuras,
ex-ajudante de ordens de Wellington, companheiro de Byron na Grécia, herói da
batalha de Navarino, comissário inglês no cerco de Amberes, nem o muito mundo
que correra, nem as muitas mulheres que vira o imunizaram contra os encantos de
Manuelita. Frequentava assiduamente as tertúlias da princesinha e lá se enleou
na sua teia de sedução.
Um dia promoveu uma
passeata a cavalo, durante a qual conseguiu emparelhar-se com a filha do tirano
e declarar o amor que o devorava.
Manuelita ouviu-o
silenciosa e grave, com os olhos perdidos no azul do horizonte. Dias depois
enviou a Lord Howden uma gentilíssima carta em que lhe pedia carinhosamente que
apenas visse nela uma extremosa irmã.
Ibarguren transcreve a
resposta do inglês, finíssima, modelo de ironia, que mal empalha o despeito
ressentido ante a fina diplomacia da tábua...
Esse amor inspirado ao
emissário inglês influiu seriamente na marcha dos acontecimentos.
Lord Howden rompe com o
emissário francês, conde de Walewski — não o filho do Corso com a formosa condessa
eslava — e faz suspender o bloqueio por parte das fragatas inglesas.
Ficam os franceses a sós
com a prebenda, arcando com o rancor dos argentinos, que incontinenti tiram do
lombo dos unitários e pespegam no dos franceses o terrível — “imundos e asquerosos”.
Howden era um homem de
espírito. Entre agradar Manuelita e agradar à França não vacilou...
Mas o drama se
precipita.
Soa em Buenos Aires o
grito de Roma: Anibal ad portas!...
As legiões de Urquiza avançam contra a capital, afogueadas de entusiasmo.
Partem ao encontro delas as duas criaturas que Manuelita mais amava no mundo — seu
pai, na chefia das forças oponentes e Maximo Terrero, o mancebo que soube
conquistar o coração da princesinha federal. Ia o noivo incorporar-se às tropas
e levava como talismã um lenço de Manuelita, bordado pelas suas próprias mãos.
Não há descrever os
transes da filha e da noiva quando o eco dos canhões alvorotou a cidade. O
embate seria decisivo e ela jogava o seu coração na batalha. Caiu de joelhos e
orou...
Sobrevinha a noite
quando Rozas reapareceu, fugitivo, disfarçado no poncho e no gorro vermelho de
um ajudante de ordens. Apeou na legação britânica, mandou um rápido bilhete a
lápis à filha e pediu o asilo da Inglaterra. Às 8 da noite Manuelita reúne-se
ao pai, pronta para a fuga.
Seguem dali para a
fragata Centaur” e desta para o “Conflict,
que os leva para o exílio.
Estava terminado o papel
de Rosas no mundo. Na Inglaterra iria vegetar numa casa de campo de Southampton
como um bom boiadeiro retirado dos negócios, mais atento ao reumatismo do que à
política de sua pátria.
Ao seu lado Manuelita
redobra de carinhos filiais e ameniza o exílio do leão enjaulado. O egoísmo de
Rosas revela-se em toda a sua grandeza. Continua a opor-se ao casamento da
filha, exige o sacrifício da amável criatura nas aras da dedicação indivisa.
Continuava à opor-se ao seu casamento com Terrero, não que lhe parecesse
indigno o noivo, mas para não se apartar da filha.
Manuelita escreve a uma
amiga em 53: “Aqui me tens na Inglaterra sem saber ainda onde iremos morar — mas
há de ser numa casa de campo. Nela viveremos conformados com a vontade de Deus
e observando a rigorosa economia que nossas circunstâncias impõem; passaremos
como seja possível, confiantes na justiça do Céu. Esta escola de conformidade,
que é a vida de meu querido paizinho, não me há faltado um só dia e assim vivo
perfeita e humildemente submissa ao meu destino”.
Mas Terrero muda-se para
a Inglaterra, arrastado pelo seu amor e isto revoluciona o coração da amável
conformada, que afinal resolve quebrar a resistência do egoísmo paterno e
receber como esposo o eleito do seu coração. Casa-se e escreve à mesma amiga:
“Petronita! Já estou casada com o meu Maximo!... Tu, que o conheces, podes ter
a certeza de que ele me fará completamente feliz. A doçura de pertencer-lhe me
fez olvidar todos os maus momentos e todas as desgraças da minha vida.
Abraça-me com força, e rejubila-te da felicidade da tua amiga”.
Já Rosas é num tom muito
diverso que anuncia a Petronita esse casamento. “Muito pouco me resta hoje,
depois que tua amiga (Manuelita) me abandonou com inaudita crueldade, e me
deixou só no mundo, justamente quando mais necessitava da sua existência”.
Ficou ele em
Southampton, na sua casa de campo, e Manuelita passou a residir em Londres,
donde vinha visitá-lo amiúde.
Essa separação forçada
era a única nuvem que empanava a felicidade de Manuelita, e daí o procurar
amenizá-la com visitas frequentes.
Rozas alugara uma
chácara e trabalhava para garantir a sua subsistência. É belo o fim da vida
desse tirano que teve tudo, que foi dono da Argentina inteira e acabava
trabalhando a terra para viver. Seu estoicismo espanta. Pobre e só, produzindo
o pão de que vivia em terra estranha, nesse momento o homem apresenta-se-nos
maior do que o tirano de Palermo.
“A justiça de Deus,
escreve ele a dona Josefa Gomes, está acima da soberba dos homens. O homem
verdadeiramente livre é o que, isento de fraquezas ou desejos excessivos, em
qualquer país e em qualquer condição em que se ache, segue os mandamentos de
Deus, atende à sua consciência e guia-se pela razão”.
Em Buenos Aires o
partido vencedor leva a cabo o processo de Rozas e o condena à morte e ao
confisco de todos os bens.
Rosas protesta. O seu
julgamento “só compete a Deus e à História, porque só Deus e a História podem
julgar os povos”.
Manuelita recebe a
notícia qual uma punhalada. “Que lhe parece a vida, amigo meu? escreve a
Francisco Plot. O general Rosas reduzido a viver do trabalho de suas mãos aos
setenta anos de idade, vítima da mais cruel espoliação e das ofensas
incessantes com que o perseguem seus inimigos com permissão do país ao qual
tudo sacrificou! Os poucos recursos que trouxe, e isso devido a um acaso
providencial, esgotaram-se. Se acaso meu pai necessitasse ainda de
justificação, esta pobreza completaria a sua coroa de glória. Expulso da
pátria, submetido sem murmurações ao seu destino, fiel aos seus princípios, sem
faltar nunca ao respeito da autoridade seja lá quem for que a represente,
privado dos seus bens de família, injuriado sem tréguas, é ele, no entanto,
para mim, para seus fiéis amigos e para seu país, o mais grandioso espetáculo
que a história apresenta entre os grandes decaídos.
Apesar disso, como filha
carinhosa, cada vez que considero a sua posição choro sem termo, e minha dor é
mais cruel porque me vejo despojada de tudo e não posso ajudá-lo. No meio de
tudo, porém, ao contemplar tão grande infortúnio suportado com tamanha virtude
e elevação de alma, confesso: é uma lição que aceito orgulhosa, pois vem desse
grande homem a quem devo a vida”.
E assim transcorrem os
últimos anos de Rosas, sempre assistido da grandeza moral de sua filha, a mais
bela alma de mulher que ainda figurou na história americana.
Um dia Manuelita é
chamada com urgência a Southampton pelo médico de Rosas. Vai. Era o fim. “Pobre
tatita!” escreve ela de lá ao marido. Ficou tão contente ao ver-me chegar! As
nossas predições desgraçadamente se realizam, pois dizíamos sempre a “tatita”
que aquelas saídas com tempo úmido em pleno rigor do frio lhe haviam de trazer
a pneumonia. A sua paixão pelo campo abreviou seus dias... Imagine que com um
destes dias de frio espantoso que tivemos ele saiu e esteve fora até tarde.
Resfriou-se e as consequências estão aí”. Rosas estava mal; não obstante
conversou lucidamente com Manuelita e troçou do médico. Depois ordenou — até no
último momento inda sabia ordenar — que a filha ficasse num aposento vizinho.
Às seis da manhã
batem-lhe à porta. “Saltei da cama, escreve ela ao marido, e quando me cheguei
ao doente beijei-o quantas vezes, como tu sabes que o fazia sempre, mas senti
que sua mão estava fria. Perguntei-lhe: “Como vai, tatita?” Sua resposta foi
mirar-me com a maior ternura: “Não sei, filhinha”. Sai do quarto para mandar
vir com urgência o médico e o confessor; só me demorei nisso um minuto; mas
quando tornei já ele tinha deixado de existir.
Vês, meu Maximo, que
suas últimas palavras e seus últimos olhares foram para mim, para sua filha...”
Com a morte de Rosas
desaparece do cenário do mundo Manuelita e surge em seu lugar a suave senhora
Terrero. Viveu ainda longos anos, escondida como pérola no recesso do lar, e
por fim se apagou com doçura, como as tardes serenas que caem lentamente após
um longo dia tempestuoso.
Com esta imagem feliz
fecha Carlos Ibarguren o seu precioso livro sobre Manuelita Rosas, donde
colhemos o material deste retrato. E o leitor “fica parado” e acaba perdoando a
Juan Manuel a sua ditadura em troca de haver enriquecido a história com tal
filha — magnólia de inebriante perfume desabrochada sobre a lama rubra dum
saladero.
--
In: Na Antevéspera
Atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)
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