A febre tinha começado à tarde, com arrepios de frio e uma forte dor de cabeça. Nesse dia, Miloca estava mais impertinente que de costume, teve fantasias extravagantes, exigiu impossíveis, irritou-se, chorou, até que afinal, vencida pela fadiga, adormeceu numa rede de algodão, tecido em malhas finas, de azul e branco, em que o pai costumava dormir à sesta. Quando foram tirá-la daí, viram que uma febre intensa escaldava-lhe o corpinho tenro.
Tinha sete anos então. Cabelos castanhos caíam-lhe em
cachos, da cabeça pequenina e bem feita, emoldurando um rostinho cheio, de
ordinário pálido, mas a que o estado pirético dava agora uns tons rubros, de
inglesa.
Quarenta e nove dias esteve enclausurada no quarto. Durante
todos eles, vinha o médico tomar-lhe o pulsinho magro, passava-lhe a mão pelos
cabelos e sobre a testa, acariciando-a, e, depois escrevia uma receita.
— Olhe beba isto que fica boa. Mas ela tinha horror ás
poções, aos xaropes, ao quinino, a tudo. Então ele, pachorrento e bondoso,
sentava-se na cama, ao lado dela tirava do bolso uma boneca, um brinquedo, um
mimo qualquer, dizendo: — eu lho dou, mas é preciso tomar o remédio. Ela
punha-se a chorar, queria a boneca, mas não queria beber aquilo que era
muito ruim. Ele insistia, que bebesse, que não era mau, e fingia tomar um gole
para animá-la. Afinal a pobre pequenita segurava no copo, fechava os olhos, e,
fazendo as carantonhas mais cômicas, ingeria a beberagem.
O pai e a mãe estavam sempre ali, ao lado delia, afagando-a,
prometendo quinquilharias para ela se acomodar, para aceitar os remédios.
Vendo-se alvo de tantos desvelos, envolvida numa atmosfera
tépida de lisonjas e submissões, tornou-se caprichosa.
Um dia quis almoçar nuns pratinhos de boneca. Colocaram-se
as fatias torradas num piresito, o chá num bule mínimo, ela derramou-o,
gravemente, numa xícara do tamanho de um dedal de moça, e não houve hipótese de
fazê-la repetir a operação. Uma senhora, entendia de si para si, não
devia tomar mais de uma chávena de chá. Nos dias de festa em sua casa, ou nas
casas de cerimônia, nunca tinha visto moça alguma cometer tal despropósito.
Depois a febre cedeu. Mas ainda não consentiram que ela
estendesse o seu passeio além da alcova, uma vasta peça, é certo, porém, ainda
assim, uma prisão.
Espreitava pelas frestas da porta e via, lá fora, o azul
vasto e límpido, que ia morrer tão longe, tão longe, como que a convidá-la para
uma carreira pelo campo. No jardim, uma rosa se abrira e estava a fitá-la, com
uma fisionomia alegremente expansiva, a sorrir, nacarada e fresca.
Que saudades lhe vinham de sua liberdade travessa, que
ímpetos de saltar, de correr, de brincar, com as outras pelo quintal, de
contemplar o largo rio rolando, sereno e majestoso, a sua enorme massa d'água,
de ir à missa com seu vestidinho novo, de ver os pássaros em revoadas alegres
perderem-se na mata, de alargar a vista pelo espaço sem fim, de sentir a
vastidão do mundo, embriagar-se de ar, afogar-se em luz!
Afinal sua mãe veio dizer-lhe: — hoje pode cair; mas não vá
apanhar sol.
Ela veio saindo, um tanto trôpega, morosa, muito magrinha,
com os olhos claros muito abertos, achando em tudo um ar de novidade. Depois
correu ao jardim, percorreu todos os cantos da casa, foi à porta da frente,
olhou a rua, tomando posse... Agora sim, podia brincar a larga, voltar à vida
de outrora, feliz e livre, sem remédios amargos e sem as reclusões mais amargas
ainda em sua insipidez.
No rostinho descarnado de convalescente, cintilavam de
alegria os olhos pretos; os lábios encurvavam-se num sorriso perene nunca fora
tão ruidosa em seus brincos infantis.
Numa só hora revivera os dias que passara jungida ao leito
pela moléstia pertinaz.
Porém, quando mais intensa lhe ia n'alma a doce alegria da liberdade, o prazer de ter
revivido, aflando-lhe o regaço
de criança, surpreendeu-lhe uma lembrança ingrata que a fez estatelar um
instante, suspendendo o folgar, banhada numa onda de gelo interno. E' que vira,
sobre uma banqueta, na sala de jantar,
o seu terceiro livro de leitura, a sua lousa, o seu caderno de escritas,
cobertos de pó, esquecidos e lembrou-se
dos aborrecimentos, dos dissabores que já lhe haviam dado, e por eles imaginou
os que lhe dariam ainda.
E viu que sua liberdade tinha peias, que seu prazer tinha
espinhos.
Ah! se não fossem os livros!... Ah! se não fosse a escola
!...
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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