5/31/2019

O almoço (Conto), de Antônio Sales



O almoço
Naquela manhã fora o Joaquim botar sentido ao roçado, em lugar do Chico, o caboclinho da casa, que tinha ido à vila fazer umas compras.
Era já em começo de maio, e a plantação pompeava um vigor esplêndido, prometendo abundantíssima colheita. Maus olhos não a podiam ver!
O milharal carregado de grandes espigas, em cujos ápices vermelhava a mecha dos cabelos, agitava ao vento os penachos louros dos seus pendões; e pelas suas hastes subia invasoramente o feijoal num enrodilhamento de serpe, salpicado de flores arroxeadas, em forma de pequenas borboletas, todo eriçado dos estiletes recurvos das vagens. De um e de outro lado do riacho, que atravessava sinuosamente o roçado, via-se o verde unido e tenríssimo do arrozal pondo uma faixa garrida e clara na tonalidade intensa das outras vegetações. As cabeceiras, jerimuzeiros e melancieiras haviam-se alastrado por todo o solo, entrelaçando-se num teçume inextricável e desabrochando promiscuamente em grandes flores de neve e de ouro fosco.
Como um contraste àquelas furiosas expansões de seiva, elevavam-se de longe em longe grandes esqueletos de árvores que o fogo das coivaras não conseguira abater e ali ficaram em atitudes estáticas de fulminados, com os braços negros tragicamente abertos, como a amaldiçoar a vida que tripudiava impudente a seus pés. Às vezes aqueles espectros requeimados davam a ilusão de um mágico reverdecimento quando as miríades de periquitos vinham pousar sobre eles, enfeitando-os com o verde álacre de sua plumagem. Sob aquele fictício enfolhamento os desgraçados pareciam viver e não mais entristeciam a paisagem com suas silhuetas lúgubres e ameaçadoras. Mas eram curtos os instantes em que gozavam o consolo que lhes traziam as aves compassivas, porque dentro em pouco uma detonação reboava e uma saraivada de chumbo vinha pôr em debandada os seus hóspedes, que fugiam num voo alucinado, a grazinar estridulamente; menos os que caíam exânimes varados pelos projéteis assassinos.
Era justamente para dar caça aos periquitos que o Joaquim ali estava desde às 7 da manhã, de espingarda na mão, o embornal das munições a tiracolo e uma grande faca de mato a pender do cinturão que lhe apertava a camisa de algodão da terra. Aqueles malditos estavam a dar cabo dos legumes! E isto sem falar nas raposas, que também tomavam parte na obra de destruição. Para apanhá-las armavam-se laços em frente a alguns buracos praticados propositadamente na cerca. Uma delas foi encontrada pelo rapaz, viva ainda, pendurada por uma pata da forte vara da armadilha, contorcendo-se em vãos esforços para libertar-se, raspando com as unhas o chão que mal podia tocar. Três pauladas seguras puseram termo ao seu suplício.
A nuvem de periquitos pairava medrosa sobre o roçado, executando rápidas manobras de investida e retirada.
— Chô, bichos! gritava vibrantemente o Joaquim quando os via descerem mais sobre as plantações; e quando, fatigados, eles iam pousar sobre as árvores mortas, uma carga de chumbo miúdo os dizimava, fugindo os sobreviventes para os recessos da mata próxima. Bandos de outras aves — coriças, azulões, e piririguás — baixavam frequentemente sobre o roçado, e o pobre do Joaquim andava numa lufa-lufa, de um aceiro ao outro, a jogar pedradas e a gritar frenético:
— Chô, bichos!
Por volta das 9 horas amainara-se um pouco a fúria da passarada famélica, que se via afinal obrigada a espaçar os seus assaltos. O rapaz sentiu fome e pensou no almoço. Não vinha comida ao roçado para o Chico, pois que este a trazia de casa — um pedaço de carne assada, um naco de rapadura e um pouco de farinha — tudo dentro de um saquinho de retalhos emendados. Quanto à água, o riacho estava ali bem perto. O Joaquim, porém, não trouxera comida, e alguém havia de trazer-lha. Mas quem? O Honorato não poderia vir, pois saíra muito cedo para pegar uma vaca que constava estar parida no mato. Só se mandasse a Vicência... A ideia dessas dificuldades aguçou-lhe o apetite, que ele resolveu enganar comendo uma melancia.
Desembainhando a faca entrou no embastido onde muitas dessas frutas se exibiam, enormes, oblongas, listradas de vivas rajas verdes. Em todas elas haviam traçado a ponta de faca a mesma marca com que o dono do roçado ferrava o gado. Joaquim inspecionou-as todas, batendo-lhes com a unha no casco, até que encontrou uma em que o piparote produziu um som cavo: — estava madura. Trouxe-a para um limpo e com um só golpe da faca partiu-a de meio a meio. As duas bandas apresentavam no centro uma bela mancha de um vermelho úmido e rútilo de lábios de mulher nova. E partindo-as em talhadas foi o rapaz devorando gulosamente, como um animal faminto, aquela polpa doce e refrigerante, que se lhe desmanchava na boca.
Findo o repasto, ficou-se a cismar à toa, espicaçando maquinalmente com a faca as cascas de melancia. O estômago saciado já não reclamava almoço e não diminuía, entretanto, a impaciência com que o esperava. Talvez o Honorato voltasse cedo do campo. E se não voltasse?...
Se não voltasse, então só a Vicência poderia ser a portadora, que não havia outra pessoa em casa. E como se achasse naquele instante mesmo em frente ao caminho que desembocava na porteira, trepou-se à cerca e olhou: não aparecia ninguém.
— Que sol danado! exclamou o rapaz apanhando o suor com o dedo e atirando-o fora com um estalo das falanges. O sol abrasava com efeito, e ele procurou o abrigo de uma choça de palhas de carnaúba para esse fim construída a um ângulo do roçado. Deitado de bruços na areia continuou a cismar. A possibilidade de vir a Vicência ao roçado fazia correr-lhe um calafrio por todo o corpo. Aquela rapariga, filha do vaqueiro de seu pai, andava desde algum tempo a olhá-lo e a sorrir-lhe de uma maneira estranha que o perturbava extraordinariamente. Ele já não podia fitá-la nos seus frequentes encontros, e à noite, quando se fazia roda à porta do vaqueiro para ouvir o Honorato dedilhar o pesqueiro na vila, sentia um entalo na garganta quando tinha de que falar a Vicência, mesmo que fosse para pedir-lhe um coco d'água. A sua situação tornara-se muito mais embaraçosa depois de uma certa manhã em que indo tomar banho no açude encontrou-se inesperadamente com a moça, que saía d'água em completa nudez. Ela agachou-se com um grito, enquanto ele voltava bruscamente as costas, sem poder balbuciar uma desculpa, e ganhava a casa cambaleando, com a vista turva e as têmporas a latejarem desesperadamente. Depois desta cena, o Joaquim passou três dias sem ir à casa do vaqueiro e mais passaria se a Vicência ao encontrá-lo a sós no pátio da fazenda, não lhe houvesse dito:
— Olhe, seu Quinca, eu não me zanguei com aquilo... bem sei que não foi por seu gosto...
Densos bandos de pássaros infestavam novamente o roçado, abarrotando-se impunemente de milho verde; mas o rapaz continuava a desfiar o rosário das suas reminiscências, num alheamento de que só o tirou a vibração de uma voz feminina que gritou à porteira:
— Seu Quinca!
O rapaz estremeceu violentamente e ergueu-se. Lá estava a Vicência, vermelha, esbaforida da caminhada, arrepanhando as saias com uma das mãos e segurando com a outra a trouxa em que vinha o almoço. Ao vê-la iluminou-se-lhe a boca com um sorriso.
— Já está com muita fome?
Abrindo-lhe a porteira e olhando-a de esguelha, com um sorriso atarantado, o Joaquim respondeu que não, que ainda era cedo, e, demais, tinha papado uma melancia. Entregando a trouxa, a moça explicava que se havia esperado o Honorato até aquela hora; que o Chico só voltaria à tarde e por isto Siá D. Chiquinha mandara-a trazer-lhe o almoço. E enxugando o rosto com a aba do casaco:
— Vamos para a casinha, que estou em termos de cair de cansaço, e quero voltar logo... Que sol dos diachos!
Transpunha a moça a porteira quando o gancho de uma estaca prendeu-lhe as saias, repuxando-as até mostrar-lhe um bom pedaço das pernas morenas e grossas. Tentando cobri-las precipitadamente, a moça tombou para a frente, e teve o Joaquim que ampará-la na queda com o braço direito, cingindo-lhe o tronco na altura dos seios, cujas protuberâncias macias comprimiu com força. Aprumando-se e desprendendo as saias, ela ria sem parar, nervosamente, e a sua hilaridade comunicava-se ao rapaz, dissipando-se a timidez que o constrangia momentos antes. Rindo cada qual mais e comentando o caso, penetraram os dois na palhoça.
E enquanto almoçava a sentinela do roçado, a passarada almoçava também, e desta vez tão livre e descansadamente que por fim em vez de comer cantava, cantava vibrante e descuidosamente, ziguezagueando a bel-prazer de moita em moita, como soberana absoluta daquela mansão que pouco antes lhe vedavam com tanta inexorabilidade. Houve mesmo um casal de bem-te-vis que foi noivar sobre a cumeeira da palhoça — os atrevidos!
E em todo o resto do dia não se ouviu mais a voz limpa e estridente do Joaquim gritar, como pela manhã: — Chô, bichos! — nem a detonação da sua lazarina ribombar no penetral das matas.

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Digitalização, pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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