5/07/2019

O Véu (Conto), de Teófilo Braga



O Véu

Tive apenas um amigo na infância.

Sinto abrir este conto com a minha personalidade; e, sem pretensões a humorismo, nem a estilo digressivo, conheço que a pessoa de um autor inculcando-se na sua obra produz o efeito desagradável, que o senso estético original de João Paulo nota no quadro em que o pintor agrupasse também a palheta, o cavalete e os pincéis. O valor da personalidade pouco é; os antigos compreenderam-na perfeitamente, quando deram o nome de persona à máscara que o ator trazia para reforçar a voz. A personalidade que se toca, serve para o trato da rua; a individualidade, o caráter, revelado na vontade, são imanentes no livro, são o livro. Antes porém de fechar o parêntesis aí vão algumas linhas sobre a pessoa do meu único e primeiro amigo, um alter-ego, ou fidus Achates, como diriam dois estudantes de seleta. Não nos demos de repente. Tínhamos o mesmo nome de batismo, fazíamos anos no mesmo dia, começamos a versejar ao mesmo tempo; a afinidade eletiva entre nós não provinha destas coincidências, nunca reparamos nelas; era uma amizade de terror, respeitávamo-nos. Na escola fomos sempre antagonistas; quando passamos a estudar latim, ficamos surpreendidos ao vermo-nos algemados ao hora, horae. Ainda os mesmos desforços, o mesmo orgulho. Então já nos consultávamos sobre alguma dúvida de sintaxe, como de potência a potência. Mais tarde encontramo-nos sobre o mesmo banco a ouvir as preleções estúpidas de lógica, a lógica que nos havia de tornar maus, capciosos, ergotistas. Já não nos temíamos, éramos amigos, tínhamos necessidade um do outro. Depois vieram as confidências estreitar mais esta afeição. Foi ele o primeiro a faze-las. Não sei se era amor, compaixão ou cinismo a primeira aventura que me contou. Era assim:

Eu tive uma prima, não sei em que grão, culpa das sutilezas canônicas. A pobre criança possuía uma morbidez voluptuosa no olhar, não os tirava de mim. A cor morena dizia tão bem com as linhas nítidas da fisionomia árabe, que ela sabia animar com um ar doloroso de uma melancolia expressiva, que se lhe refletia na face! Eu ficara órfão de mãe e costumara-me a brincar sozinho; ela procurava-me na minha solidão, sentava-se junto de mim; o seu olhar incomodava-me. Mas tinha medo de fugir-lhe, doía-me esta indiferença e para disfarçá-la trepava acima das árvores carregadas de frutos do pomar onde passávamos o verão, e de lá deixava cair aqueles que mais se douravam com os raios do sol de agosto, os que me expunham a maiores perigos. Ela aparava-os no regaço com a afabilidade com que se queria associar aos meus folguedos.

Afinal teve vergonha de mim; corava, escondia a face entre as mãos, ficava pensativa e depois fugia-me. Neste tempo contava eu algumas lições de desenho; os meus arabescos tinham uma frescura de inocência, uma rudeza que parecia uma criação pura arte medieval. Eu tinha a monomania de esboçar cabeças. Não sei quem na família, me pediu que fizesse o retrato dela. Fi-lo. O caso deu-lhe uns longes de semelhança, tive vergonha da verdade; quando ela me agradeceu com um sorriso tímido, eu rasgava o papel com a crueldade de uma criança que brinca. Não a voltei a ver naquele dia, escondera-se a chorar. Não tinha culpa desta frieza brutal; a falta de carinhos perdidos logo no berço, a verdade desse verso eterno de Virgílio:

Est mihi pater domi et injusta noverca

tornaram-me taciturno, incrédulo antes de tempo. Às vezes obrigavam-me a brincar com ela. Uma vez fomos todos banhar-nos no Atlântico. A pobre criança também foi. As marés eram gigantescas; era dia para mim de um orgulho imenso, gostava que me vissem nadar; mostrava uma superioridade minha. O acaso seguia-me o desejo. Uma onda envolveu no seu marulho a infeliz Branca; no refluxo levou-a consigo. Desfaleceu de susto e foi levada pela vaga, como Ofélia na corrente. Quem sabe se ela no seu coração tecia alguma coroa para mim.

Abracei-a pela primeira vez, impelido por uma força interior; sustive-a nos braços, estava fria, pálida. Quando abriu os olhos teve vergonha de mim; era já o pudor de senhora. Trouxe-a sem custo para a praia, e continuei em carreiras no dorso da vaga, que se encapelava. Fora o meu primeiro passo para homem.

Nesse mesmo dia brincamos, jogando o anel, um divertimento infantil, de que ainda guardo saudades. Neste folguedo de crianças o que tem o anel é sentenciado pelos demais a levar beijos e abraços, ou a dá-los, segundo o capricho. Tinha o anel a filha do feitor que brincava conosco, Anita, uma rapariga de uma candura estreme. Branca pediu-lhe em segredo que ao percorrer a roda deixasse cair o anel entre as minhas mãos. Assim se deu. Um perguntava o que prometiam a quem tivesse o anel. Cada qual se lembrou de uma prenda inocente e insignificativa; Branca prometeu um beijo e um abraço muito apertado.

Eu não devia contar-te mais, porque me sinto infame! Este beijo perdeu-a para sempre, como o beijo de Paulo e Francesca di Rimini.

Branca foi crescendo, tornou-se formosa à luz de uma esperança fugitiva, como a flor de um vaso, quando recebe, ao estiolar-se, o calor efémero do último raio do sol da tarde. Quando ela me sorriu com amargura, e corou da sua queda, sorri também por compaixão, iludi-a. Que fazer, se eu era tão novo, inconsciente, e queria divertir-me, gozar o mundo?

Uma vez tinha eu voltado pela antemanhã de uma festa louca. Dormia a sono solto, prostrado pela fadiga, esgotado da orgia desenfreada. Senti uma mão fria passar-me de leve nas faces, acordei.

Era ela! Apareceu desmaiada, como a vi uma vez ao luar silencioso, com uma cor que lhe realçava a candidez, e disse-me:

 Vim ver-te na despedida do túmulo. Desde que adoeci nunca mais me apareceste. O esquecimento é frio e pesado como a lajem sepulcral. Eu não queria dizer-te isto, não quero magoar-te; perdoa. Olha, hoje acordei de um sonho tão lindo! deu-me forças para levantar-me do leito e vestir-me de branco para vir contá-lo a ti só. Como não choraria a minha mãe que me vela se o soubesse! Não sei se velava, se dormia; minha alma parecia voar, suspensa numa como cadência, vaga, quase imperceptível, confundia-se com ela até perder-se no céu. Acordei de súbito; restava-me só a ilusão. Olhei em roda; a lampadazinha tornava a solidão pungente, augusta; pavoroso o silêncio do meu quarto. Comecei a lembrar-me de ti, dos passados tempos; estava já na terra. Foi quando descobri ao meu lado uma aparência angelical, a falar-me de mansinho uma linguagem que eu mal entendia: que o Senhor o enviara para chamar-me. Eu não pude voar, voar com ele, e sinto agora que a alma me foge; venho dizer-te adeus.

— E o que lhe respondeste?

— Ele continuou:

Disse-lhe que os sonhos mentiam sempre, que eles a matavam. —  “Não são os sonhos que me matam, gemeu a desgraçada, é a realidade, a realidade. Bem o sabes, e esse que tudo vê. As recordações são para mim como um remorso. Que noites, que vigílias inteiras a pensar em ti! cada palavra tua, que eu decorava, era um poema de amor e esperança; ao repeti-las na mente diziam-me quanto a alma ansiava, e mais ainda, mas enganaram-me sempre. Lembras-te daquela noite? Oh! meu Deus, meu Deus. Não sabes quanto me fizeste sofrer! Não conheceste a profundidade do golpe quando o descarregaste! Disseste-me essas palavras só para perder-me. É impossível que isto te não doa? Quando me apareceste naquela noite era o luar tão sereno, tudo confidenciava conosco. Estava adormecida quando chegaste. Depois de me estreitares nos braços e beijares as faces geladas pelo rociar da noite, porque sorriste de um modo incompreensível? Descobriste-me que não casavas comigo, que outro havia poluído a minha candura! Era uma blasfêmia brutal. Deixei-me cair nos teus braços, sacrificando-te a virgindade para que a reconhecesses. Desde essa noite não me tornaste mais a amar. Iludi-te? Por que assim me fugiste? Uma lágrima só reabilitava-te diante de Deus. É tarde, muito tarde. Vim só para despedir-me e perdoar-te. Adeus.

 E tu que lhe respondeste?

Voltei-me sobre o outro lado, e continuei a dormir.

— Prossegue.

Foi um pesadelo atroz aquele sono. Julgava-me numa orgia imensa, na hora ominosa do shabat noturno. Um bando de mulheres volteava reunido numa coreia desenvolta, num tripudio infernal, ao redor de um carvalho lascado pelos raios que se cruzavam a espaços na solidão e escuridade absoluta da noite. Dançavam como possuídas do mesmo furor que inspirava a corneta de Oberon. Quando eu ia mais arrebatado pelos requebros voluptuosos, enlaçado a um par ligeiro e flexível, senti um leve suspiro ao meu lado, que se perdeu nos ares. Era como o segredo de uma mágoa que eu bem conhecia. Parei. Adormecera a ler uma balada dos peregrinos do Reno contada por Bulwer. Junto a mim descobri uma figura de mulher linda, etérea; o rosto tinha a serenidade de uma grande agonia que cauteriza, uma tristeza mais vaga do que a impressão de saudade que a lua desperta quando se reflete numa lagoa quieta. Era como um serafim quando chora. Não pude olhá-la; a candura do seu antigo amor exprobrava-me o cinismo. A viração que ciciava não repetiria tão brandamente o que ela disse:

 Não sabes como te amo ainda além da campa! o gelo do sepulcro não pôde apagar o fogo em que os teus olhos me abrasaram. Esqueci o teu desprezo para perdoar-te. Para que havia ter mais esse flagício na eternidade? Que destino, que felicidade a nossa, que regozijo no céu, se não houvesses ludibriado este amor! Nossas almas absorver-se-iam na essência de um anjo, enlevadas num sonho de harmonia, até despertarmos no empíreo. Assim precipitaste-me na mansão das penas e sofrimentos, onde o meu espírito se apura. O amor terreno tenho-o expiado no fogo. Vês este cendal de alvura transparente? estava quase a tornar-se brilhante de glória! Pedi a Deus este momento tão breve para poder agora ver-te; o gozo fugitivo de contemplar-te, a esperança de te achar triste, pensando em mim com pesar e saudade, a troco de mais cem anos de novos sofrimentos! Cem anos mais, depois de te encontrar nos braços de outras descuidado, rindo desvairado numa orgia dissoluta. Oh, mas eu não sei senão perdoar-lhe.” —  E desapareceu-me, continuou ele, como um meteoro fugaz, quando passa nos céus, e deixa após si um rasto luminoso. Acordei.

Em casa ouviam-se gritos, alaridos, como de um sucesso repentino e funesto. Fui a ver. Disseram-me que Branca desaparecera. Cheguei a convencer-me da realidade do sonho, que um anjo a levara consigo.

Perguntei debalde. Passou-me pela mente um pressentimento horrível. Branca costumava ir sentar-se sobre uma rocha que se debruça sobre o mar, e em cujas furnas as vagas restrugem com um estridor surdo, como o anseio do último esforço numa luta desigual. Protegida pelo nevoeiro da madrugada, mais veloz que a ondina da mitologia eslava, a pobre fora saciar os pulmões ralados da febre lenta que a devorava. Houve quem a visse dependurada na aresta dos fraguedos, o véu branco que levava flutuar ao vento, como num adeus de despedida. Ela sentira nesse instante a atração do abismo, lembrou-se daquela tarde de agosto, em que eu a salvara, trazendo-a com um abraço à vida; quis morrer com a recordação mais doce que levava do mundo. Precipitou-se. E o mar murmurava sereno e manso, como a embalar-lhe o seu último sono.

Comecei então a sentir uma paixão por ela, depois de morta; se a terra a tivesse escondido, eu a iria arrancar ao repouso sagrado da sepultura, beijá-la, animá-la com o fogo do meu delírio, despedaçá-la nestes braços convulsos, e cair também inânime. Queria sentir bem junto do peito o contato gélido de um corpo que eu tantas vezes apertei, das faces que eu devorava, quando ela se dava aos caprichos da minha vertigem. Havia neste amor um pensamento de alucinado, um tanto de selvagem, de monstruoso; impelia-me uma inquietação contínua, sentia em mim um como ranger de puas do remorso, a voz que interroga Caim. Fugia, não queria consolações. Eu ia sentar-me também na rocha escarpada, a ver o mar, procurando a serenidade que me inspirava a contemplação do sepulcro da minha amada. Vinha visitá-lo, à busca desse alívio de que fala o poeta do Oriente.

Eram decorridos já três dias, não se vira mais o corpo de Branca; o mar queria-o para si, mas eu tinha uma vontade fervente, absoluta, o desespero de torná-la a ver linda, roxa, nua, desfigurada. Era o mais que podia sofrer. Ia a maré na vazante, no fim da tarde, as ondas gemiam brandamente no areal deserto, as virações da noite sopravam frias, úmidas das bandas do poente. Quando desci da rocha escarpada, encontrei inesperadamente o corpo de Branca estendido na área. Era uma criança descuidada, adormecida; a onda que a tinha despido para namorar-lhe a alvura do corpo, viera depositá-la na praia. Ia a precipitar-me para ela, uni-la a mim no frenesim dessa loucura. Tive medo! recuei sem encará-la. Temi profaná-la com a vista; estava quase nua, de costas, com os olhos no céu, como pedindo à noite que viesse recatá-la no seu manto de trevas. Quando voltei junto dela com o lençol para a envolver, senti uma anciã de passamento, a lucidez de quem entrevê a eternidade: conheci que o cadáver de Branca se voltara de bruços, furtando à vista profanadora o verticilo pudibundo da flor que eu fizera pender sobre o caule e cair emurchecida. O inexplicável deixou-me um terror que ainda me dura...

Não tive ânimo para lhe pedir que continuasse.

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