5/08/2019

Os quatro filhos de Amon (Conto), de Teófilo Braga



Os quatro filhos de Amon
(Conto do Cerco do Porto)

Havia três dias que o Marechal Solignac desembarcara no Porto com alguns soldados belgas; com eles entrara também para dentro do cerco um terrível inimigo — o cólera-morbo. Aos tipos, que já devastavam a cidade, veio juntar-se essa nova desolação, para tornar mais completo o triunvirato da morte. De cem pessoas, atacadas diariamente, sucumbia um terço. A fome ia conduzindo ao desespero, porque, além das forças inimigas, desde Janeiro que os vendavais bloqueavam a barra. À falta de carne, os doentes eram sustentados a sopa de bacalhau; os caldos eram temperados com açúcar e aguardente, as camas eram desfeitas para sustento dos cavalos, e, além dos preços dos gêneros encarecerem, os merceeiros vendiam falsificações doentias, tais como de azeite e óleo de linhaça, ou de manteiga e sebo. Era preciso lutar com a fome, e em fevereiro começou a distribuir-se uma sopa econômica, de um quartilho de caldo de feijão com arroz e farinha de trigo; no primeiro dia acudiram trezentas pessoas, ao segundo dia subiram já a setecentas as rações. Enfim, desde a perda do reduto do Monte de Crasto, que Solignac apenas conservou oito horas, as condições de resistência da cidade tornaram-se desesperadas; derrotado o marechal, na sua tentativa de assalto ao Castelo do Queijo, em 24 de janeiro, a consequência desastrosa fez-se logo sentir. O inimigo compreendeu que, fechando a barra do Porto, venceria o cerco pela fome. Para isso fortificou quase toda a costa, e levantou a terrível bateria de Serralves, que cortava toda a comunicação com a Foz. Pelo seu lado, os liberais reforçaram o reduto da Senhora da Luz e ocuparam imediatamente as alturas do Pasteleiro e do Pinhal. Mas a resistência ia-se tornando cada vez mais inútil, porque além da chuva de granadas que caiam dia e noite sobre a cidade, além da recrudescência do cólera, para o qual já não bastava o hospital da Quinta dos Congregados, o mar conservava-se tão tempestuoso que não era possível aparecer vela alguma no horizonte! Foram quarenta dias desesperados, quarenta dias em que esteve tudo perdido, menos a força moral.

A história oficial, subordinada à exação dos boletins de campanha, não alude a este ciclo dos quarenta dias do princípio do ano de 1833, e contudo nesse período de desolação extrema é que se praticaram os maiores rasgos de validez moral: todos foram heróis, as mulheres, os velhos. É triste que homens do talento de Garrett e de Herculano, e mesmo generais que sabiam trocar a espada pela pena, e que foram heróis nesses grandes dias de sacrifício, se não lembrassem de coligir as sublimes tradições épicas do cerco do Porto, que ainda casualmente se repetem. Essas tradições vão-se perdendo, como toda a poesia de um povo, que começa a morrer pelo esquecimento do seu passado. Contaremos um desses esplêndidos episódios, desconhecido dos historiadores, mas conservado ainda na vida burguesa do Porto; pinta-nos o espírito de resistência em que a cidade se achava, nesses quarenta dias decisivos.

A 4 de março, as tropas de D. Miguel foram atacar as posições dos liberais na Foz, seguras de que era já impossível sustentá-las mais tempo; no meio da sua alucinação, os atacados tomaram a ofensiva, e os rebeldes retiraram-se deixando duzentos mortos no campo. D. Pedro, que gastava os seus esforços em conciliar os generais despeitados, aparecia sempre em todos os momentos de conflito. Era junto dos soldados, ao pé dos voluntários burgueses, que ele readquiria confiança e se mostrava alegre, pressentindo o triunfo da causa da liberdade. D. Pedro apareceu na bateria da Luz; foi aí que se viu um velho que ele encontrava sempre vagabundo pelas linhas, nos pontos em que eram renhidos os ataques. Notou que o velho andava desarmado, e observando diligentemente; não pôde deixar de dirigir-se a ele com um interesse e familiaridade em parte provocados pelo seu aspecto venerando e cheio de autoridade:

— Amigo! que faz você por aqui?

— Senhor, tenho aqui nas linhas um filho.

— Bem; então ande à vontade, se não tem medo das balas.

— Medo das balas? Isso são confeitos de noivado. Não tivesse eu cá os meus setenta e quatro, que outro galo cantaria.

— O seu filho, vê-o daí?

— Por enquanto ainda o vejo. Não estou aqui por ter medo de perdê-lo; é para ir sossegar as mulheres, as irmãs, que sempre estão com preocupação. Querem saber alguma coisa das linhas.

Este diálogo foi interrompido por um toque de carga à baioneta; pode-se imaginar quem trouxe para a cidade a notícia do triunfo. Chegou o terrível dia 24 de maio; estava acabado de construir o reduto das Antas, guardado apenas por trinta soldados de caçadores 5. Nisto, as tropas inimigas, de dois mil homens, tomaram o reduto das Antas! Era preciso desapossá-las, a todo o transe, e de fato não puderam conservar o reduto além das três horas da tarde desse dia. Infantaria três, nove e dez, quarenta lanceiros e um batalhão inglês cumpriram o seu dever; foi uma refrega atroz. O Monte das Antas ficou juncado de cadáveres; mais adiante, na Casa Negra, era ainda maior a carnificina.

Foi no combate da retomada das Antas que D. Pedro voltou a encontrar o velho burguês; já lhe tinham dito como se chamava. Era o contraste do ouro, o tipo do antigo homem bom, chão e abonado, como o caracteriza a Ordenação do reino; chamava-se Cosme Martins. Assim que D. Pedro deu por ele no tropel, destacou-se dos oficiais, para falar-lhe:

— Outra vez por aqui, com este fogo?

— Tenho cá outro filho.

— Outro filho? Como se chamam os rapazes?

— Na bateria da Luz está o meu Eduardo, tem dezenove anos feitos.

— Pode bem com a espingarda. E o outro?

— Está aqui nas Antas; é o meu Thomaz, já formado em leis.

Em meio da conversa, D. Pedro foi interrompido por uma destas circunstâncias que se dão em todo o campo de batalha; vieram contar-lhe como se achara uma carta na algibeira de um morto por onde se sabia que era o major dos realengos de Trancoso. Não se tornaram a ver, nesse dia, o velho e D. Pedro.

A sete de abril, descobriu-se a longa estacada feita pelos inimigos desde as primeiras casas de Paranhos até à Eira do Covelo. Queriam fortificar-se ali; não havia tempo a perder; era preciso desalojá-los. A artilharia dos liberais começou a responder desde as nove horas da manhã, e durou o fogo até às seis horas da tarde. Cruzaram-se as baterias da glória, do Pico das Medalhas, do Sério, da Aguardente e de São Brás. Uma força de mil homens saiu fora das linhas, para tomar de assalto o monte do Covelo, que os inimigos abandonaram. Porém, no dia 10, os miguelistas voltaram, com o intuito de retomar os pontos perdidos, onde os liberais tinham levantado um reduto em menos de oito horas. Estavam lá dentro apenas duzentos soldados; foram atacados por mais de dois mil dos rebeldes, que chegaram até dez passos de distância. No meio do fogo, quase à queima-roupa, jogavam-se os insultos que tornavam mais violento o ataque; de dentro perguntavam aos assaltantes se eles traziam os sacos para a pilhagem da cidade. Foram momentos decisivos: duzentos homens livres puderam esmagar dois mil janízaros.

No meio desse implacável desbarato, andava D. Pedro, e quando voltou a avistar o velho, que estava envolvido num antigo capote de camelão, sorriu-se para ele, como quem o tomava já como um presságio de felicidade. E enquanto tocava a reunir, D. Pedro foi para ele, esfregando as mãos:

— Olá! bom homem.

— Senhor D. Pedro, eles hoje é que pagaram o vinho.

— E bem pago. Então você tem por cá mais algum filho?

O velho não pôde deixar de alegrar-se com a pergunta maliciosa, e respondeu com uma convicta serenidade:

— Tenho aqui mais outro filho.

— Outro filho, homem! De dois, sei eu.

— Este é o que me ajuda no ofício; ficou de ontem para hoje no reduto do Covelo, e já sei que está são como um pero...

— Parabéns, amigo, parabéns. Com que então, na bateria da Luz, um; no reduto do Monte das Antas, outro; no Covelo...

— É o meu filho Cosme.

— Ainda tem mais algum?

O velho sorriu-se, com ar de quem busca atenuar uma frase, que poderia ser tomada como expressão de vaidade:

— Não queria falar do outro filho, que tenho na bateria do Pico das Medalhas, antes de me encontrar ali com a vossa majestade.

— Oh! homem! outro filho?

— E mais que tivesse; esse é o meu Fortunato; e quando não está no fogo da bateria fica de semana, em serviço médico no hospital dos coléricos de São Pedro de Alcântara.

D. Pedro emudeceu diante da revelação casual de um tão completo sacrifício. Abraçou o velho, porque não pôde articular palavras, e os olhos marejaram-se-lhe de lágrimas. Aquela natureza egoísta, como a de todos os príncipes, insensível à dedicação como o revela a demissão do grande Mouzinho da Silveira, foi uma vez tocada pela realidade das coisas. As palavras desinteressadas daquele velho revelaram-lhe que se ele sabia sacrificar-se por uma filha, ninguém, numa cidade sem muros, cercada por mais de oitenta mil inimigos, dizimada pela peste, apertada pela fome, ameaçada pelo saque, ninguém poupava o seu sangue, porque todos queriam converter a liberdade num direito. O sacrifício de um pai ficava suplantado pelo sacrifício a uma geração inteira!

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