5/31/2019

Tique-taque (Conto), de Medeiros e Albuquerque



Tique-taque
Descíamos, conversando, a praia de Botafogo. Vínha­mos de uma visita ao Hospício de Alienados e, natural­mente, a conversa recordava os episódios da visão dolo­rosa e trágica que nos enchera os olhos durante o dia.
Éramos três: o Lery e o Bráulio, estudantes de me­dicina, em vésperas de doutoramento, e eu. Eles dois, internos no Hospício, acostumados àquele espetáculo cotidiano durante anos, falavam de tudo com a maior naturalidade. Citavam loucuras terríveis e estranhas, cuja narração bastava para dar calafrios de horror, con­siderando-as a título, simplesmente, de belos casos pato­lógicos, dignos de estudo, de que tratavam sem a menor emoção.
Quanto a mim, o que me impressionava mais viva­mente não eram as formas violentas do desequilíbrio mental, as fúrias, os gritos, os delírios que exigem a segurança das casas fortes; eram, pelo contrário, os pequenos desvios da razão, as alucinações mansas e calmas, que obstinam o espírito em direção errada, só em um ponto, e deixam em tudo mais a integridade inte­lectual.
Às vezes, ao passar, um louco chegava-se a mim e segredava-me, em voz natural e firme, cheia de convicção — a convicção que faz os grandes heroísmos — alguma bizarra extravagância, concluindo por queixar-se de que o houvessem arbitrariamente sequestrado naquela com­panhia de doidos. E, para ser amável, tinha o cuidado de mostrar-me aqueles que na sua opinião "estavam realmente loucos". Durante este tempo, esses outros que o meu interlocutor apontava como verdadeiros alienados, passavam sorrindo, com maliciosos olhares de inteligên­cia, a indicar-me que o único louco era ele. E instinti­vamente chegava-se a duvidar da própria razão, cismando no simples desvio, no descarrilamento sutil que basta para arredá-la do seu reto caminho.
Vínhamos agora a pensar em tudo isto. A tarde era magnífica. O sol, já desde muito escondido, tinha ainda pelo céu um desmaiamento de luz frouxa e in­decisa, um crepúsculo pálido e suave. O mar sussurrejava, rendando de branco a orla das ondas pequeninas c baixas... Ã porta dos jardins, grupos de moças con­versavam. Via-se distante a casaria branca de Niterói. Na curva harmoniosa e larga da baía, grandes navios garbosos molhavam no ar calmo os aventureiros mastros, saudosos talvez de outras tardes distantes, de outros lon­gínquos crepúsculos. A entrada da barra, aberta lá ao longe como uma porta escancarada, era uma evocação dolente da tristeza das partidas... Tudo enfim naquela hora de infinita mansidão assumia um tom doce e meigo, uma brandura anêmica de convalescença...
Aos poucos a conversa tinha ido afrouxando. Havia largos momentos em que nos calávamos todos, sentindo que a sugestão daquela tristeza ambiente amortecia em nós a vivacidade das réplicas.
Falávamos lentamente, em voz mais baixa. E a memória, conformando-se à meiguice triste da hora, evocava tão somente a lembrança de certas loucuras de uma tristeza infinitamente meiga.
Havia entre outros, no Hospício, um rapaz que todos nós conhecêramos em perfeita saúde. Era um tipo expansivo e jovial, sempre alegre, sempre disposto à troça e à galhofa. De repente, porém, começou a fazer-se retraído e triste, a tornar-se tão áspero e insociável, que foi quase sem surpresa que lhe vimos o nome em uma local gazeta, como autor de uma tentativa de assassinato.
No correr do processo verificou-se a causa do crime. Era o delírio de perseguições.
Uma alucinação persistente fazia-lhe ouvir alguém que o injuriava. Por vezes, em um transeunte que passa­va falando, ele julgava reconhecer a mesma voz — e vinha-lhe ímpetos de matar o indivíduo. Afinal, um belo dia, não pôde mais conter-se: atirou-se a um pobre homem que conversava e tentou esganá-lo entre os dedos convulsos.
Foi a custo que livraram a inocente vítima, en­quanto o poviléu bestial rugia gritos de mata! contra o agressor, que da prisão passou rapidamente para o hospício. Aí, a loucura seguindo a sua marcha natural, ele começava a evoluir ao delírio das grandezas. Quando o visitamos nesse dia, tinha na cabeça um chapéu ar­mado de papel, atravessado napoleonicamente e, de braços cruzados, com os lábios franzidos em atitude olímpica de desprezo, fitava-nos com o mais requintado desdém, nem sequer se dignando falar.
Saímos com um pesar extremo a compungir-nos. Em pleno vigor de mocidade e talento, era de fato infinita­mente triste ver aquele soçobro de um futuro, que podia ser tão grande e tão belo!
Como eu acabasse de falar nisto, o Bráulio redarguiu:
— É verdade. Há, como esse, muitos casos igual­mente tristes. Eu, porém, que já vou perdendo a excessi­va sensibilidade que tu mostras, tenho ainda um confrangimento íntimo ao lembrar o fato que mais me impressionou, depois que estou trabalhando no Hospício... Não creias — continuou depois de uma pausa — que fosse alguma coisa extravagante e espetaculosa. Pelo contrário: tudo o que possa haver de mais calmo, de menos violento... Calcula por ti mesmo... Tra­tava-se de uma moça de dezenove anos, inteligente e formosa, — tão formosa que eu estou romantizando o episódio.
"Pois bem: essa moça casou-se, passou uma vida deliciosa durante um ano, e, de súbito, na ocasião do primeiro parto, após uma febre puerperal, endoideceu."
A voz do Bráulio fizera-se grave. Tínhamos che­gado ao extremo da praia. Voltamos. Era já noite. No azul, que a claridade da lua minguante desbotava tristemente, algumas estrelas iam surgindo. Subimos de novo por junto do paredão. A maré crescera aos poucos, as vagas eram mais fortes, esboroavam-se sobre as pedras com um clamor mais alto, mais plangente...
— Endoideceu — prosseguiu o narrador — passou dois meses em um delírio violentíssimo e, de repente, ao cabo desse tempo, aquietou-se na mais profunda calma. Passava os dias sentada a um canto da célula em que estava. Todo o seu corpo absolutamente inerte parecia inteiriçado pela catalepsia.
O olhar — uns grandes olhos negros, muito bri­lhantes — fixava-se obstinadamente no espaço, com a expressão indefinível de quem, muito abstraio, olha sem ver... Apenas naquela estátua os lábios moviam-se com uma contração regular e monótona, balbuciando qualquer coisa que se não podia ouvir. Às perguntas não respondia; tão somente os lábios pareciam redizer infatigavelmente a mesma palavra, sempre repetida. De uma vez, porém, ela teve uma nova crise. Eu estava de serviço; fui vê-la. Os gritos, as convulsões, os altos lamentos foram cessando aos poucos e passando a uma fase de prantos. Depois, como me visse carinhoso ao seu lado, teve uma expansão inesperada e começou a dirigir-me a palavra com uma volubilidade extrema e febril. Preveniu-me logo de que era a última vez que falaria a quem quer que fosse e explicou-me então o misterioso balbucio que a ocupava.
Disse-me que, certa vez, no meio de um delírio, notando os saltos desordenados do coração e sentindo-o palpitar febrilmente, como um pássaro colhido na mão que se esforça por fugir, tivera pena do pobrezinho. Lembrou que o cativo músculo pulsava assim ininterrup­tamente desde as primeiras manifestações da existência até ao derradeiro momento da agonia, sem uma pausa, sem um descanso.
Era o forçado eterno, o grilheta, o galé da vida, sempre a laborar, sempre a bater... Tomou-se de pena pelo infeliz. Figurava-o cansado, ofegante, querendo parar enfim, enfim descansar — e tangido inexoravel­mente pela onda do sangue, sempre a subir, sempre a descer: trabalho eterno de Sísifo! E então, não dese­jando mais agitar-se em grandes movimentos, porque isso fazia sofrer o pobrezinho, fez o íntimo voto de vê-lo aquietar-se e parar. Desde essa época começou a vigiar-lhe o constante tique-taque. Era esta a palavra que seus lábios repetiam, incessantemente. Procurava dizê-la cada vez mais lentamente, para que os batimentos car­díacos se fossem conformando com essa lentidão pro­vocada de ritmo.
Procurei desconvencê-la. Disse-lhe que o coração era um dos músculos que escapam ao poder da von­tade; acumulei argumentos para prová-lo... Tudo foi em vão. Ela cessou a conversa, sorrindo com um sorriso de dúvida e obstinação e recomeçou o tique-taque. Examinei-lhe o pulso; tinha um latejar forte e normal. Não era possível que o alterasse tão facilmente. Daí por diante, metida a um canto da célula, a pobre louca continuou o seu fadário. Correram dias, sem que eu volvesse a falar-lhe. Ao cabo de um mês, certa ocasião em que eu a fitava, ela estendeu-me o pulso. Tomei-o de novo e tive um gesto de visível assombro, enquanto a pobre rapariga sorria triunfantemente. De fato, o latejar tinha diminuído de um modo sensível. Era mais fraco e mais demorado. Quis de novo despersuadi-la e de novo foi inútil todo o meu esforço. Ficou-se a repetir mecanicamente o eterno tique-taque, já muito mais brando.
Não sei, atalhou o Bráulio, pode parecer tola esta confissão, mas eu nunca saberei dizer, vendo cada dia tantas outras loucas igualmente moças e formosas, por­que só diante daquela me enchia o coração um confrangimento de alma verdadeiramente doloroso. Por fim, o tique-taque perseguia-me. Cheguei a acreditar que enlouquecesse também. Aquele ruído monótono enchia-me os ouvidos: a toda hora, de ouvir a louca repeti-lo, eu percebia incessantemente o tique-taque oscilar dentro de mim; e os meus lábios moviam-se às vezes, incons­cientes, pronunciando as duas sílabas, sempre as mes­mas... Era já uma obsessão tamanha, que me fazia evitar a vizinhança da doente. Nem de longe a fitava. Os seus grandes olhos negros, calmos e meigos como um lago deserto à hora morta do crepúsculo, pareciam sorver-me a razão, convidar-me à loucura, dizer-me que esque­cesse as preocupações mesquinhas da vida por um sonho qualquer — fosse mesmo o estéril desejo de fazer parar o coração... E assim eu procurava não passar perto dela.
Mas, de uma vez em que não me pude furtar à exigência do serviço — fazia já três meses que ela estava recolhida — a doida sorriu-me de novo, estendendo o braço descarnado, sem que me fosse possível recusar. Que assombro de pertinácia! Custou-me a achar-lhe o pulso. Era um bater flácido, filiforme, sem vigor, larga­mente espaçado, quase a perder-se...
A louca não interrompia o tique-taque já então extremamente retardado, como de um relógio a parar... "Nem eu pude falar-lhe; as palavras morreram-me na garganta. Apenas o olhar com que a fitei foi tão triste, que ela baixou os olhos... Passei adiante sem ouvir mais nada, além do implacável tique-taque que me cantava aos ouvidos...
Quando, na manhã seguinte, a enfermeira de ser­viço veio contar-me as ocorrências da noite, narrou-me que na véspera, antes de deitar-se, a moça me mandara este simples recado: "Diga-lhe adeus em meu nome... Ele vai parar." A enfermeira transmitiu-me o que ouvira, sem ligar a menor importância. Não havia compreen­dido. Corri à célula: encontrei morta a pobre doida. Tinha o rosto banhado de um sorriso meigo de vi­tória... O eterno tique-taque parara enfim nos seus lábios desbotados... Palpei-lhe o coração: o músculo grilheta, o forçado da vida, descansara afinal! Ela estava com os grandes olhos negros desmesuradamente abertos, fitando o espaço... Pobre louca!
Quando o Bráulio concluiu, nós nos achávamos de volta, quase de novo em frente do Hospício. O mar batia as pedras com força, plangitivo e triste...
Encostado à grade de uma das janelas, sacudindo-a furiosamente, um doido cortou o rumor das vagas com um uivo gutural. De vários pontos, fúnebres e tristes, outros lhes responderam...

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Digitalização, pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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