6/17/2019

A Doida de Tagilde (Conto), de Pedro Ivo




A Doida de Tagilde
Poucas serão, no Porto, as pessoas que não conheçam Vizela.
Disse mal... Poucas serão as que não tenham ido a Vizela; as que conhecem bem aquela formosa aldeia são raras.
Para a maior parte dos banhistas, Vizela é uma praça irregular, cercada de casas ainda mais irregulares, praça emendada numa outra, a que, por murada e cheia — de árvores, dão o nome de alameda os mais modestos, e de jardim os que tentam convencer-se de que é jardim aquele recinto, onde as galinhas ensinam as ninhadas a — dar os primeiros passos e a ganhar a vida, e onde o porco passeia sem vergonha e à vontade.
A tudo isto, dão indígenas e estrangeiros o nome — de Lameira e devem os porcos, que ali pascem, dar o de lameiro.
Dessa classe de banhistas, há um ou outro  mais ousado, que estende a sua sede de ver mundo até à igreja de São Miguel, ou mesmo até à ponte.
Pois dificilmente se encontrará tanta beleza em tão limitado espaço!
Ao leitor que tiver arremessado para longe as muletas, com que lá foi este ano, e puder para o seguinte dar o seu passeio a pé, sem se incomodar, poder-lhe-ia eu apontar tantos passeios, quantos forem os dias que tiver de demorar-se a banhos!
Há, porém, pontos de vista, que o não dispenso de gozar, se é que falo a um homem inteligente, a quem canseiras e anos não roubaram de todo o entusiasmo, que desperta em nós a contemplação do belo.
Por noites bem claras e tépidas de Julho, se a sua boa sorte o levar à antiga ponte de pedra, detenha-se o leitor em meio e espraie a vista para ambos os lados.
Se se encostar ao parapeito que dá para a povoação, enxergará, à luz do tapete de pirilampos, que a lua estende sobre as águas verde-negras do rio, enxergará, repito, a fita agitada do Vizela a serpear por entre pequenas ilhas, cobertas de ervas e arbustos, e ao fundo, despenhando cristais e pratas polidas, o açude — do Pisão, flanqueado de um lado por decrépito moinho, assombrado do outro por anosas carvalheiras.
Se, depois de cinco minutos passados na contemplação daquele quadro, a que as sombras caprichosas e fantásticas da noite dão um aspecto de selvagem e inexcedível poesia, o leitor não ouvir a voz da sua alma bradar-lhe: "É belo!..." então... vá para casa, que são horas de tomar banho.
Volvendo a vista para o lado oposto, a cena é totalmente diversa.
Sumindo-se silenciosamente e vencendo, sem esforço, as sinuosidades das margens, o Vizela escapa-se por entre choupos e salgueiros, cujas sombras vêm projetar-se no rio e encontrar-se no meio, refletindo, num ou noutro ponto, a Lua, que parece respeitar aquele sossego.
Mais formoso do que o Vizela nesse espaço que se avista — da ponte, só o poético Mondego!
Se, estimulado por este espetáculo, quiser, no dia seguinte, subir ou descer o rio, juro-lhe que verá paga a fadiga.
Quer suba até à ponte velha, quer desça até à fábrica de papel, verá suceder o ameno ao selvagem, o horrível ao belo, mas sempre poético, sempre, deixe-me assim dizer, original.
Se subir pela margem direita, ao fim de um campo ou antes areal, encontrará uma descida, semeada de pedras brutas e informes até à beira do rio e poderá, caminhando por sobre as poldras, ir sentar-se junto à represa do moinho da Cascalheira.
O misantropo, o poeta que precise cerrar os ouvidos à voz do homem e procure a de Deus, que nos fala no sussurro do vento, no murmurar  da linfa, no ciciar das folhas, ou no bramir da torrente, todos os que, ou por feridos no coração ou por aspirarem mais alto, se sentem pouco à larga entre os homens, não poderão decerto ver a Cascalheira, sem invejarem a sorte do pobre moleiro, a quem as pancadas das rodas tornam surdo para tudo, se é que algum dia ouviu.
Basta!... Estou satisfeito; era à Cascalheira que eu queria que, ou por gosto ou por condescendência, o leitor me acompanhasse.
Seguindo, para lá chegar, o caminho que descrevi há pouco, haverá bons vinte anos vi eu pela primeira vez aquele pitoresco local. Era ainda mais belo, se é possível, porque, de então para cá, a mão do homem, que estraga tudo quanto a natureza cria, operou ali umas transformações, que só serão toleráveis quando a água do Vizela e o trabalho do tempo tiverem impresso no que é moderno o cunho de velhice que distingue o resto.
Nesse tempo, pois, era aquele formoso assunto de aprazível quadro ainda mais pitoresco do que hoje, e, no dia em que pela primeira vez o vi, animavam-no dois seres, que me ficaram para sempre gravados na memória.
Ia eu a pôr o pé na primeira poldra, para atravessar o rio, quando, da outra margem, me chegaram estas palavras, cantadas numa toada melancólica, que ouvia pela vez primeira e nunca mais tornei a ouvir:
Vagamos juntas no mundo,
Que nada nos prende, nada!
Eu guiada pela ovelha,
A ovelha por Deus guiada!...
Observando atentamente a margem fronteira, descobri, cerca de vinte passos abaixo do moinho, uma mulher sentada à beira do rio, e ao lado dela uma ovelha branca.
Era singular o aspecto daquela mulher, que se me apresentava acompanhada pela ovelha, como me prevenira a cantiga.
Teria trinta e cinco anos; a tez, que, a avaliar pelos olhos azuis, devia ter sido alva, estava queimada pelo sol e o tempo levara-lhe o viço, dando-lhe em troca uma ou outra ruga. O cabelo louro começava a branquear nas fontes.
O vestuário era pobre, mas atestava escrupulosa limpeza.
Ocupava-se naquele momento em introduzir por todas as costuras de um grosseiro chapéu de palha uma aluvião de flores silvestres, e parecia causar-lhe voluptuoso prazer a frescura da água, em que mergulhara os pés, provavelmente doridos de longa jornada.
Certo de que ela me não vira, retirei-me cautelosamente, e fui sentar-me um pouco mais longe.
Despertara-me a curiosidade aquela mulher.
Meia hora, seguramente, permaneceu ela ali, entregue de alma e coração à sua tarefa, até que,  satisfeita provavelmente com o seu trabalho, mirou o chapéu por todos os lados e pondo-o, finalmente  na cabeça retirou os pés do rio e, ajoelhando sobre a margem, contemplou atentamente  a própria imagem, refletida na água.
Em seguida, erguendo-se, voltou-se para a ovelha, dizendo:
— Anda, Menina... vamos esperar o Francisco. 
E a Menina, levantando-se, correu, naquele passo trêmulo e pretensioso das ovelhas, a colocar-se diante da dona, e lá seguiram as duas, como a mulher de novo cantava — esta guiada pela ovelha, a ovelha por Deus guiada!
Mas quem era aquela doida — pois já se vê  que o era — que assim ia, acompanhada por uma ovelha, como por um cão, em procura desse a quem chamara Francisco?!...

CAPÍTULO 2
Não imaginem os leitores que estou improvisando!... Não!... Quem tiver ido a Vizela, haverá vinte anos, deve ter visto aquela mulher mais do que uma vez.
Curioso de descobrir quem era a pobre doida, logo às primeiras perguntas tive quem me dissesse: "Ah! já sei!... É a doida de Tagilde, ou da ovelha, como lhe chamamos por aqui."
— E sabe a história da pobre mulher?... — perguntei eu.
— Se sei!... Todo o mundo a sabe! — respondeu-me a minha senhoria, tia Miquelina, santa velha que morreu sem tomar um banho termal, por estar convencida de que aquela água, que assim jorrava, cheirando a enxofre, do seio da terra, era, como ela dizia — aquecida nas profundas do Inferno!
— Então, se sabe, conte-ma!...
— À noite... agora não; à noite!... — respondeu a boa da velha.
E o caso é que tive de esperar até à noite. Escusado é dizer que recolhi nessa noite mais cedo.
Se me não saíam da ideia a doida e a ovelha! Não nascera, infelizmente, a tia Miquelina, para contar casos.
Era uma ladainha monótona a narrativa, feita por ela, de forma que, sacrificando embora a cor local, tenho eu de contar a história a meu modo.
Dez anos antes da época a que me referi, isto é, haverá trinta anos, não havia em dez freguesias ao redor quem não conhecesse a formosa "loura de Tagilde" destinada mais tarde a ser a — doida de Tagilde.
Era uma destas criaturas perfeitas, encantadoras, sem senão, que Deus se compraz em soltar de sua mão, para justificar a mais alta lisonja feita pela tradição ao gênero humano: "Fez Deus o homem à sua Imagem e semelhança! "
Seria impossível contar os jovens que se deixaram prender nos áureos fios daquelas bastas tranças e aspiraram a ver raiar o sol da esperança no céu azul daqueles lânguidos e apaixonados olhos!
E assim correram anos, sem que as tranças da jovem se deixassem agarrar pelos que as perseguiam, sem que do céu daqueles olhos baixasse um raio de sol a iluminar de preferência o coração de qualquer deles.
Lá veio um dia por fim — e tinha Maria os seus vinte e três anos — e que numa romaria se encontrou com um gentil paz de Santa Eulália de Barrosas, e sentiu, pela primeira vez, palpitar o coração com desusada força.
Era Francisco, o mais guapo moço, jovial cantador ao desafio, destemido jogador de pau, e habilidoso carpinteiro, de todas aquelas cercanias.
Só tinha um defeito... Era um mãos largas — vintém ganho, vintém gasto!
Se Maria deu pela primeira vez atenção a um rapaz, desconhecida emoção deu também a perceber a Francisco quão efêmeros tinham sido todos os seus amores até então.
Finda a romaria, retirou-se a jovem no meio de um rancho de companheiras, debaixo da proteção dos marmeleiros dos parentes, e seguiu-a a distância Francisco com um bando de mancebos.
As raparigas riam e cochichavam, lançando de vez em quando olhos maliciosos para os rapazes, ao passo que estes pesavam os prós do folguedo com as raparigas, e os contras, que podiam resultar da má vontade dos marmeleiros paternos.
De repente, uma cachopa morenita, de olhos negros e nariz arrebitado, a quem as goelas ardiam e a língua se perdia com cócegas, distribuiu dois murros pelas amigas que levava aos lados e que pareciam querer desviá-la de levar por diante uma resolução qualquer, arqueou os braços, fincou as mãos na cinta e cantou:
Quem nos segue, se é cão — ladre;
Se homem é... então que fale!
Se o cão que não ladra é falso
Homem mudo é tal e "quale!"
Palmas e vivas das raparigas e dos guardiões não havia no rancho quem, como o leitor, se escandalizasse por uma sílaba de mais — palmas e vivas, repito, acolheram o final da cantiga de Joana, que assim se chamava a azougada cantadeira.
— Ó Francisco!... Ó Francisco!... — instavam os rapazes. — Responde àquele diabo!... Olha que parece mal!...
— Esperai, homens!...
Seguiu-se profundo silêncio.
As jovens esperavam, curiosas, a réplica dos rapazes, ao passo que estes se impacientavam com a demora que Francisco punha na resposta.
Depois de visível esforço, cantou Francisco em voz trêmula:
Ao ver-vos perdi a fala,
E perdi o coração;
Perdi-o por uma loura,
Que me trata como um cão!
Estrondosos gritos de alegria saíram do grupo dos rapazes, ao passo que as raparigas pisavam com os cotovelos os braços de Maria, dizendo-lhe maliciosamente: "Apanha!... Aquilo é contigo!...Olha que foi o Francisco, de Barrosas!... Responde-lhe tu agora, anda!..."
De cantiga em cantiga se foram os dois grupos familiarizando, a ponto de, na primeira venda que encontraram, enquanto Francisco se aproximava sorrateiramente das raparigas, que no meio do caminho riam alegremente, torcendo os lenços de renda, que são os leques da aldeia, fraternizaram os dois grupos de homens entre enormes copos de vinho, trocadas as sacramentais palavras:
— Vá a virar!...
— Está em boa mão...
— Para melhor vai.
— Então lá vai à saúde de vossemecê.
E leva-se o copo à boca, põe-se-se em meio, limpa-se o bordo do copo com a manga da camisa, antes de o passar para a mão do outro, e aí está como se trava na aldeia um conhecimento, e muitas vezes amizade eterna!
Esgotados os copos, e findo o duelo de bizarrias para ver quem havia de pagar a despesa, seguiram os grupos, rindo e folgando confundidos.
Mais do que um perdeu a liberdade do coração naquele passeio, e, entre esses, Francisco, que retirou doido de amor daquela primeira escaramuça, precursora de futuras e valentes batalhas.
Estava seriamente ferido, e, que o não estivesse, não era ele homem que deixasse em meio a disputada conquista do coração de Maria.
Domingos e dias santos, quantos vieram ao mundo, todos os passou ele em Tagilde desde então, e, mais — que uma vez por semana, ao despegar do trabalho, o levou lá o amor.
Correram dias e meses, e cada dia que passava não só enterrava mais fundo no coração do carpinteiro as raízes daquele afeto, mas também cada vez lho depurava mais.
Naquele coração volúvel, que até àquela data só conhecera do amor a parte vil, entraram de florescer respeitos e germinar escrúpulos, que lhe transformavam o peito em altar, onde sorria pura e imaculada a casta imagem da loura virgem de Tagilde.
Quanto ao que esta sentia, diz-se tudo dizendo-se que fora aquele o único homem que vira com os olhos da alma.
Bastante tempo correram aqueles amores, sem serem contrariados; lá veio, porém, um dia, em que o pai da jovem abriu os olhos e compreendeu a alegria da filha aos domingos, a contrastar com a tristeza que lhe anuviava o rosto pelo resto da semana adiante.
José Francisco era o que se chama um bom chefe de família, e um homem honrado.
Afligiu-o a descoberta dos amores da filha, porque o carpinteiro tinha adquirido fama de estroina e de gastador, defeitos apenas compensados pela virtude do trabalho e pela justiça feita à sua probidade.
Depois de muito ruminar, um domingo, em que Francisco lhe passava pela vigésima vez à porta, desesperado por não ter podido falar com Maria, a quem a presença do pai não permitia sair, bradou-lhe o velho:
— Olé!... ó Sê Francisco!...
O leitor imaginará a pressa com que este acudiu ao reclame.
— Vai para diante? — perguntou o lavrador, trocadas as boas-tardes.
— Vou, sim senhor... — respondeu o mancebo.
— Então, se dá licença... acompanho-o até além...
— Com muito gosto... — replicou Francisco.
Em coisas indiferentes foram os dois falando, até chegarem fora da povoação.
À beira — de um campo, encostou-se o lavrador a um portelo, fez com o pau uma mossa no chão, e, metendo a extremidade superior debaixo do sovaco, perguntou com aspecto grave:
— Fale-me sério e verdade, como se falasse ao confessor!... Ora diga-me... vossemecê anda atrás da minha cachopa?... É escusado fazer-se vermelho, homem!... Nem sequer lhe progunto as suas tenções... Só lhe progunto uma coisa... Vossemecê sabe quantos filhos eu tenho?...
Francisco, de enleado, nem encontrou resposta.
— Tenho cinco; três — do primeiro casamento e dois do segundo. O que há pode-se dizer que é dos três mais velhos; os segundos nada e o que têm é a mesma coisa... Ora a cachopa é do segundo casamento... Já vê que nem tudo que luz é ouro!...
Francisco fez um gesto de abnegação e ia a falar; mas o velho interrompeu-o, dizendo:
— Bem sei, homem!... Bem sei o que me vai dizer!... Não é pelo dote?... Acredito... Mas eu é que sou pai... e progunto... Que posses tem vossemecê para manter mulher e filhos, se os vier a ter?.. Não olhe para os braços, homem!... São bons... bem sei... mas... braços quebra-os uma doença... e depois?... Numa palavra, Sê Francisco... Nem vossemecê nem ela têm; é preciso que cada qual arranje quem lho traga... Não servem um para o outro; e vossemecê, se é homem honrado, como me dizem que é, e eu acredito, vire as vistas para outra banda... Aquela não lhe serve.
Francisco ficou como fulminado. Mal pôde falar, o ardor da paixão tão eloquentemente o inspirou, que o lavrador chorava como uma criança, mas continuou a abanar a cabeça, dizendo com magoada voz:
— Não pode ser, homem!... Não pode ser!... Era uma desgraça para os dois!
E o coração do velho, embora rudemente abalado, permaneceu sujeito aos austeros ditames daquela razão, robustecida pela sua previdência de pai.
Dizer o que Francisco sofreu desde Tagilde até Barrosas, contar os projetos que formou na noite de insônia que se seguiu àquela conversa, seria inútil tentá-lo!
Quando o dia, coando pelas fendas da janela o convidou a erguer-se do leito, onde se deitara vestido, só um dos mil projetos, que formara, se conservara de pé.
Mas de que cruel execução ele era!
O Brasil prometia-lhe um futuro; mas o presente... o presente iluminado pelos meigos olhos de Maria... quem lho havia de pagar?!...
Como havia ele viver anos sem a ver, se semana que a não visse lhe parecia uma eternidade?!...
Bem procurou o pobre rapaz outro meio, menos custoso... Não o encontrou!
Dias depois, quem passasse ao cair da tarde na extrema da aldeia de Tagilde, veria o carpinteiro conversando com o pai de Maria, e, se parasse, ouviria estas palavras, que eram naturalmente o resumo de quando haviam dito antes:
E vossemecê promete-me não obrigar a filha a casar com outro, se ela quiser esperar por mim?... — perguntava Francisco com pungente ansiedade.
— Prometo respondeu o velho em voz solene. — Vá, trabalhe, faça-se homem e, se ela quiser esperar por si.. não serei eu quem lhe negue o consentimento...
— Muito obrigado!... muito obrigado!... Deus Lhe pague tanta amizade, como a que vossemecê me mostra... Só tenho mais um pedido a fazer-lhe... — continuou Francisco, chorando. — Dá licença que me despeça dela?... Olhe que pode ser para sempre!...
Depois de breve hesitação, o velho respondeu em tom comovido:
— Vá lá!... Diga-lhe adeus!...
E o velho voltou o rosto para o lado, para encobrir as lágrimas.
— Venha daí!... — acrescentou o honrado lavrador.
Seguiu-o Francisco, cabisbaixo e com o coração golpeado.
— Que sina a minha! — pensava o pobre rapaz. — É a primeira vez que entro em casa dela, e talvez que seja a última!
Entraram os dois.
Maria, que já estava prevenida e havia muitos dias não fazia senão chorar, ao ver o rosto demudado do carpinteiro e a tristeza do pai, fez-se pálida como um cadáver e teve que se agarrar a uma cadeira para não cair.
— Maria... — disse o velho. — Está aqui o Francisco, que te vem dizer adeus. Tomo a Deus por testemunha, filha, que sinto hoje não ter bastante de meu, para te deixar seguir a tua inclinação. Mas o tempo depressa passa — continuou ele, esforçando-se por parecer alegre. — Oh! se passa! Verás, cachopa!... A vontade que ele leva de ser homem, temo-lo cá para o ano rico como um porco!... Ora andem lá... conversem, mas nada de afligir!... leve o Diabo paixões!
E o velho, já para fugir a uma contagiosa cena de lágrimas, já por um movimento de instintiva delicadeza, — deixou-os sós.
Há cenas que se não descrevem. O leitor que tiver passado por tão solene transe, como é o de uma despedida, quando a volta é incerta, lembra-se, sem dúvida, — de quanto sofreu!
O coração estorce-se; a mente compraz-se em enegrecer o futuro, tornando eterna uma separação, que a voz sempre viva da esperança nos aponta como temporária; os olhos estudam amorosamente as feições do ser que vamos deixar, como querendo gravá-las ainda mais fundo no íntimo do coração; as mãos estreitam-se sem se poderem desunir; os lábios emudecem, receosos da fatal palavra — Adeus! — e os pés como que se pregam ao solo amado, onde nos fica tudo quanto nos tornava risonha e fácil a existência!
— Hás de escrever... Francisco!... sempre!... e muito!... — dizia a jovem, comprimindo convulsivamente as mãos do mancebo.
— Sempre!... Maria... sempre! — respondia este soluçando.
— Para que te vi eu, Maria!... — continuou ele, estreitando nos braços a gentil menina.
Estavam os dois assim, nos braços um do outro, e confundindo as lágrimas, quando soou, por detrás deles, comovi-da, a voz — do velho:
— Basta, filhos!... basta!... Então! é preciso ter ânimo!... Ora vá.. ora vá.. Então... Maria!... Vá... Francisco... Vá! Um homem é um homem!
o velho desuniu-os brandamente.
Francisco, doido de saudades, levou as mãos aos lábios e lançando à jovem um derradeiro beijo, bradou:
— Adeus! — e saiu desorientadamente.
— Francisco! — exclamou Maria num grito, que traduzia todas as dores que podem lacerar um coração de mulher.
O mancebo, porém, já a não ouviu, e a jovem, lançando os braços em volta do pescoço do pai, exclamou dolorosamente:
— Oh! meu pai!... vi-o pela última vez!
O velho empalideceu e não encontrou resposta, porque, como ele mais tarde confessava, pareceu-lhe ouvir dobrar afinados naquela frase angustiada da filha!

CAPÍTULO 3
Partiu Francisco para o Brasil. Nesse tempo, o país dos sonhos ambiciosos desses que vão colher areias de ouro em rios de lágrimas, era bem mais cruel exílio do que hoje!
Nesse tempo, quando dois corações se separavam, só ao cabo de muitos meses de amarguras e preces vinha uma carta, trazida por navio de vela, minorar ou aumentar as dores da ausência.
E, nos longos serões da aldeia, quando os corações guiavam a conversa para o chorado ausente, o saudoso chefe de família erguia-se e ia buscar ao escaninho da arca, onde estava guardada, a carta do filho, já rota nas dobras e ensebada das mãos, abria-a e, nesse instante solene, a mãe tirava a roca da cinta, o fuso calava-se na mão da jornaleira, os pequenos apuravam olhos e — ouvidos, e lia-se pela centésima vez, em voz alta, a preciosa carta, como se houvesse ainda alguém em casa que a não soubesse de cor!
E assim se enganava a fome de notícias!... e assim procurava a gente convencer-se de que, quem estava bom havia seis meses, decerto estava ainda de perfeita saúde!
Seis meses depois da partida de Francisco, chegavam a Tagilde as primeiras notícias do saudoso namorado.
O pobre rapaz encontrara facilmente que fazer, e, como as suas aspirações não iam além do preciso para comprar uma casinha, um campo, e pôr em reserva uns centos de mil-réis — o fruto que ia colhendo fazia-lhe antever a realização dos seus desejos dentro do curto espaço de dois anos.
O que o resto, ou antes toda a carta, seria, pode o leitor imaginá-lo!
Dizia o pai de Maria que esta, mal a ouvira ler, logo entrara a ganhar as boas cores que a saudade lhe roubara.
— Não saber eu ler!... — dizia a pobre moça, cobrindo o papel de lágrimas e beijos.
E a abençoada carta andava numa dança para dentro e fora do seio!
— Ó pai!... só esta vez!...
E o velho tirava do bolso os óculos de aros de prata, e lia mais uma vez.
E a jovem, tomando à risca a única aritmética, que o coração lhe aceitava, para contar o tempo, pensava quase alegre: "Faltam só tantos meses! "
Passados dois, chegou nova carta, mais própria ainda para alimentar esperanças.
A terceira... A terceira não era de Francisco!
O velho lavrador ao recebê-la, e ao ver a obreia preta, tornou-se branco como a parede a que se encostara, e deixou cair a fúnebre missiva, murmurando em voz estrangulada: "Minha pobre Maria! "
— Ó pai!... há carta?... — exclamou Maria, a quem a recoveira dissera que havia trazido uma.
O velho, vendo entrar a filha, quis apanhar do chão o fatal papel, mas a jovem, mais pronta do que ele, abaixou-se e ergueu-o.
— Deixa, filha!... Não é dele! — exclamou o velho.
Mas a jovem, se não sabia ler, sabia distinguir as cores e, vendo a obreia preta e as lágrimas do pai, tornou-se lívida, e com os olhos enxutos mas desvairados, os lábios brancos e trêmulos, disse-lhe em voz que mal se ouvia:
— Leia!... leia!...
E com o corpo inclinado para diante e as mãos estendidas para o velho, que tremia mais do que ela, esperava que ele começasse.
O velho, lendo para si — a notícia da morte de Francisco, dada por um patrício dele, procurava traças para redigir o contrário do que lia, mas a filha, como se lhe fosse lendo no espírito o conteúdo, ia mostrando no rosto, e sobretudo no olhar, uma expressão horrível.
O pai, julgando-se certo do estratagema, ergueu os olhos e disse: "Ora ouve"; reparando, porém, na jovem, apertou-a nos braços, perguntando angustiado:
— Filha!... Maria!... tu que tens, minha filha?!...
Maria, desprendendo-se dos braços do pai, sacudiu as formosas tranças, e, voltando-se para ele com indescritível sorriso, tirou-lhe a carta da mão, dizendo:
— Dê cá, que eu leio...
E, sentando-se no chão, sem mais se lembrar do pai, a pobre moça entrou de decifrar no papel uns dizeres, que eram o eco das duas primeiras cartas, terminando pela notícia da chegada de Francisco no dia seguinte.
— Chega amanhã!... — exclamou ela de repente. — Vou esperá-lo!
E, erguendo-se precipitadamente, saiu, correndo, na direção da estrada.
Maria, a "Loura de Tagilde", passara a ser a "Doida de Tagilde"!
Seguiu-a o pai e pôde a muito custo trazê-la para casa; mas a cada instante erguia a jovem a fronte, como se ouvisse passos, e fugia, repetindo: "Vou esperá-lo!"
Prenderam-na em casa, e ela tornou-se furiosa.
Alma caritativa e inteligente convenceu o velho a que a deixasse andar sozinha.
Foi então que começaram as longas correrias, na companhia da ovelha, da "Menina", como ela lhe chamava.
O meigo animal, acostumado a comer na mão dela, seguira-a na primeira ocasião em que achara a porta aberta.
E assim começaram a vagar as duas no mundo, sem nada que as prendesse, uma guiada pela — ovelha, a outra por Deus guiada, como rezava a cantiga que um estudante compusera para a doida, e que esta retivera na memória.
Terminou aqui a narrativa da tia Miquelina, e começaram as minhas perguntas.
— E tratam-na bem?...
— Se a tratam bem!... Pois quem havia de a tratar mal?!... Olhe... Ela, à noite, quando não dorme debaixo das árvores, entra em casa de qualquer lavrador, vai direita à cozinha e pede pão. O primeiro bocado é para a "Menina". Depois de comer, pega na primeira roca que acha à mão e fia... fia... até lhe dizerem que se vá deitar. Por lá dorme no palheiro, ou onde a mandam dormir, e pela manhã, por muito que a gente da casa madrugue, já ela vai longe!
— Vai esperar o Francisco! — pensei eu, avaliando os tesouros de amor que teriam cabido àquele homem, se Deus o não houvesse chamado a si!
Antes de deixar Vizela, em vão procurei a doida; não a encontrei!
Sabe — Deus para onde ela se deixara guiar pela ovelha, que era quase sempre quem marcava o itinerário!...

CONCLUSÃO
No ano seguinte voltei a Vizela.
— Que é feito da doida de Tagilde, tia Miquelina?... — perguntei eu.
— Coitadinha!... Morreu!... sempre tivemos todos uma pena dela!... Coitadinha!... Uma morte assim!...
Vou contar-lhes o triste fim de Maria. Fora rigoroso o Inverno.
A água dos córregos estava gelada, e os montes alvos de neve.
Por uma noite de Dezembro, uns pastores, que dormiam no monte, numa cabana de madeira, ouviram a espaços os balidos de uma ovelha, cujo som ora se afastava, ora se aproximava do sítio onde estavam.
Quem se levantaria por causa de uma ovelha tresmalhada, quando a neve caía silenciosa do céu e o vento sibilava por entre as tábuas da cabana?
No dia seguinte, ao abrirem a porta, viram ao longe a ovelha, que se dirigia para eles, voltando a miúdo a cabeça para trás.
Chamaram-na — parou; caminharam para ela — começou a andar para donde viera, voltando-se como que convidando-os a segui-la.
Chegando a certa altura estacou, e começou a arredar a neve com o focinho.
Aproximaram-se...
De sob espessa camada de neve saía um braço; puxaram-no.
Era a doida de Tagilde!
Dera-lhe Deus ordem de recolher ao Céu, e surpreendera-a a morte sobre o monte, onde ela colhia as flores com que se adornava para agradar a Francisco, cobrindo-lhe o corpo com o lençol de neve, tecido nos céus, mortalha cândida como a alma dela!
— E a ovelha?... — perguntei eu, disfarçando mal as lágrimas.
— A ovelha... pobre bichinho! A ovelha andou três dias com três noites a balir em volta da igreja, sem se deixar agarrar por ninguém... Ao quarto dia encontraram-na morta, no adro da igreja! Há certos animais, que parece mesmo que têm alma! — concluiu a tia Miquelina.
— Quem sabe?!... — pensei eu.
A dedicada criatura fizera bem em morrer; a dona, que ela guiava, tinha chegado ao seu destino!... Tinha afinal encontrado o seu Francisco!

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