6/02/2019

A guarda infiel (Fábula), de Ana de Castro Osório


 A guarda infiel

Quando Nosso Senhor Jesus Cristo e São Pedro andavam por este mundo, não tinham terras de lavoura ou pastagem nem cofres com dinheiro. Mas do que ganhavam, com o seu trabalho e saber, ou lhes davam, dividiam ainda com os mais pobres.

Iam de longada, certo dia, através da montanha, e encontraram no caminho quatro bacorinhos muito fortes e sadios, mas grunhindo com fome e ainda atrapalhados no andar. Então o Senhor, que tudo sabia, disse para São Pedro:

— Toma esses leitões, porque não têm dono. Podes ficar com eles, Pedro, sem prejuízo para ninguém. Dá-os de meias a criar. E com o que nos couber da nossa metade no produto da venda, se fará, depois, algum bem.

São Pedro pegou nos bacorinhos e, muito contente só com a ideia das esmolas que viriam a fazer, seguiu o Mestre. Foram andando, subiram e desceram ladeiras, e chegaram por fim a terras povoadas.

Num dos casais que atravessaram, estava uma pobre mulher junto do chiqueiro a deitar comida a um porquinho magro e enfezado, que era toda a sua fartura do ano.

Foi esta mulher que São Pedro escolheu para guardar os leitões achados, porque, assim, já com eles ajudavam a pobreza.

— Toma conta destes animais (disse o bom São Pedro para a camponesa). Ficam para criar a meias. E assim queremos ajudar-te na tua necessidade. Daqui por um ano cá estaremos, o meu companheiro e eu, para fazermos as partilhas.

A mulher ficou muito contente e agradeceu a esmola que lhe caía do céu, e prometeu cuidar o melhor que pudesse dos quatro bacorinhos que ficavam à sua guarda.

Foi passando o tempo. Os quatro animais cresciam a olhos vistos e eram a admiração de toda a gente da vizinhança e das terras em redor.

A camponesa estava muito satisfeita com a sorte que lhe entrara em casa. Mas, por outro lado, e porque não era verdadeiramente boa e justa, começou a sentir-se desgostosa por ter que partilhar a metade certa do grande lucro que esperava. E a cobiça entrou a combater a fidelidade no seu desagradecido coração.

Passou depressa um ano. Vencida pela cobiça, pensou a mulher aproveitar-se da boa fé de quem nela confiara, e guardar para si, com engano e mentira, a maior parte dos lucros.

Antes de nascer o sol, no dia em que deviam fazer-se as partilhas, foi esconder e fechar dois dos animais, confiados à sua guarda, num curral que estava na extrema do campo e já nas abas do monte. E, preparando o engano, aguardou muito sossegada.

Quando viu chegar o Senhor e o seu companheiro, foi a mulher enganadora, fazendo-se inocente, buscar ao chiqueiro os dois cevados que lá deixara. E preparava-se para contar a São Pedro uma história, em que muito matutara, sobre a falta de sorte que tinham tido. Mas o Senhor nem a deixou começar, e perguntou-lhe com voz serena:

— Onde estão os outros dois?

A mulher ficou abalada ao ouvir aquela voz e a pergunta de tanta certeza, e ainda pensou em voltar atrás no que tinha feito e pedir perdão para o seu erro. Mas pôde mais a maldade que esse clarão de arrependimento, e julgou desculpar-se respondendo:

— Os outros dois morreram. Fiquei só com estes, que, por sorte, ainda nos darão boa paga, pois estão muito crescidos e gordos.

O Senhor, que sabia sempre a verdade, e conhecia as fraquezas e a malícia dos corações infiéis, não quis dar àquela pecadora todo o castigo merecido. Quis antes dar-lhe motivo de arrependimento, e aceitou partilhar apenas os dois animais que a mulher apresentou, para assim mesmo a castigar.

E para exemplo de guardas infiéis, falou o Senhor, ao mesmo tempo castigando e perdoando:

— Pois estes dois, que aqui estão, Só teus e nossos serão.

E os que tens além, fechados, Por essas serras irão, E em feras serão tornados.

Ergueu o Senhor a Sua mão direita.

Ouviu-se um grande estrondo no curral onde estavam escondidos e presos os dois animais, e, pela porta escancarada, saíram ambos, feitos feras, a correr para o monte.

E, segundo contam os antigos, foi assim que apareceram os primeiros porcos bravos ou javalis.


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Fonte:
Ana de Castro Osório: Contos, fábulas, facécias e exemplos da tradição popular portuguesa (Editado a partir da edição da Bibliotrônica Portuguesa)

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