6/03/2019

A raposa, o gaio e o doutor mocho (Fábula), de Ana de Castro Osório



A raposa, o gaio e o doutor mocho

O Gaio, que é um bonito pássaro de vistosa plumagem, tinha muito medo dos ladrões e dos assassinos. Por isto foi fazer o seu ninho escondido no mais alto de uma carvalheira.

A Raposa, que anda sempre a rondar para fazer mal aos pobres inocentes, porque vive de matar e comer a carne das suas presas, passou por baixo da árvore e ouviu o chilrear dos pequeninos gaios, muito alegres com a chegada dos pais que lhes traziam o sustento. Volta-se para cima e diz:

— Dá-me já um dos teus filhos, ó Gaio, senão deito esta árvore abaixo e como-os todos.

O pobre Gaio, julgando toda a ninhada em perigo, assustou-se, e sacrificou um dos filhos para salvar os outros.

A Zorra comeu-o de uma só dentada, lambeu os beiços, e foi-se embora, não se importando nada com os lamentos das pobres aves, que choravam lá em cima na carvalheira.

No dia seguinte voltou ela, e disse a mesma coisa.

Mas o Gaio desesperado, respondeu-lhe:

— Pois deita a árvore abaixo, que não me importo. Antes quero que morramos todos juntos do que entregar-te mais um filho.

A astuciosa que fez? Foi a toda a pressa a uma ribeira que corria próximo, molhou a cauda na água e voltou para a carvalheira, a correr, e com a cauda muito empavesada. Como lhe batia o sol, brilhava como a folha de uma navalha afiada, e o Gaio, que é timorato, assustou-se e gritou:

— Não cortes a árvore, que eu te dou mais um dos meus filhos.

Foi o que a Raposa quis ouvir. Apanhou na boca o filhote do Gaio, e engoliu-o, indo-se embora toda regalada.

Nessa tarde, o Gaio tirou-se dos seus cuidados e foi consultar o Doutor Mocho, conhecido entre todos os outros animais pela sua esperteza e bom conselho. Contou-lhe todos os seus desgostos, desde que a Zorra lhe descobrira o pouso.

— Não te assustes (afirmou-lhe o Mocho, com ponderação), que eu nunca ouvi dizer, nem li nos livros sábios, que, seco ou molhado, o rabo de uma Raposa possa cortar uma árvore.

O Gaio foi para o seu ninho mais animado, e quando a Raposa voltou, a pedir-lhe outro filho sob pena de cortar o tronco da carvalheira e a deitar abaixo, declarou:

— Não tenho medo, porque nunca se viu nem se ouviu que nenhum rabo de Zorra tenha cortado o tronco de uma árvore.

A Raposa ficou furiosa e resmungou:

— Já sei, já sei. Isso foram conselhos do Doutor Mocho. Ele há de vir a cair-me nas unhas, e então mas pagará.

Dias depois foi o Doutor Mocho chamado a advogar uma causa importante, mas, como era longe, foi montado num burro. Chovera muito e os caminhos estavam de maneira que o pobre jumento caiu. E assim o Mocho e a sua montada ficaram atascados na lama.

A Zorra, que assistira à cena escondida atrás de uma sebe, saltou de lá e filou o pobre Sábio.

— Bravo, minha querida Raposa (disse-lhe o triste Mocho, fazendo das tripas coração, quando já lhe estava entre os dentes!) Desta vez mostraste que és, como toda a gente diz, o mais esperto dos bichos. A tua vitória é tão grande, por teres conseguido apanhar um Sábio como eu, que deves gritar aos quatro ventos: — Mocho comi! Mocho comi!

A Zorra encheu-se de vaidade, e abriu a boca para gritar:

— Mocho comi!

O sábio Doutor, vendo-se livre dos seus dentes, voou com quanta força tinha, respondendo lá do alto:

— A outro sim, que nanja a mim!

Desta maneira se perdem, pela vaidade, os que mais espertos se julgam.


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Fonte:
Ana De Castro Osório: “Contos, fábulas, facécias e exemplos da tradição popular portuguesa” (editado a partir da edição da Bibliôtronica Portuguesa)

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