6/30/2019

Candidinha Cerdeira (Conto), de Ladislau Patrício


Candidinha Cerdeira
(Novela romântica)
"Pasmei, como a gente pasma até certa idade, das maravilhas que se fazem no coração das raparigas."
Camilo
Em casa da D. Leonor, viúva do juiz Cerdeira, — que era irmão do afamado cônego Amorim Cerdeira, vigário geral na diocese de Angra — falou-se muito toda essas noite na vinda do novo professor do liceu.
Chamava-se Hipólito e trouxera a irmã, Alzira, rapariga loira que usava uns chapéus enormes e punha beladona detrás das orelhas para fazer os olhos bonitos...
Era uma excêntrica. A história da vida e obras de certa princesinha otomana, filha dum velho imperador de Constantinopla, extravagante até à loucura em matéria de garridice, lida num volume que o irmão lhe emprestara, pô-la em termos de aspirar a utopias: desejaria banhar-se num lago d'águas perfumadas, ungir o corpo de óleos aromáticos, ter um jardim suspenso e uma multidão de escravas que fossem todas as manhãs colher o orvalho das flores... para ela refrescar o rosto.
Custara-lhe imenso a deixar Lisboa e vir assim encafuar-se numa aldeia, — porque era positivamente uma aldeia aquele feio e triste burgo de aspecto desolado e monótono, onde não conheciam ninguém.
Enfim, para quem trazia os nervos combalidos dos sobressaltos e incertezas das grandes horas da Revolução, aquilo até certo ponto convinha. Tinha amenidades de paraíso a paz podre, o sossego vegetativo e pacóvio daquela terra pequena, com sua vida imutável, seus hábitos conservadores e sedentários, um modo bisbilhoteiro de vir às portas e às janelas espreitar, e certo centro palreiro de maledicência e política, que logo lhes disseram ser ali a loja do amigo Palma.
Quem pôs a cidade ao par de toda a biografia do professor e da irmã foi o Malafaia, o grande bacharel Malafaia, de quem o Dr. Marim, médico do partido, dizia: "— Este não se formou: formaram-no..."— Conhecia-os de lhe terem sido apresentados há anos na Figueira da Foz. Alzira confessou-lhe agora, quando os visitou, que gostava muito da cidade.
— O quê! sério?
Sério. Dava-se bem com os ares, que eram puros, saudáveis, e com a água, magnífica! Apenas uma única coisa a contrariava deveras: ter de viver num hotel..
Malafaia reconheceu que havia em todas aquelas referências uma pontinha de malícia.
— No hotel? disse. — E por que é que vossas excelências não arrendam uma casa?
— Porquê? Ora essa; o doutor nem conhece a sua terra... Porque as não há!
Realmente não as havia. Que aborrecimento!
— Eu não sei o que os senhores fazem ao dinheiro... — tornou Alzira, achando mole e carregando.
— Também o não há... — respondeu o bacharel.
Todos riram com a resposta. O professor declarou no entanto achar-se resignado, contente... Apesar desses pequenos defeitos — e qual era a terra que os não tinha? — aquele meio era delicioso.
— Só esta pacatez!...
E abeirou-se da janela, encheu os pulmões do ar puro que vinha das altas montanhas distantes.
— Quer saber? murmurou, — minha irmã, a primeira noite que aqui ficamos, não conseguiu pregar olho...
— Então? Por quê?
— Por causa do silêncio! 
D. Leonor vivia com a filha, Maria Cândida, — a Candidinha — que andava agora nos dezoito anos e ainda engatinhava quando o pai morreu de congestão cerebral. Reunia aos sábados. Iam quase sempre o juiz da comarca e a mulher; o Sr. Xavier — o Xavier das massas — solteirão abastado e artrítico; o Dr. Marim e às vezes uma D. Josefina, também viúva, que fora operada por ele duma doença de útero. Tudo gente de idade. Maria Cândida aborrecia-se daquela vida. A mãe andava sempre a dizer-lhe:
— Que cara que tu trazes, rapariga! Nem parece que te luz o que comes. Endireita-te! Que há de dizer a outra gente.
O Dr. Marim tinha um facataz pela pequena. Achava-a esperta, interessante, em tudo revelando um caráter diferente da vulgaridade. Dedicara-se-lhe por isso com um entranhado amor de pai, em certas ocasiões surpreendendo-se a chamá-la, a acarinhá-la como se ela realmente fosse do seu sangue... Também, a cachopinha, logo de tenra idade correspondia àquele amor; e quando o médico, a brincar, lhe perguntava se queria ir com ele, fugir da mãe para longe, a petisa saltava-lhe ao pescoço, a cobri-lo de beijos, sem dizer palavra, — lá no fundo a desejar que ele a levasse... D. Leonor sorria; intimamente porém desgostava-se. Desenvolveu-se à pressa, espigou dum dia para o outro, Maria Cândida. Todos diziam: — "Está uma senhora!" E deu então em andar triste, murchita, nervosa, a ponto de a mãe se alarmar, perguntando ao médico o que seria. O médico ria-se, receitava:
— Banhos... Água p'ra cima daqueles nervos! E deixe-a sair, não a prenda em casa, que estas idades querem sol...
Maria Cândida tinha-lhe dito um dia:
— A mamã quer-me para freira, não há dúvida. Tem medo que eu saia, proíbe-me que chegue a uma janela, não me deixa mexer se não nos livros do tio Cerdeira, que são todos em latim. É pior!
O médico ficou a ruminar a gravidade daquele comentário; "é pior!"; distraindo o olhar pela variada, profusa, quase incongruente decoração da sala, onde D. Leonor recebia aos sábados. A rapariga tinha razão: educar, pensava ele, é formar seres conscientes, livres, não é torcer aptidões e tendências naturais por forma a amoldá-las ao próprio interesse de quem educa. Dizer a alguém: "hás de ser isto ou hás de ser aquilo, porque eu quero, porque convêm, porque é assim", e não admitir sequer que esse alguém raciocine, ou sinta, ou queira doutro modo, — é um absurdo. Tão grande como se uma pessoa que tivesse fome em dado momento, exigisse dos mais, no mesmo instante, a mesma vontade de comer...
O médico, por fim, demorou os olhos sobre um enorme quadro exposto numa das paredes do fundo, que representava um trecho de paisagem oriental: palmeiras, filas de camelos pensativos e gibosos; e um beduino barbinegro, prosternado, osculando o solo poeirento, onde poizara o cajado de larga crossa e as babuchas de palha de arroz...
O Dr. juiz nunca via aquilo que não exclamasse: — Lindo! — e encavalava a luneta para ler o nome do autor, que lhe esquecia sempre.
Maria Cândida sentou-se ao piano. Imprimia ao que tocava um movimento de embalo, vagaroso e triste, que tanto podia traduzir a influência duma vida pendular, claustral e monótona, refletindo-se-lhe nos sentimentos, como a aspiração vaga e inquieta duma alma que procura no ritmo da música o ritmo do voo...
Conheceu Hipólito num domingo, à saída da missa, onde o professor fora acompanhar a irmã. Malafaia, que aparecia em toda a parte por um maravilhoso dom de ubiquidade, mal os avistou, fez as apresentações.
D. Leonor não gostou. Aconselhara-a o Sr. Xavier que não quisesse relações com semelhante gente: "gente de Lisboa, sabe? uma educação muito livre." E torceu o nariz, fez o gesto vago de quem prevê calamidades.
Durante a missa Maria Cândida notou que o professor a fitava com uma curiosidade insistente. Tinham ficado todos, casualmente, em cima, no coro. Através dos balaústres ela via o padre ao fundo, oficiando; e atrás, enchendo a comprida nave, o povinho das aldeias que vinha aos mercados semanais.
Hipólito ficara junto de Alzira, que trazia como sempre um chapéu escandaloso, e observava os menores gestos de Maria Cândida. Viu-a abrir o livro, persignar-se, bater no peito devotamente quando o padre consagrou a hóstia e ergueu o cálice e, no silêncio religioso da igreja, o som da campainha vibrou, duas vezes, com solenidade e cadência.
Um raio de sol filtrou a sua luz pura por uma das altas janelas da nave e foi refratar-se nos pingentes dum lustre de cristal pendente da abóboda, incidindo por fim, já irisado, no cabelo, nas faces, no manto azul duma Senhora das Dores, que chorava no altarzinho duma das capelas laterais... Maria Cândida rezou-lhe uma oração fervorosa e a Virgem pareceu sorrir por entre as lágrimas, agradecer, no seu banho de luz — no que Maria Cândida viu um sinal de bom agouro... 
Quando lhe apertou a mão, cá fora, e a pode observar à claridade crua do meio-dia, perto de si, Hipólito ficou encantado. Era o tipo sonhado, inédito, da beleza inculta, da simplicidade provinciana. Tinha na fala o sotaque da pronúncia beiroa, autêntica, sibilante de ss; e nos olhos um ar assustadiço, implorativo e meigo, de herbívora.
A caminho de casa, Alzira disse ao irmão:
— Se um dia te desse para o casamento, gostava que casasses com uma rapariga assim...
E ele:
— Quem havia de dizer que numa terra destas!... 
D. Leonor guardava a filha como um dia santo. Não a votava decerto, esterilmente, ao celibato, mas reservava-lhe um destino a seu gosto. Não a tinha trazido no ventre? Não a tinha criado, educado, sofrendo por ela penas e reveses? Sabe Deus!
— Quando se tem a tua idade, pregava-lhe, não se pensa, não se reflete, deixa-se a gente levar pelas aparências; mas depois... Teu pai, quando casamos, não tinha vintém, — e diziam que era esperto... Ao princípio vi-o muita vez a chorar, a arrepelar-se, a pensar em morrer. De que lhe servia a esperteza? Serviu-lhe mas foi o irmão, que era um homem de tino e de fortuna, com amigos a valer que lhe arranjaram o despacho...
Maria Cândida escutava sem retorquir. Percebera que a mãe queria casá-la com o Xavier. — O Xavier! Um velho! um antipático que usava meias de lã ásperas como urtigas, que desabotoava o colete depois de jantar e, sobretudo, que podia ser avô dela! Metia-lhe horror e repugnância tal ideia. Nunca! Nem que tivesse de ficar solteira, como as tias de Freixinho...
Uma amiga do colégio — a Matoso — tinha-lhe jurado que o professor andava com boas intenções; que aquilo não era um passatempo; que lhe afirmara o Malafaia — sabes? o Malafaia que agora me faz a corte... — que o casamento era infalível.
Ela punha-se com evasivas:
— Pois sim... Eu então já ouvi dizer que era contigo... 
Entretanto o namoro progredia. Não era segredo para ninguém que se carteavam e que tinham entrevistas do mirante do jardim. Em toda a parte se comentava isto: a paixão do professor do liceu e da Candidinha Cerdeira.
E amiudava-se o caso, referiam-se pormenores excitantes. Havia quem tivesse visto o professor, feito Romeu, trepar por uma escada de corda para o muro do quintal! Mera invenção, claro. Mas o Matos do governo civil também vira — porque via sempre tudo e jurava ser verdade por duas filhas que lá tinha em casa.
D. Leonor deu conta que Hipólito lhe passava repetidas vezes à porta, que se pespegava horas e horas no estabelecimento da esquina a olhar para as janelas. Estremeceu de angústia! Deu terminantes ordens à filha, que passou a habitar os aposentos interiores do prédio. O Sr. Xavier tinha-lhe abertamente declarado, submetendo-se a tudo:
— Arranje a Sra. cá e chame-me quando for preciso...
Era o momento!
Mas, sendo mulher, fraca, portanto, e irresoluta, quis estribar-se na opinião do médico, pessoa também da sua inteira confiança.
— A minha opinião? disse-lhe ele. — Mas alguém tem que dar para aí a sua opinião?
Ela encarou-o com espanto, sem compreender.
— Entendo que um casamento deve ser feito à vontade dos que se casam, explicou o médico. — Casam bem? casam mal? Lá é com eles...
— Perdão, interrompeu a viúva. — Eu, que sou a mãe, tenho naturalmente que intervir dalgum modo na orientação, ou na escolha...
— Conforme, minha senhora, conforme... Se se trata apenas de orientar, de dirigir a sua filha nesse passo, está bem; mas propriamente a escolha, é a ela só que pertence. Os filhos não são — como muita gente pode ainda erradamente presumir, — uma legítima propriedade dos pais... Os filhos são pessoas independentes, com direitos, com atribuições...
— De maneira que o doutor condena a minha atitude? Entende que eu devo desinteressar-me por completo do futuro da minha filha?...
— Por completo!? Mas quem pensa nisso? Por completo, não, evidentemente...
— Bonita doutrina, não haja duvida, murmurava D. Leonor sem o ouvir, fula, mordendo o beiço, batendo nervosamente com o leque no joelho, repetidas vezes. — "Casa-te, casa-te p'raí, rapariga, com o primeiro que te apareça..." Havíamos de vê-las bonitas, se assim fosse!...
O médico desistiu de discutir.
— Bem! rematou, erguendo-se, — para terminar: quer vossa excelência um conselho, um conselho de amigo, de pessoa que conhece um bocado a vida e que tem levado muito ponta-pé e aprendido à sua custa o pouco que sabe? Quer?
D. Leonor não respondeu.
— Não obrigue sua filha a casar com semelhante homem.
— Ora essa! Com quem quer o doutor então que ela case?
— Sei lá! Mas naturalmente com quem ela quiser...
E pôs termo. 
D. Leonor não desanimou. A manobra do casamento com o velho seguiu seus trâmites. Na cidade a indignação era geral. Para mais havia constado a cena da entrevista com o médico, as suas discordâncias, o ligeiro amuo subsequente...
— Víbora! víbora! dizia-se. — O Dr. Marim bem a conhece...
E formulavam-se as piores insídias: que o ilustre Xavier era amante da D. Leonor e que impunha agora o casamento com a filha sob pena dum escândalo.
Havia quem gostasse disto, havia quem não gostasse; a maioria dizia:
— É bem feito! aquilo não se faz...
No cúmulo da revolta, Malafaia, em verdadeiros comícios nas lojas, lembrava que era preciso salvar aquela criança custasse o que custasse... E com teatral entono, instigava:
— É preciso ir lá (fazia o gesto de quem aponta uma Bastilha) arrombar as portas e por a infeliz no olho da rua!
A coisa estava neste pé. 
Certo dia o Dr. Marim recolhia a casa, cedo, para almoçar. A criada, uma velha servente encarquilhada e seca como uma casca de noz, a coxear da ciática, disse-lhe, mal ele se pós a desdobrar o guardanapo:
— Então, já sabe? A menina Candidinha parece que já não casa com o Sr. Xavier. Está desfeito.
O médico teve um gesto de mau humor irreprimível:
— Lá esta você! Todos os dias novidades! Quando é que esta criatura se cansará de dar novidades?
E desatou a rilhar o bife sem vontade. A velha rodou sobre os calcanhares, saiu da sala.
— Pois é tudo cheio cá na cidade, insistiu quando voltou. — A menina julgo que sempre confessou...
— Confessou o quê, mulher?
— Olha o quê! O que já corria: que é amante do professor...
O médico ergueu-se de golpe, lívido, transfigurado, fazendo recuar até à porta a pobre velhota espavorida de o ver assim:
— Credo! santo nome de Deus! mas que tem? murmurou, supondo que o médico fora acometido de loucura.
— Você ouviu isso?
— Ouvi, sim senhor.
— A quem? Aonde? Diga.
— Por aí, diz-se em toda a parte; é tudo cheio...
Ele levou ambas as mãos ao crânio. Esteve assim, sem se mover, sem dizer palavra, por espaço de alguns minutos. Depois arremessou o guardanapo, empurrou a cadeira, pediu o chapéu e a bengala para sair — e saiu, deixando a mulher boquiaberta, sem perceber coisa nenhuma. 
Quando, uma ou duas horas depois, subia as escadas da casa de Hipólito, o Dr. Marim ia cabisbaixo, taciturno, como se uma grande dor o tivesse trespassado mortalmente.
Estivera com D. Leonor que lhe confirmou entre recriminações e prantos a tremenda nova da desonra da filha. Fora ela, a dissimulada, quem se denunciara — com um descaramento, uma serenidade, um cinismo, calcule o doutor, que deixava a perder de vista as maiores desavergonhadas da terra! E era sua filha! D. Leonor não sabia dizer como se contivera e porque a não estrangulara... Sua filha, tinha dito? Não! Maria Cândida morrera! Essa que ainda ali conservava, adentro do seu lar, por uns restos de comiseração, mas que nunca mais quereria ver, não era sua filha: era uma mulher perdida!
E o Sr. Xavier? Ah! esse então, coitado, tinha ficado como morto. Compreende-se... Porque Maria Cândida levara a sua audácia até ao ponto de dizer tudo diante dele, diante das criadas e dos convidados, — era um sábado — alto e bom som, para que não se perdesse pitada: "A mãe queria casa-lá com o Xavier das massas, por dinheiro; pois bem, ela afirmava ali terminantemente que não casaria: primeiro, porque o detestava; segundo, porque tinha um amante, o professor!"
— Veja o meu amigo, agora, o que foi fazer! comentou o Dr. Marim, voltando-se para Hipólito, a quem acabava de expor a situação com esta nitidez. — Que cabeça a sua! Que responsabilidades!
Hipólito sorriu ligeiramente, murmurou:
— Até que ponto nos podem levar os desvarios do amor, doutor, não é assim?
— É assim mesmo, concordou o médico. — Mas um homem nunca tem nada a perder com estas coisas; agora uma rapariga!...
— Perde tudo.
— Sim, tudo!
Houve um silêncio.
— O Sr. não andou bem, Hipólito, confesse, não andou bem...
— Eu?...
— É claro.
— Na sua opinião, pelo menos, doutor... Já me cheguei a convencer de que sou realmente um canalha... pois que como tal procedo...
— Leviandades, leviandades... — atenuou o médico. — Eu habituei-me a ver em Maria Cândida uma espécie de filha, desde muito nova. Não admira. Tive-a nos braços quando nasceu, pequenina, vi-a depois medrar, crescer, fazer-se mulher à minha vista — afeiçoei-me. Que quer? Enfim... — limpou uma lágrima que lhe rolou ao comprido da face — coisas da vida!
Depois, apreensivo:
— O Sr. o que pensa fazer agora?...
Hipólito ficou sem responder, um bocado, com o espírito absorvido num pensamento cruel e longínquo, que o fazia empalidecer.
— Vou confiar-lhe um segredo, disse, por fim, numa resolução firme. — Devo-lhe muitas atenções e custar-me-ia sinceramente que o doutor ficasse formando de mim um conceito menos lisonjeiro...
— Fale, meu amigo, fale, disse o médico ansioso por o ouvir. — Prestar-lhe-ei, creia, toda a atenção. Fale...
Hipólito hesitou; aprumou-se, procurando dar às suas palavras um tom solene, de grande sinceridade.
— Maria Cândida não está culpada; Maria Cândida não é, nem nunca foi minha amante!
— Que me diz?!
— A verdade! Maria Cândida é tão virtuosa, hoje, tão pura e imaculada como na hora em que pela primeira vez a encontrei. Não me acredita? Juro-lhe.
O médico fitou-o, desconfiado, surpreso.
— Conhece esta letra? disse Hipólito.
E colocou-lhe diante dos olhos um papel cuidadosamente retirado da carteira.
— Conheço. É a letra de Maria Cândida.
— Pois é. Leia!
O médico obedeceu. E quando terminou, os olhos arrasados de lágrimas, deixou-se cair sobre uma cadeira, p'ra ali, varado de espanto.
— É assombroso!
Hipólito arrancou-lhe das mãos, trêmulas pela comoção, a carta, cujo final releu em voz alta: "... Pois bem. Afirmarei, ou darei a perceber a todo o mundo que sou tua amante; deste modo nenhum outro homem me quererá..."
— É assombroso! repetia o médico estonteado. — E é uma criança! é uma criança que faz disto!...
Enquanto Hipólito, a chorar, concluía:
"Se me desmentes... mato-me. E tu bem sabes — sim, tu bem sabes! — como eu sou capaz de cumprir fielmente o que prometo..."
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Fonte do texto: Project Gutenberg
Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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