No mês de dezembro do ano de 1860
recebeu o mais pitoresco arrabalde da cidade do Rio de Janeiro mais uma família
em seu seio; compunha-se ela de pai, mãe e uma filha, a qual, pela palidez de
seu rosto, bem mostrava que era em busca da saúde que a abandonara que seus
pais buscavam os puros ares do aristocrático Botafogo.
Foi no dia 30 do supracitado mês que D.
Olímpia Maria Milé Pandó e seu marido o Sr. José Maria Pandó vieram fixar a sua
residência numa linda chácara na Piaçava, com sua mimosa filha a Sra. D.
Almerinda.
Pouco depois de haverem percorrido a
chácara e casa em que iam habitar, exclamou D. Almerinda:
— Ai! meu Deus! virão aqui, tão longe,
as minhas amigas conforme me prometeram?
— Hão de vir, minha filha, respondeu-lhe
sua mãe; duvidas de sua amizade? Conto com ela para me ajudar-me a distrair-te,
e ver se assim tornamos a ver-te gorda e alegre como dantes.
Para que nossas amáveis leitoras possam
compreender este dialogo, é mister que lhes expliquemos, que tendo o médico de
D. Almerinda exigido, para o seu completo restabelecimento, a mudança de ares,
ela a isso se não quis sujeitar sem previamente obter de suas amigas a promessa
de que no primeiro domingo de cada mês viria uma dentre elas passar o dia em
sua companhia; ao que de bom grado anuíram; prometendo-lhe outrossim de que
iria visitá-la aquela que tivesse algum caso, anedota, ou história interessante
para lhe contar, afim de distraí-la de suas dores.
De posse dessa promessa partiu para o
Botafogo, onde, como já vistes pela sua exclamação, aguarda ansiosa a chegada
do primeiro domingo do mês de janeiro de 1861, para abraçar uma de suas amigas
e ter notícias das outras.
***
Eis-nos chegados ao primeiro domingo do
mês de janeiro de 1861, e D. Almerinda está radiante de alegria, por ver que D.
Rosinha, uma das que lhe haviam feito a amigável promessa, veio visitá-la, e
lhe noticiou que tinha para lhe contar a história do casamento de um moço com
uma boneca.
Depois de haverem conversado sobre
diferentes assumptos, pediu D. Olímpia a D. Rosinha que contasse à sua filha a
história que lhe prometera, ao que pressurosa se prestou, principiando assim:
Existia na Toscana, num lugar próximo da
capital, uma mulher chamada Rosaura, muito conhecida pela perfeição com que
fazia bonecas, as quais vestia com extrema elegância, apropriando a cada uma a
vestimenta conforme o papel que lhe queria fazer representar.
Sua casa, ou mais apropriadamente dito,
sua fábrica, era considerada como uma das maravilhas do país, e tinha-se em
conta de um grande favor o poder-se assistir à exposição que anualmente fazia
no dia de Santa Rosa.
O motivo que levou Rosaura a fazer
bonecas foi a extrema pobreza em que se achou depois da morte de seu marido,
Roberto Ferrari, o qual despendeu até o seu último real com uma atriz de que se
apaixonara, indo uma vez a Milão assistir a uma representação do Trovador.
Comparando a elegância da dama que fazia o papel de Leonor com a de sua mulher,
sentiu-se envergonhado de há mais tempo não ter conhecido que as modas e
maneiras do seu país eram bem grosseiras em comparação com as da dama que o
cativara, sem se lembrar que se sua mulher o comparasse a algum elegante da
corte o acharia, quiçá, ainda mais tosco e desengraçado.
O desgraçado Roberto, depois de haver
esgotado seus últimos recursos pecuniários e vendo-se desprezado pela atriz,
por quem esquecera os sagrados deveres de esposo e de pai, entregou-se a um tão
excessivo uso de bebidas que em breve tempo morreu, deixando seu filho Onofre e
sua viúva na mais extrema pobreza. Foi nessa ocasião que resolveu esta aprender
a arte em que se tornou tão notável, por ser uma das que nessa terra maiores
vantagens ofereciam.
Graças à sua infatigável atividade e à
perfeição de suas obras, pôde Rosaura sustentar-se e educar seu filho.
Havia já algum tempo que Rosaura notara
em Onofre uma tristeza profunda, da qual só parecia distraí-lo a exposição que
sua mãe fazia no dia de Santa Rosa. Nesse dia examinava então ele o vestuário
das bonecas, sua elegância, e dizia suspirando: “Como tudo isto é bonito!!...”
E acabada a exposição voltava à sua melancolia habitual.
Na última que fizera sua mãe, depois que
completara seus 22 anos, havia uma boneca vestida de seda azul, e ornada com
brincos, colar, pulseiras e anéis, da qual não podia desprender os olhos. O
desejo de poder sempre olhar para o objeto que o cativava levou-o a perguntar a
sua mãe se essa boneca também seria vendida assim como as mais.
— Sim, meu filho, lhe respondeu ela,
esta já está prometida à rainha de Inglaterra, que me dá dez libras esterlinas
por ela.
— Ah! se eu tivesse essa soma ela não
sairia daqui, exclamou Onofre mal sua mãe acabara de falar.
— E o que farias, meu filho, se possuísses
esse dinheiro?
— O que faria? Mandaria as dez libras à
rainha, para que me deixasse ficar com a boneca.
Rosaura achou tão pueril esse desejo que
se pôs a rir e não lhe respondeu.
Um rapaz da vizinhança, com quem Onofre
era muito ligado, e a quem ele confiara o segredo da afeição que consagrava às
bonecas, disse à Rosaura que evidentemente, se ela não procurasse casar seu
filho, ele se apaixonaria por alguma daquelas damas de pano que ela tão
habilmente fazia.
Rosaura assim prevenida tratou logo de inspirar
a seu filho o gosto pelo estado conjugal, mas ele inalteravelmente lhe
respondia:
— Nenhuma das nossas patrícias tem a
elegância de vossas bonecas, e eu não me poderia ver ligado a uma mulher de
saia grossa e andar pesado. Vós me fizeste conhecer o belo, é-me pois
impossível unir-me a um ente que não seja assim.
Em vão objetou-lhe sua mãe que entre
elas haviam algumas muito garbosas e que sua prima Emília era linda como um
sorriso de Deus; ele foi inabalável.
A época em que se passou a cena que acabo
de te traçar era próxima ao dia de Santa Rosa, e portanto achava-se Rosaura
bastante atarefada com os preparativos necessários para esse grande dia.
Deixo-a agora por um instante, para te contar um pequeno episódio que aconteceu
no espaço que mediou entre o diálogo de Onofre com sua mãe e o dia da
exposição.
Chegou um dia ao lugar onde se passam os
fatos que te estou narrando o grão-duque da Toscana, com uma filha jovem, bela
e graciosa, como são todas as Italianas em geral. Entre as pessoas que afluíram
para assistir à entrada desse grande personagem, achava-se o nosso amante de
bonecas; o qual, vendo a filha do dito duque apear-se do carro e dar a mão a
seu pai para entrarem na casa que lhes era destinada, ficou maravilhado de
achar nessa linda criatura as graças que tanto o maravilhavam nas bonecas de
sua mãe.
Voltou para casa ainda mais melancólico
que do costume e intimamente convencido de que só a boneca devera dedicar o seu
amor.
Chegou o dia da exposição, e dentre as
bonecas de que ela se compunha, sobressaía uma, notável pela beleza de seu
rosto, de seu vestuário e riqueza de suas joias, além de ser de tamanho
natural. Como é de crer foi esta que atraiu as vistas do nosso Onofre, que
cheio de interesse foi perguntar a sua mãe se esta boneca também teria a sorte
de ser vendida.
— Não, meu filho, lhe respondeu ela,
esta é para ti que a mandei fazer, visto seres tão amante destes arremedos da
natureza.
Foi cheio de inexprimível jubilo, por
tão inesperada dadiva, que Onofre, finda a exposição, viu colocar-se a sua
boneca numa sala reservada, onde ia todos os dias passar uma ou duas horas em
adoração diante do seu tesouro, ao qual nunca tocava com medo de amarrotar as
rendas, ou tirar o colorido das lisas faces. Numa de suas contemplações sentiu-se
impelido por uma força oculta que o levou ao ato de ajoelhar-se aos pés da
adorada boneca e confessar-lhe seu amor, como se viva fosse. Qual não foi porém
sua admiração ao ver que lhe respondia, dizendo-lhe que também partilhava esse
amor.
— Milagre! Milagre! Exclamou ele, a
minha boneca fala;
Pôs-se de novo a contemplá-la, e depois,
como ferido de uma ideia súbita, exclamou:
— Não podes ser boneca se falas como
nós!
Nisto apareceu sua mãe, que estivera à
espreita, e disse-lhe:
— Então, meu filho, queres se casar com
ela?
— Sim, minha mãe, lhe respondeu Onofre,
mas dizei-me a verdade, ela não é boneca?
— Pois não vês que é a tua prima Emília,
com quem queria que te casasses e que recusaste, não querendo admitir que
pudesse ter as graças, nem vestir-se com a elegância das minhas criaturas de
pano?
Pouco tempo depois do que acabo de
narrar-te casava Onofre com Emília, e ainda hoje continuam com o ofício de sua
prudente mãe.
No primeiro do mês de fevereiro de 1861
estreitava D. Almerinda em seus braços a D. Antonina, que viera visitá-la e
cumprir a promessa que lhe fizera.
— Minha cara Almerinda, disse D.
Antonina, depois de muito haver cantado e passeado com sua amiga, vou contar-te
a história de uma moça que nunca se rio.
— Não é possível! Exclamou D. Almerinda.
— Escuta-me e verás.
Existia noutro tempo em Barcelona uma
senhora, que trazia constantemente uma máscara no rosto, para o que obtivera
licença da polícia, e tinha por costume todos os anos, no dia 1º de dezembro,
mandar todos os seus criados e criadas passearem até à noite, dando-lhes, nesse
dia, dinheiro para jantarem fora; debalde lhes ponderavam que podia necessitar
de alguma coisa em sua ausência, ela respondia:
— Deus velará sobre mim, não vos
inquieteis, necessito de ficar só.
Logo que o último criado havia saído
fechava-se por dentro e só reabria a porta ao pôr do sol.
A máscara que trazia, sua grande
riqueza, e a saída dos criados em um dia marcado causavam a todas as pessoas
uma grande curiosidade. Uns diziam: “É por ser muito feia que não tira a
máscara”; objetiva outro: “Não, é para fazer feitiços que ela se encerra um dia
em cada ano”, etc.
Como estas, haviam muitas opiniões,
porém ninguém podia gabar-se de haver acertado.
Um fidalgo francês, que se achava em
Barcelona de passeio, encontrando a misteriosa Josefina, pois assim se chamava
a mulher que nunca se ria, pois as máscaras não riem, admirado da
particularidade que a distinguia e de sua elegância, vendo que ao formar-se uma
quadrilha não dançava, foi sentar-se a seu lado e perguntou-lhe:
— Vós não dançais, senhora?
— Não posso, respondeu-lhe Josefina.
— Senti-vos indisposta?
— Não, senhor. Se não danço, é porque
temo desprender a máscara nas voltas que seria obrigada a dar.
— E que mal há nisso?
— Que mal? Perguntais vos; haviam de
ver-me o rosto.
— E porque o escondeis com tanto
cuidado?
— Sois estrangeiro, senhor, e por isso
vos desculpo a pergunta. Saibais, pois, que tenho justos motivos para não me
separar de minha máscara.
— Devem ser motivos de grande peso, para
que na vossa idade vos furteis assim aos encantos do amor.
— Nunca hei de conhecer esses encantos,
cavaleiro.
— E por quê? Tencionais viver sempre
assim? Não vos casareis algum dia?
— Casar-me? E quem quereria para sua
esposa uma mulher mascarada e a quem nunca visse o rosto?
— Vós tendes as graças da alma e do
espírito, e é com esses dotes que principalmente se cativam os corações. Como
vedes, pois, não é vosso casamento tão impossível como pensais.
— E se eu fosse feia?
— Não é possível que o sejais! Exclamou
o fidalgo.
— A obstinação com que conservo a
máscara é motivada pela hediondez de meu semblante. Como não teria a coragem de
ver ninguém desviar os olhos de meu rosto logo que me visse, conservo sobre ele
este muro de veludo, para poder frequentar a sociedade sem horrorizá-la.
— Será possível? Redarguiu o fidalgo.
D. Josefina enquanto falava o fidalgo
sentia-se extremamente comovida, e para não trair-se levantou-se, mal acabava
de proferir a última palavra.
— Ide-vos embora? Perguntou-lhe.
— Sim, senhor.
— Quando vos tornarei a ver?
— Quando nos tornarmos a encontrar em
algum sarau.
— Não poderia merecer a honra de
apresentar-vos os meus respeitos em vossa casa?
— Se tendes bastante coragem para
suportar o aborrecimento do meu salão, terei muita satisfação em receber-vos.
No dia seguinte ao desse encontro
contava o nosso fidalgo a um seu amigo a paixão que estava em seu peito, desde
que vira a misteriosa Josefina.
— Arranca de teu coração esse fatal
amor, lhe disse o amigo. Não sabes que a mulher a quem amas é extremamente feia
e faz feitiço todos os anos no dia 1º de dezembro? E que para não saber-se a
que praticas reprovadas ela se entrega nesse dia manda sair todos os criados?
Foge dela se queres ser feliz. Crê no que te diz o teu amigo.
Não se deixou porém convencer o fidalgo,
e como no dia seguinte era o 1º de dezembro decidiu envidar todos os seus
esforços para saber o que fazia D. Josefina em seu palácio nesse dia.
Alugou uma casa que havia na proximidade
do dito palácio e pôde pelo telhado introduzir-se nele sem ser visto, pela
janela de um salão que este tinha.
Enquanto D. Josefina fechava a porta da
rua o fidalgo introduziu-se em seu quarto, onde dali a pouco ela apareceu e
ajoelhou-se, depois de uma curta oração levantou-se, abriu um armário, donde
tirou um falo de homem todo manchado de sangue, e beijando-o exclamou:
— Oh! Minha querida mãe! Tenho cumprido
a promessa que vos fiz.
Ouvindo esta exclamação o fidalgo deixou
cair o chapéu ao chão, e como esse barulho assustasse a jovem mascarada, saiu
de seu esconderijo e pediu-lhe perdão por se haver introduzido em sua casa por
um modo tão insólito. Explicou-lhe que o amor que lhe consagrava e o mistério
de que cercava o dia 1º de dezembro tinham sido os motivos pelos quais dera esse
imprudente passo, e que não sairia dali contente se ela lhe não prometesse
aceitar a sua mão.
— Antes de prometer-vos minha adesão ao
vosso pedido, ouvi a minha história.
Minha mãe era uma beleza, e por isso
tinha inúmeros admiradores. Em uma reunião em que um dos que admiravam a sua
formosura contemplou-a por um espaço de tempo demasiadamente longo, meu pai,
dominado pelo ciúme, desafiou-o, e batendo-se no dia seguinte ambos morrerão.
Desde o dia em que minha mãe enviuvou por causa de sua beleza, disse-me:
— Minha filha, há duas coisas bem
prejudiciais à mulher: uma é a beleza, e outra a fealdade. Se eu não houvesse
sido tão bela, ainda hoje estaria vivo teu querido pai, sobre as roupas do qual
peço-te que me jures trazeres doravante uma máscara no rosto, para que não
desagrades pela tua fealdade e possas achar um marido que só se agrade de tuas
virtudes.
Jurei pois à minha mãe o que ela queria,
e como acabastes de ver, renovo anualmente o juramento no dia do aniversário da
morte de meu infeliz pai. Ainda quereis casar-vos comigo? Jurais respeitar a
minha máscara e nunca exigirdes de mim que a tire?
— Juro, respondeu o fidalgo.
— Ide então preparar o que é preciso
para o nosso casamento.
O fidalgo saiu, e poucos dias depois
deste acontecimento se efetuou a sua união com D. Josefina.
Durante o baile, que por essa ocasião
deram os noivos, lamentavam em voz baixa os convidados a sorte do fidalgo, e
temiam que um dia não viesse a ser vítima das bruxarias de sua mulher.
Quando o baile ia tocando ao seu termo,
chegou Josefina aos convidados e rogou-lhes que fossem todos para uma sala contígua, para ouvirem seu marido ratificar-lhe o juramento que lhe fizera de
não exigir que tirasse a máscara.
Acederam os convidados ao seu pedido, e
quando já se achavam reunidos, perguntou D. Josefina a seu marido:
— Sustentais diante de todos os senhores e
senhoras o juramento que me fizestes?
— Sim, respondeu ele.
— Pois bem, como me prometeis de não
exigir que tire a máscara, eu juro-vos que nunca mais a porei; e dizendo isto
tirou-a de sobre o rosto e patenteou a todos os olhos uma beleza sem igual.
Uma exclamação geral partiu de todos os
lados em sinal de admiração, e mais de um convidado retirou-se pesaroso de não
ter tido a coragem do feliz fidalgo
Chegamos ao primeiro domingo do mês de abril
de 1861, e D. Almerinda esta inquieta na janela pela chegada de D. Leonídia,
que ficou de vir nesse dia para contar-lhe a história de um moço que entendia
dever-se casar com alguma deusa, em consequência de achar a todas as mulheres
da terra muito triviais, depois que lera Mil e uma noites, Os contos pérsicos,
a metempsicose, a filosofia de Pitágoras, e todas as graciosas teorias do
pensamento.
Ao ver dirigir-se um carro para o portão
da sua chácara ficou ela transportada de alegria, esperando ver sair dele a sua
amiga Leonídia. Foi com efeito essa moça que se apeou do carro, e correu para
Almerinda, que estreitou nos braços, felicitando-a pela boa saúde que parecia
gozar.
Passados os primeiros momentos de
satisfação começou D. Leonídia a contar a história prometida.
Havia um moço chamado Teodoro, que, como
já mandei dizer, achava indigno de si casar-se com uma mulher que trajasse
vestido de seda, chapéu de palha e calçasse luvas como qualquer de nós. Aos
dezoito anos imaginara um Eldorado para si. Sonhara com uma mulher de mãos de
alabastro, dedos de rosas, olhos de ametistas, sorriso de anjo e lágrimas de
brilhantes. Desejava para as flores uma vida eterna, para as mulheres uma
eterna beleza, e para o coração uma interminável bem-aventurança. Nada menos
enfim que o impossível, apesar da imensa riqueza que possuía seu pai, que
ardentemente desejava casá-lo.
— Eu casar-me com uma mulher do mundo?
Nunca! Dizia ele. Ainda existem deusas e divindades para que dentre elas possa
escolher a que tem de ser minha companheira. Apresentem-me uma descendente do
Olimpo e caso logo.
O Dr. Ernesto, intimo amigo do pai de
Teodoro, incumbiu-se de tirar ao filho de seu velho amigo a mania das
divindades, para o que dirigiu-se um dia ao aposento do moço e disse-lhe:
— Teodoro, quero casar-te.
— Há de ser bonito; porém difícil.
Vejamos, tens sem dúvida alguma condessa vaporosa, alguma moça rica ou viúva
inconsolável para me propor?
— Tenho coisa melhor.
— Então o que é?
— As filhas dos elementos têm
posteridade? Perguntou Teodoro.
— Têm. E porque Netuno, Ceres outros não
podem ter gozado das doçuras da família?
— É justo. Mas dize-me e saberás. Só
quero que me dês uma hora em cada uma das quatro noites que preciso de ti, para
levar-te à casa de cada uma das quatro noivas que te quero mostrar, para
escolheres a que mais te agradar.
— Em que dia queres começar a
apresentação?
— Hoje mesmo, porém com uma condição,
que é de te deixares vendar os olhos e não me perguntares por que caminhos
passamos.
— Prometo tudo; e logo a noite estarei
pronto para ir contigo.
Mal o escuro manto da noite se havia
desdobrado sobre a terra veio o Dr. Ernesto buscar a Teodoro, ao qual vendou os
olhos e meteu num carro donde o fez sair, já desvendado, para introduzi-lo numa
sala brilhantemente iluminada, onde se dava um sarau esplendido.
— Onde estamos nós? Perguntou Teodoro.
— Em plena água respondeu-lhe o seu
condutor.
As moças que aqui vejo serão náiades?
— Sem dúvida.
— Mas elas estão vestidas como as
mulheres da terra?
— Ah! Meu menino, disse Ernesto, bem se
vê que ainda estás muito atrasado, pois ignoras que os elementos seguem a
marcha da civilização e vestem-se conforme as modas da época?
Teodoro viu uma das moças sentar-se ao
plano e cantar com maviosa voz uma aria de Tancredo, e perguntou ao doutor:
— Quem é essa jovem beleza? É alguma
sereia?
— Não, disse-lhe Ernesto, é a filha do
dono da casa; é descendente da planície liquida.
Virão num canto um velho respeitável,
que conversava com um amigo a quem perguntou:
— Tem visto o Oceano?
— Não tenho podido, respondeu este, mas
irei de vê-lo domingo. Tenho estado com o mediterrâneo, com quem me dou mais
por ser melhor de gênio.
— Saiamos daqui, disse o doutor a
Teodoro.
— Por quê? perguntou ele.
— Porque estão falando de seus parentes
e nós não devemos ouvir os segredos da família.
Ouvindo tocar o sinal de uma quadrilha,
chegou-se Teodoro para a moça que acabara de cantar, e perguntou-lhe:
— Vós dançais?
— Danço, pois não, e até gosto muito.
— Danças sobre a terra?
— Sobre a terra e sobre o mar, e ainda
mais sobre esse último, pois não podeis imaginar quanto é lindo o espetáculo de
um baile sobre o mar, a luz das estrelas e ao murmurar das vagas inundadas
pelos raios da lua.
Acabando a quadrilha levou Teodoro a
moça para seu lugar e retirou-se para casa pensativo, dizendo internamente: é
pena, pois é impossível o casamento.
Na noite seguinte foi igualmente vendado
e conduzido a um lugar onde viu o doutor bater a uma porta, que lhe foi aberta
por moça, a quem ele disse:
— Boa noite, filha de Ceres.
— Seja bem-vindo, respondeu-lhes esta.
Teodoro não cessava de olhar para a moça
que via coberta de flores próprias da estação, tendo na mão uma fouce.
Ela os conduziu para uma sala, onde virão
sentados à roda de uma mesa muitos moços e velhos comendo frutas, saladas e
bebendo leite. Fê-los sentar igualmente e sentou-se ao lado de Teodoro, que já
se sentia atraído para ela.
— Como se chama aquele velho
respeitável? perguntou Teodoro ao doutor apontando para um sujeito que lhe
ficava fronteiro.
— Chama-se Saturno, respondeu-lhe este.
— Saturno! Ainda devorara seus filhos?
— Não creio, disse Ernesto; os gostos
mudam com os anos.
A refeição esteve animadíssima. Rirão-se
muito e conversaram mais sobre a boa vida que ali levavam do que sobre a triste
humanidade.
Teodoro dirigindo-se para a moça
perguntou-lhe:
— Gostais muito de frutas?
— Muito, disse ela, adoro-as.
— Qual dentre elas preferis?
— Dentre todas, senhor... a romã.
Teodoro sentiu cair-lhe o talher das
mãos. A neta de Prosérpina tinha o deleito da sua raça.
— Não casarei por certo com esta moça,
disse ele ao doutor voltando para casa, pois não quero para minha mulher uma
filha do elemento destinada a passar seis meses de cada ano no inferno.
— Sabes sem dúvida, disse D. Leonídia a
Almerinda, que Prosérpina (segundo diz a mitologia) devia ser entregue à sua
mãe no caso de não ter comido nada no inferno, mas que isso não se pôde
realizar em consequência de ter provado uma romã. Foi pois o gosto decidido por
essa fruta que mostrara a moça o que assustou Teodoro, fazendo-o temer de
passar também seis meses no inferno com sua mulher.
Na terceira noite foi levado com as
mesmas precauções para casa de uma estranha família. Compunha-se de um homem
velho e de uma moça de dezenove anos. A sala onde foi introduzido estava cheia
de estofos gomados, tubos de gás, instrumentos de precisão e mil outros objetos
que pendiam das paredes.
— Estamos em casa do ar, disse o doutor
a Teodoro.
O descendente de Boreias tirou o chapéu
vendo aparecer seus visitantes.
— Meu pai, quereis que assopre o fogo?
Perguntou a moça ao velho.
— Não, minha filha, respondeu-lhe este,
deixa-o tranquilo, nem é bom acostumar-se ao calor já que temos de ir amanhã às
nuvens.
— Às nuvens? Perguntou Teodoro, então
vos mudais?
— Não, senhor, disse o velho, é apenas
uma pequena excursão que farei no ar com minha filha a cento e duas toesas de
Portugal...
— Que aborrecida vida é esta minha,
exclamou a filha, sempre viajar contigo só; não sei o que me parece. Se eu me
casar juro que não hei de viajar senão com meu marido.
— Não façais caso do que ela diz, tornou
o velho, o que ela tem é força de gênio.
Voltando para casa pensou Teodoro: ainda
esta não me serve, apesar de ser mui bela, pois é bem pouco seguro andar sempre
pelos ares.
— Vamos à casa do fogo, disse o doutor a
Teodoro na quarta noite.
Tomadas as convencionadas precauções
entraram numa casa onde acharam uma moça sentada a uma escrivaninha, que ao
vê-los entrar lhes disse:
— Sentai-vos, senhores, enquanto vou
prevenir a meu pai da vossa chegada.
A curiosidade levou Teodoro a olhar para
o que a moça tinha escrito num grande livro, que via aberto sobre a
escrivaninha, e leu o seguinte:
“A 22 de Janeiro, incêndio em Nice, de
uma herdade com trinta hectares de terra, casa, jardim e mais dependências.
Em 27 do mesmo mês, incêndio em
Santarém, de um bairro inteiro.
Em 30 do mesmo, destruição completa de
toda a plantação de trigo que houve em França”.
— Misericórdia! Exclamou Teodoro,
vamo-nos embora, que só um bombeiro pode casar com tão incendiaria divindade.
Renuncio às imortais, nem quero mais que nelas me falem.
Um ano depois destes acontecimentos
casava-se o nosso sonhador com uma mortal que o tornou muito feliz.
No sarau que deu sua mãe por ocasião, ao
terminar a primeira quadrilha que dançara com sua noiva soltou Teodoro um grito
de surpresa, reconhecendo em quatro moças que lhe estavam defronte as quatro
divindades que rejeitara. Ficou aturdido por tão inesperada aparição, mas em
breve viu sua mãe tomar a náiade e dize-lhe:
— Meu filho, apresento-te a Sra. ***,
filha do celebre almirante a quem a França deve grandes e numerosas conquistas.
— Quando quiserdes dançar sobre a água,
disse-lhe a moça, eu vos servirei de vis-à-vis sobre a fragata de meu pai.
— Agora, disse a mãe, tomando pela mão a
que figurara a terra, aqui está a Sra. ***, disse-lhe sua mãe tomando a
terceira moça pela mão.
— Ah! Exclamou Teodoro, aquela que anda
nas nuvens?
— Sim, meu filho, é a filha do celebre
aeronauta que toda a Europa admira.
— Se quiserdes passear no nosso balão,
disse-lhe a moça, tereis nele um lugar distinto.
— E eu sou esquecida? Disse o fogo;
quero por minha vez cumprimentar o noivo.
— Vós incendiais cidades e aldeias?
Perguntou Teodoro.
— Ela mesma, meu filho. É a filha única
do diretor geral da companhia nacional contra o incêndio.
— Não entendo nada do que vocês dizem,
exclamou a noiva, e por isso peço-te que mo expliques.
Teodoro explicou-lhe então que a leitura
de coisas maravilhosas o fizera anelar por casar-se com uma imortal, mas que
hoje conhecia o quanto errado andara, pois a poesia olímpica estava morta e não
existiam os deuses com que sonhara. Sua noiva porém insistiu em dizer que ainda
havia um Deus cheio de poesia. Perguntando-lhe Teodoro qual era, abaixou os
olhos e disse: é o amor.
Jornal
das Famílias, maio de 1965.
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