(Conto
moral)
Existia em São Gonçalo no ano de 185***
uma casinha baixa, assaz próxima à praia, e conhecida pelo nome de: casa da
feiticeira.
A vida misteriosa da única habitante
dessa casa dava lugar aos mais extravagantes temas de conversação; máxime entre
os que queriam primar em saberem de tudo e conhecerem a todos.
Nenhuma das pessoas existentes no lugar
vira ainda as feições da feiticeira à exceção de uma preta velha, chamada
Margarida, que ia diariamente levar-lhe o sustento e fazer os serviços mais
pesados, retirando-se logo que era ali inútil a sua presença.
Não longe desse lugar, havia alguns anos
viera morar um viúvo, pai de uma linda mocinha que ele se dedicava em instruir.
Eugênia, que assim se chamava a moça, era um composto de graças e bondades;
tinha um só defeito, era um pouco vaidosa; embora fosse esse sentimento pouco
desenvolvido nela não deixava por isso de inquietar a seu extremoso pai, que
nunca desprezava um a ocasião que se lhe oferecesse para admoestá-la sobre esse
defeito no intuito de corrigi-la.
— Para que insiste vossemecê em que eu
estude além de ocupar-me com a casa, dizia ela um dia a seu pai, se pela vida
retirada em que vivemos desde a morte de minha mãe não tenho onde aparecer nem
há aqui quem possa apreciar a instrução que tão afanosamente me dá?
— Sempre vaidosa, minha filha! então
pensas que é para ostentares o teu saber que me fadigo tanto? Eu quero que te
instruas, disse o velho porque terei em breve tempo de retirar-me dentre os
vivos, e, como sabes, cessa por minha morte a modica pensão de que tiramos a
nossa subsistência; é por isso que me esforço em que te instruas nos misteres
da casa, e nessas poucas coisas que te puder ir ensinando para lançares mão do
magistério e ganhares o pão depois da minha morte e não seres pesada a ninguém.
Lembre-te, minha filha, do que diz Degouy sobre o trabalho:
“O trabalho eleva o homem e derrama em
seu caminho imensas satisfações; o ócio degrada-o e atrai sobre ele a vergonha,
o desprezo e a desgraça. Uma vida tranquila e laboriosa é como essas pedras
preciosas que encerram um grande valor em um pequeno espaço; o preguiçoso
assemelha-se ao insensato que possuindo um grande tesouro dissipa-o em loucas
extravagancias em vez de empregá-lo em assegurar a sua independência. O tempo é
mais precioso que o ouro, pois sendo devidamente empregado não só nos
proporciona um bem-estar neste mundo, como ainda nos pode assegurar a
felicidade na vida futura.” E ele tem razão, minha filha; e não só ele, como
muitos outros notáveis escritores têm estigmatizado o ócio e a preguiça; não
penses que só os homens que assim falam entre as muitas que há, Mlle. de Sauvan
diz: “Só o trabalho pode afastar-nos da miséria e garantir-nos a virtude.” Mas
o trabalho que aproveita não é como o que vês executar diariamente por essas pessoas
que jactam de trabalharem, mas queixam-se que lhes não chega o produto que
tirão de sua fadiga para sustentarem a mísera existência que penosamente
arrastão; esses que assim falam, minha filha, crê têm ordem no que fazem; falta
esta que embora a pessoa se extenue no trabalho nunca chega a estabelecer uma
reta proporção entre a sua fadiga e o lucro que dela tira. Crê, minha filha,
que a ordem no trabalho faz a metade da tarefa. Achas talvez que é rabugice de
velho o que te digo, e que esses pais que durante a sua vida habituam suas
filhas a mil folgares, que semeiam flores em seu caminho e as não afligem com
estudos nem misteres domésticos amam-nas mais do que eu te amo, não é assim?
como te enganas, querida! esses pais imprevidentes só dão às suas filhas a
felicidade presente, sem cuidarem do futuro em que já lhes não poderão ganhar o
pão e que elas por inábeis e não avezadas ao trabalho terão de recorrer à
caridade alheia, ou casarem-se por necessidade. Eu quero que te cases se
quiseres, mas que não te force a isso a inaptidão de proveres à tua
subsistência.
Eugênia nunca se lembrara que ficaria na
miséria por morte de seu pai, e por isso pesava-lhe estudar e ocupar-se na
direção da casa; mas ao ouvir estas judiciosas razões exprobava-se de não ter
compreendido isso há mais tempo. Prometeu-lhe que daí para em diante seria mais
grata e aplicada em suas lições.
Começou desde então a refletir no que
seu pai lhe dissera e a lastimar internamente a sorte de algumas de suas
amigas, cuja sorte invejara quando seu pai lhe não tinha proporcionado o ensejo
de refletir, e que sabia viverem na corte muito comodamente e até com luxo,
unicamente fiadas nos bons ordenados que tinham seus pais, sem que lhes desse o
menor cuidado o futuro humilhante que se lhes preparava.
Na casa contigua à do Sr. Antunes (que
esse era o nome do pai de Eugênia) morava um velho militar reformado, chamado
Bento Peniche, cuja riqueza única consistia na posse de um bom filho chamado
Alberto, que era guarda-livros de uma grande casa de comercio na corte.
Nas repetidas visitas que o moço fizera
a seu pai enamorara-se de Eugênia, e com ela desejou casar-se. Eugênia por seu
lado também gostou do rapaz, e por isso aceitou a corte que ele lhe fazia.
Grande foi sua alegria quando Alberto
comunicou-lhe que tencionava pedi-la em casamento a seu pai, de quem esperava
obter o consentimento, visto ser ele um moço honesto e trabalhador.
No domingo imediato àquele em que
Alberto tivera essa conversa com Eugênia (o que sempre tinha lugar estando cada
um em sua janela, visto serem contíguas as casas) rogou ele a seu pai que fosse
pedir ao Sr. Antunes a mão de sua filha para ele, caso também aprovasse essa
união. De bom grado prestou-se Bento Peniche ao pedido de seu filho, pois
simpatizava com a filha do seu vizinho. Para esse fim escreveu uma carta a
Antunes pedindo-lhe uma entrevista a sós, em sua casa, para falar-lhe em coisa
que ambos interessava.
Depois do recebimento dessa carta disse
Antunes à sua filha que não a acompanharia nesse dia ao passeio higiênico que
dava diariamente, e que se faria substituir pela velha Margarida.
Eugênia quis eximir-Se de passear, visto
não poder ir com seu pai; mas este que precisava ficar só para a entrevista que
lhe pedira Peniche insistindo para que ela fosse com preta.
Mediante uma modica retribuição vinha
Margarida fazer diariamente os serviços mais pesados da casa de Eugênia, pois
que a modicidade das rendas de Antunes opunham-se a que tivesse uma criada;
quando porém precisavam dela para mais alguma coisa do que de ordinário
diziam-lhe e ela se prestava. Por isso é que foi Eugênia passear com a preta.
Ao passarem porém diante da casa da
feiticeira lembrou-se Margarida que nesse dia ainda não havia feito nessa casa
o serviço de costume, e por isso exclamou:
— Ai! minha boa nhanhã, vossemecê há de
me dar licença para que eu entre por um instante na casa da feiticeira, que
assim também lhe chamava ela apesar de lhe saber do nome. A esta hora este
lugar não é uma passagem, por isso fique aqui por um instante apanhando
conchinhas, que eu volto num momento.
Eugênia ficou esperando pela preta, mas
não sem um certo receio de ver sair a cada instante a feiticeira montada em
algum pau de vassoura; ou sentir um forte cheiro de enxofre. Nada disto porém
aconteceu; mas vendo que Margarida demorava-se mais do que prometera começou a
moça a arrepender-se de tê-la deixado entrar.
Pouco depois de ter começado a sua
impaciência viu ela chegar Margarida com ar preocupado, que chegando-se a ela
disse-lhe:
— Perdoe a minha demora, nhanhã, mas não
pude vir tão depressa como desejava porque a feiticeira falou-me hoje.
— Mas ela nunca te havia falado?!
perguntou-lhe Eugênia.
— Não, senhora.
— Mas como sabes então o que ela quer
que lhe faças?
— O serviço, nhanhã, é sempre o mesmo, e
desde o tempo de minha mãe sei quais são as minhas obrigações.
— Como! Pois estás a serviço desde o
tempo da tua mãe? Há pois muitos anos que ela vive ali encerrada?
— Quantos anos não sei dizer; apenas sei
que ela forrou minha mãe com a obrigação de fazer-lhe os serviços, que hoje
faço, e deixar-me no caso de morte em seu lugar. Para isso deu-nos dinheiro que
chegue para vivermos.
Eugênia ia continuar em suas perguntas
quando Margarida disse-lhe que em vez de irem mais longe deviam voltar para
casa, pois se prolongassem por mais tempo a sua ausência poderiam causar
cuidados a seu pai e mesmo que tinha precisão de falar-lhe relativamente ao que
lhe dissera a feiticeira.
Durante a ausência de Eugênia foi
Peniche à casa do Sr. Antunes e pediu-lhe (conforme prometera a seu filho) a
mão de Eugênia para Alberto; com a diferença porém que mostrou a Antunes o
desejo de saber se sua filha possuía algum dote, com que seu filho pudesse
entrar de sócio na casa de que era guarda-livros; pois que, apesar de ser-lhe
sumamente agradável a união de seu filho com um moça como Eugênia, desaprovava
que ele quisesse fundar uma família contando unicamente com a boa vontade que
tinha de trabalhar e seu emprego.
Antunes declarou a Peniche, com toda a
sinceridade, que o dote de Eugênia era o pouco saber que se esforçava por
dar-lhes e suas virtudes.
Peniche retirou-se manifestando a
Antunes o seu sincero pesar pela não possibilidade dessa união, visto a falta
de meios que ambos tinham.
Chegando à casa disse Alberto, que
ansioso o esperava, que tratasse de desvanecer esse amor, porque, visto ter só
o seu emprego e ela não possuir dote com que pudesse sustentar convenientemente
o estado de casado e ter pão para seus filhos, não se podiam efetuar. Disse-lhe
mais que em vista das circunstâncias que malogravam esse casamento lembrara-se
de ir pedir para ele a mão de uma sobrinha de seu amo, que sabia ser órfã e ter
algum dinheiro.
Alberto quis provar a seu pai que
suprira a falta de meios pelo seu trabalho, mas Peniche foi inabalável, e
convenceu a seu filho que todo homem deve antes de casar obter honradamente os
meios de subsistência da família que vai fundar, a menos que não case com uma
moça que tenha alguma coisa com que possa contar para principiar o edifício
doméstico.
O moço porém, cujo coração só falava por
Eugênia, pediu a seu pai seis meses para pensar, antes de renunciar à grata
esperança de casar-se com o objeto de seu primeiro amor, esperando que durante
esse tempo lembrar-lhe-ia um meio de sair da dificuldade em que se achava.
O velho concedeu-lhos, e retomaram a
vida como dantes.
Quando Eugênia chegou à casa já o velho
Peniche havia saído. Ao entrar abraçou seu pai e disse-lhe:
— Não sabe? Margarida traz um recado da
feiticeira para vossemecê!
— Para mim? disse ele voltando-se para
Margarida.
— Para vossemecê, não Senhor; mas eu é
que tenho de contar-lhe o que entre mim e ela hoje se passou.
— Escolheste-me para ser teu confidente?
Pois bem, dize lá o que houve.
Margarida começou então a contar-lhe
porque modo e desde quando estava ao serviço da feiticeira, conforme já contara
a Eugênia; e disse-lhe mais que o primeiro dia em que lhe ouvira a voz fora
esse.
— E que te disse ela? Perguntou-lhe
Antunes.
— Disse-me que queria dar uma caixinha
para guardar a uma moça pobre deste lugar, mas como não conhecia ninguém
pediu-me que lhe indicasse uma. Fiquei de levar-lhe a resposta, e lembrei-me de
que nhanhã está no caso de ter com a caixinha da feiticeira; mas embora
estivesse com ela perto da casa não a fiz entrar sem primeiro vir pedir a meu
senhor se consente que eu a leve para falar com ela.
— Ah! meu pai! exclamou a moça, eu tenho
medo daquela mulher, não me force a ir falar-lhe, pode fazer-me algum feitiço;
é feiticeira!
— Nhanhã, retorquiu a preta, ela não é
feiticeira; esse nome que lhe dão é porque vive retirada e misteriosamente.
— Minha filha, disse por sua vez
Antunes, nada nos autoriza a termos por feiticeira a pessoa de que se trata,
pois não temos dado algum para isso além da reclusão em que vive, e da voz
publica que tudo explica a seu modo, porque não quer admitir que haja um enigma
que ela não decifre.
— Mas pai, apesar disso eu tenho medo.
— Pois fazes mal, Eugênia, porque ele é
infundado e irrefletido. Pensa um pouco e vê que se ela fosse realmente
feiticeira, e quisesse fazer-te mal, não precisaria socorrer-se do auxílio de
Margarida para esse fim, pois ser-lhe-ia uma testemunha inútil do mal que ela
fizesse. O medo irrefletido, minha filha, depõe sempre contra o bom senso da
pessoa que o tem. Quem sabe se não é alguma infeliz, que fatigada da longa
reclusão em que vive precise derramar as suas magoas para sentir alivio, e
tomou então este pretexto.
— Mas por que dará ela preferência a uma
moça pobre em vez de uma rica? perguntou Eugênia.
— Oh! minha filha, disse Antunes, isso é
tão claro como a luz do meio-dia. Pois não vês que ela teme o escárnio da rica
e conta com a benevolência da pobre que não irá chasquear de seu triste
alvergue?
— Tens razão, meu pai, eu vou.
— Vai, minha filha, que talvez ela
precise de teus cuidados. Recebe primeiro a minha benção e sabe que fico
orgulhoso de ti quando te vejo ceder à razão. Nisto, como em outras coisas
mais, espero que serás uma brilhante exceção do teu sexo, que faz
extraordinariamente alarde de sua irrefletida obstinação, sem querer, nem saber
a razão da sua teima. Oh! se tua falecida mãe houvesse sido educada como eu te
educo; digo, se tivesse um a educação razoável, como houvéramos sido felizes!
mas infelizmente havia sido criada como o geral das moças o são. Paciência, ao
menos tu, minha Eugênia, se casares, tenho orgulho de esperar que serás o
tesouro da família.
Partiu Eugênia com Margarida e pensou em
todo o caminho no que seu pai acabava de dizer-lhe, sem que pudesse compreender
o sentido de suas últimas palavras. Parecia-lhe como a quase todas as moças
parece, que para ser feliz no casamento bastava-lhe ser bonita ter a cintura
delgada, as mãos finas, com unhas bem compridas, à guisa de garras, ser
indiferente aos interesses do casal, entendendo que só ao marido cumpria
zelá-los; obstinada por sistema e um pouco vaidosa.
A vaidade, segundo ela cria, dava um
certo realce às moças; e apesar da constante condenação que seu pai fazia desse
defeito, ainda não pudera conseguir emendá-la desse único senão que tinha;
No meio dessas reflexões chegaram à casa
da feiticeira, que as veio receber com semblante melancólico, mas agradecido
pela aquiescência a seu pedido.
— Entrai, minha filha, lhe disse ela;
entra também, Margarida. Podes deixar a porta aberta sem receio de que alguém
aqui se introduza, pois todos se temem de mim.
A mobília da casa constava de uma mesa,
uma cadeira, uma cama e um crucifixo em frente de um genuflexório, que pelo
grande uso que tinha denunciava o grau de religiosidade da dona.
— Minha filha, disse novamente a
feiticeira mal fez Eugênia sentar-se na única cadeira que possuía, vossas
feições denotam medo; tranquilizai-vos; e estai segura de que eu não faço mal a
ninguém desde que a graça de Deus me fez sentir o remorso de meu antigo
procedimento. Eu não sou feiticeira, como sei que me chamam; o meu nome é
Helena de Aguiar, outrora conhecida por vaidosa, que bem o merecia; e é por não
tê-la sido que por tão longos anos me encerrei neste misero alvergue, onde
tenho expiado com usura todos os males que causou a minha vaidade.
À medida que Helena falava, que assim
chamaremos doravante a feiticeira, visto que já lhe sabemos do nome, ia
tranquilizando-se o coração de Eugênia, e parecia-lhe que ela ia-se tornando
menos feia à medida que lhe ia renascendo a confiança e a certeza de que sairia
dali incólume, podendo-a justificar da injusta acusação que lhe faziam.
As exprobrações que Helena fazia a si
mesma eram ininteligíveis para Eugênia. Bem depressa porém as compreendeu vendo
Helena chegar-se a um armário que estava embutido na parede e que não vira ao
entrar pelo custo que dela apossara ao transpor o limiar, e tirar dele uma
caixinha de madeira com uma chave que depositou em suas mãos, dizendo-lhe:
— Tomai esta caixinha, eu vo-la dou; com
a única condição de não a abrirdes antes que vos conste a minha morte, que não
poderá tardar, pois sinto que ela chega a passos largos. Oh! venha ela
aliviar-me do peso da existência que me esmaga. Tenho sofrido assaz! disse ela
ajoelhando-se aos pés do Redentor, e esquecida da presença de Eugênia, que
instintivamente também ajoelhara como ela. Perdão! perdão! minha mãe, de todas
as dores que vos causou a minha vaidade. Meu voluntário castigo e a boa ação
que hoje pratico sirva de alivio às minhas penas. Oh! minha pobre mãe, exclamou
de novo escondendo o rosto entre as descarnadas mãos.
Assim esteve por algum tempo, e depois
como que acordando de um sonho levantou-se, olhou quase desvairada para Eugênia
e disse-lhe:
— Ainda estáveis aqui? Vistes a minha
dor? Ide, ide-vos embora, levai a caixinha, abri-a depois da minha morte e
achareis nela a narração de minha vida, que eu não tenho a coragem de
fazer-vos, pois morreria de vergonha; quero morrer com a certeza de que só
depois de minha morte saberão das culpas que a vaidade me fez cometer. Ide; e
prometei-me que enquanto um sopro de vida me alentar a ninguém direis o que a
pouco vistes.
— Prometo, disse Eugênia, com voz
tremula de emoção; mas vós sofreis muito, e eu não vos posso deixar só, quero
fazer-vos companhia e consolar-vos se eu souber; meu pai não se há de opor ao
meu desejo.
— Não! não! exclamou Helena, eu não
mereço que se compadeçam de mim, porque eu nunca me compadeci das lágrimas que
fiz derramar à minha desditosa mãe; devo morrer abandonada assim como a
abandonei. Ide; e deixai-me só com o Redentor do mundo a quem pedirei até o meu
último suspiro que nos livre da vaidade.
Dizendo isto Helena empurrou Eugênia
para a porta, onde tinha ido sentar-se com Margarida enquanto elas falavam,
abençoou a moça e sem dar lhe tempo para responder-lhe puxou a porta para si e
ficou tudo no habitual silencio.
Eugênia ficara tão comovida com o que
acabava de presenciar, e tão alto lhe dizia seu extremoso coração que se ela
pudesse decidir Helena a receber por vezes sua visita tornar-lhe-ia a vida mais
amena, que quis bater para que se lhe abrisse a porta que acabava de fechar-se;
mas opôs-se a isso Margarida dizendo-lhe que seria inútil tal intento, porque
Helena mais facilmente deixaria arrombar do que abrir a quem batesse.
Foi por todo o caminho refletindo no que
acabava de ouvir e dizendo consigo mesma: que mal pode causar a mim ou aos
outros a vaidade que tanto me recomendam de não ter: ela diz que há neste cofre
a explicação de coisas que não teria animo de dizer-me, nem a coragem de que se
soubesse em sua vida, e que por isso me pedia de abri-lo só quando constasse a
sua morte.
Chegando a casa referiu a seu pai tudo o
que acabava de passar-se ocultando-lhe porém a recomendação que lhe fizera
Helena de não ser vaidosa, para não ouvir de seu pai o costumado sermão.
— Pobre senhora! exclamou Antunes, se
teve culpas tem sido assaz castigada. Guarda a caixinha, minha filha, e sê fiel
ao que prometeste, pois é coisa sagrada uma promessa. Pede a Deus em tuas orações
que se amerceie da pobre Helena, e esperemos pela explicação do enigma até
depois de sua morte.
Margarida ao saber que a caixinha só
encerrava revelações acerca da vida de Helena exclamou:
— Então é só isso: ora não valia a pena
que eu levasse nhanhã Eugênia para lá por tão pouca coisa; quando eu me lembrei
dela foi porque supus que a feiticeira lhe quisesse dar muito dinheiro para o
seu dote.
— Cala-te, Margarida, lhe disse Antunes,
não inspire à minha filha sentimentos de interesse; folgo mais que este cofre
só contenha a explicação da vida daquela pobre senhora, que pode talvez conter
proveitosas lições para Eugênia, do que se contivesse milhões, que serviriam
para desenvolver ainda mais nesta menina as tendências que tem para a vaidade.
A
vaidade! e sempre a vaidade! pensou Eugênia; parece que todos sabem que eu sou
vaidosa! Considerando-me um pouco mais linda e instruída do que as outras não
faço mal a ninguém, nem sei que o posa fazer esse sentimento que todos chamam
defeito.
Eugênia incumbiu a Margarida de inquirir
diariamente, em seu nome, da saúde de Helena.
Logo da primeira vez que a preta
desempenhou essa comissão foi-lhe respondido por Helena que agradecia muito à
menina que por ela se interessava, mas que lhe pedia de considerá-la como
morta, pois tinha cortado com o mundo toda e qualquer relação.
A vista dessa resposta deixou Eugênia de
inquirir notícias desse ente que a desgraça lhe tornara caro, e dali em diante
só soube que Helena ainda existia porque Margarida fazia-lhe diariamente os
serviços do costume.
No próximo domingo soube Eugênia por
Alberto, que fora pedir em casamento a seu pari, no dia em que ele a não
acompanhará ao passeio, e que ele dera o seu consentimento, mas que Bento
Peniche (seu pai), ao saber que ela nada possuía, negará o seu.
Eugênia chorou muito, e lastimou que as
suas virtudes não fossem moedas assaz agradáveis aos frios cálculos do pai de
Alberto.
Nem por um momento lhes veio à ideia de
casarem-se a despeito da vontade paterna, pois a educação que ambos haviam
recebido lhes ensinara que nenhuma união é feliz debaixo de tais auspícios.
Percebendo Antunes que sua filha
definhava inquiriu a causa desse mal oculto; ela, que nada sabia esconder a seu
pai, confessou-lhe que sabia do pedido que lhe fora feito de sua mão e da não
possibilidade desse consorcio pela oposição do pai de Alberto.
— Minha filha, disse Antunes abraçando
Eugênia, consola-te; eu também lastimo não ter Alberto por meu filho, mas espera;
se ele te amar verdadeiramente procurara melhorar honestamente a sua posição e
ter os meios suficientes para fundar uma família.
— Mas, meu pai, disse Eugênia, ele é
trabalhador, e eu graças aos seus paternais conselhos acho-me com algumas
habilitações. Aplicando ambos a nossa boa vontade creio que poderemos viver.
— Sim, minha filha, enquanto fordes dois,
mas quando vierem os filhos onde acharás o tempo preciso para trabalhares? E
logo que o auxílio de teu trabalho falte não diminuirá a receita: e os filhos
não farão aumentar a despesa? E quando eles te pedirem pão e o não tiveres para
dar-lho, nutri-los-ás com as poéticas razões que me apresentas hoje para a
realização do teu desejo?
— Não! não! meu pai, já me não queixo!
que quadro pintou-me agora! uma mãe sem pão para seus filhos?! eu morreria de
dor se tal coisa me viesse a acontecer, lembrando que fora a minha irreflexão a
causa dessa desgraça. Eu saberei esperar, amando Alberto, e se Deus não
permitir que nos casemos saberei resignar-me com a lembrança do que acaba de
dizer-me.
— Estou feliz, minha filha, disse
Antunes chorando de prazer; não apelei debalde para teu belo coração e teu bom
senso. Verás no futuro quanto é justo o orgulho que eu tenho de ti e quanta
razão tinha Mme. de Sirey quando dizia que é pelo sacrifício que a alma se eleva e purifica.
Eugênia e Alberto continuaram a amar-se
como dantes: aquela resignando-se e apelando para o futuro, e este fazendo-lhe
mil protestos de que adquiriria à força de trabalho os meios que ora lhes
faltavam para fazê-los felizes.
Decorrerão semanas e meses, durante os
quais não se passou uma noite sem que Eugênia não pedisse a Deus, em suas
orações, pela pobre Helena; até que um dia ao amanhecer, depois de uma
procelosa noite veio a Margarida dizer-lhe que aquela a que todos chamavam de
feiticeira fora encontrada morta nas ruínas de sua própria casa, que desabara
durante a tempestade da noite.
— Coitada! exclamou a moça, ninguém a
socorreu.
Pôs-se a chorar e pediu ao pai, que
igualmente lamentava o triste fim que tivera essa desgraçada, que fizesse o
enterro dessa infeliz; ao que de bom grado se prestou Antunes, apesar da
exiguidade de seus meios.
Eugênia espargiu saudades sobre a campa
de Helena de Aguiar, e teve por muito tempo um sincero pesar dessa desastrosa
morte.
Alberto também vivia triste; mas diverso
era o motivo. Poucos dias faltavam para expirar o prazo que pedira a seu pai
para resolver-se a abandonar a esperança de casar-se com Eugênia, e ainda não
descobrira um argumento assaz conveniente para apresentar-lhe e convencê-lo de
que sendo ambos trabalhadores nenhum inconveniente havia em que se casassem,
embora ela não tivesse dote nem ele uma posição formada.
Já pensava em pedir uma nova prorrogação
de prazo, quando um dia entrou radiante de alegria em casa de seu pai
dizendo-lhe:
— Vou ser muito feliz de hoje em diante,
já que vossemecê acha que só havendo dinheiro pode haver felicidade no
casamento, vou casar-me com uma moça rica!
— Eu não disse que só há felicidade
quando há dinheiro, o que se pode entender como riqueza; o que eu disse é que
ela não pode existir sem pão. Mas conta-me então; sempre consentes em casar-te
com a sobrinha de teu amo, no caso que eu e ela queiram, não é assim?
— Não, senhor, caso-me com Eugênia
Antunes.
— Com Eugênia Antunes?! disse Peniche
irado, não sabes que me oponho a esse casamento porque é o de dois pobres: foi
para me repetires a mesma coisa que me pediste seis meses de espera?
— Não, senhor, replicou Alberto, digo
que me caso com Eugênia Antunes porque acaba de desaparecer o único obstáculo
que se opunha à realização de meu mais ardente desejo; pois como vossemecê mesmo
reconhece possui Eugênia qualidades difíceis de encontrar, e é de hoje senhora
de uma grande fortuna.
— Como assim? Donde lhe veio esse
dinheiro?
— Veio-lhe de Helena de Aguiar que todas
chamavam — a feiticeira —, mas que o não era e que a constituiu sua única e
universal herdeira.
— Como soubeste disso?
— É voz pública em S. Gonçalo.
— Pois bem, hei de indagar até que ponto
isso é verdade, e se me provarem que é licita a obtenção desse dinheiro não
oporei mais à tua união.
Dirigiu-se Peniche à casa de Antunes e
disse-lhe:
— Senhor, acabo de saber que o único
obstáculo que me aconselhava de obstar o casamento de meu filho com a vossa
linda Eugênia, apesar das raras qualidades que lhe reconheço, acaba de
desaparecer e que a sorte a favoreceu. Se me quiserdes explicar a procedência
dessa fortuna, se ela for licita e por vossa vez não vos opuserdes, hoje que
vossa filha é rica, em que ela se case com o meu Alberto, que ainda não quis
pedir a mão de outra, apesar das minhas instancia, folgarei muito em que se
efetue esta união; pois reconheço a dificuldade que teria meu filho em
encontrar uma moça tão completa, apesar de um pouco vaidosa.
— Ah! meu caro Sr. Peniche, exclamou
Antunes, minha filha já não tem esse defeito, porque viu suas funestas
consequências.
Explicou tudo o que se passara entre sua
filha e Helena de Aguiar. Contou-lhe mais que muito tempo depois da morte desta
é que Margarida lhe lembrara de abrir a caixinha que fora confiada, e que
achara dentro dela um manuscrito contando todas a s desgraças provenientes da
vaidade de Helena e os tormentos por que passara sua pobre mãe, que morrera
vítima da vaidade de sua filha.
— No fim dessa autobiografia, disse
Antunes, haviam calorosas recomendações, para quem lesse, de expiar de si toda
e qualquer vaidade como fonte maléfica de todo o gênero de males.
Disse que Eugênia ao ler a descrição dos
nocivos efeitos desse sentimento que sentia em si, mas que julgara sempre
inocente, jurou perante a imagem do Senhor emendar-se desse defeito, e que na
verdade o conseguira.
Quanto à riqueza, mostrou-lhe uma carta,
que encontrara igualmente na caixinha, em que vinha indicado que no quintal da
casa em que vivia Margarida existia uma palmeira ao pé da qual, quem lesse essa
carta, acharia enterrada uma talha, contendo ouro amoedado no valor de
quatrocentos contos, de que podia legitimamente apossar-se; com a única
obrigação de velar sempre sobre a preta Margarida.
A carta dizia mais que a explicação de
viver em tão triste alvergue possuindo ainda uma tão avultada soma era o
castigo voluntário que se impusera, por ter causado pela vaidade de seu ouro e
beleza todos os males que havia narrado em seu manuscrito.
Conhecida a legitimidade dessa aquisição
consentiu Peniche no casamento de seu filho com Eugênia Antunes. O pai desta,
que lamentara internamente não ver sua filha unida a um moço como Alberto pela
falta de meios de ambos, deu também o seu consentimento, e dali a um mês
casava-se esse ditoso par na igreja de São Francisco de Paula cercado de
numerosos convidados, e coberto com as bênçãos de seus pais, que choravam de
alegria.
---
Jornal das Famílias, fevereiro de 1868.
Jornal das Famílias, fevereiro de 1868.
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