6/06/2019

Mors amor (Conto), de João Grave



Mors amor

A criança que toda a santa manhã andara brincando, contente como uma ave que um dourado sol de primavera acordasse entre as ramarias em flor, ao alvorecer da luz, entrara em casa com as faces escarlates e os olhos rutilantes de febre, murmurando na sua débil voz infantil:

— Mamã, dói-me muito...

E apontava para a cabeça com os dedinhos trêmulos.

Maria Eduarda, inquieta, tomou-a nos braços, pegou-lhe ao colo, amimou-a com palavras que o temor sobressaltava. Pousando-lhe a mão sobre a testa, assustou-se. A pele ressequida do doente escaldava.

— É aqui que te dói, meu filho? — preguntou.

— É!... — gemeu o enfermo.

As suas pálpebras cerravam-se, pesadas de sonolência, e o rubor das faces aumentava. Respirava com esforço, agitadamente.

— Andaste ao calor, não é verdade?

— Andei...

— Não é nada, não é nada. Amanhã estarás melhor. Agora, vais para a cama...

Com infinitos cuidados, fazendo mais leves os seus dedos para não magoar a carninha tenra do filho, Maria Eduarda despiu-o docemente e foi deitá-lo. Sobre a alvura do travesseiro espalhou-se uma nuvem de cabelos louros e anelados que enquadravam a fronte angélica do pequenino, destacando-se vivamente na brancura da roupa. A frescura dos lençóis pareceu reanimá-lo um momento, porque, fitando o olhar na mãe, teve um ligeiro sorriso dolorido.

— Estás assim mais sossegadinho, amor?

— Estou. Mas não se vá embora, não saia do quarto. Tenho medo...

— Descansa, vá. Não te deixo só — prometeu ela, afagando-lhe os cabelos e beijando- o longamente no rosto.

Chamou a criada, mandou procurar um médico a toda a pressa, porque a respiração do enfermo cada vez se tornava mais ofegante, como se um grande peso lhe esmagasse o peito. Depois, colocando uma cadeira perto da cabeceira do leito, sentou-se. Tinha fechado a janela que dava para o quintal, para que a crueza da claridade não ferisse a vista da criança, sofredora o paciente. No compartimento espalhava-se uma penumbra veludosa que exagerava, alongava as linhas dos móveis. Numa jarra de vidro azul, diante da imagem da Virgem, morriam violetas que vagamente perfumavam o ambiente...

Com a face inclinada na palma da mão, Maria Eduarda meditava, enquanto ia esperando pelo médico. Envolvia constantemente o pequeno num olhar de afeto e de indizível compaixão e mentalmente pensava na injustiça de um Deus que fazia sofrer os sores virginais, limpos de toda a culpa e que a vida não tivera ainda tempo de macular dos seus males inevitáveis, dos seus vícios impuros, dos seus crimes.

— Antes fosse eu a padecer, meu Deus, que sou mais forte e tenho mais pecados — monologava ela, com as lágrimas caindo, redondas e brilhantes, pela cara macerada.

De fora, da rua, chegavam aos seus ouvidos rumores de conversas, o estrépito dos carros que passavam a galope nas calçadas, o canto idílico dos pássaros escondidos na folhagem dos arvoredos, enquanto a tarde melancolicamente descia: — e todos estes ruídos se escoavam com brandura sem que Maria Eduarda lhes ligasse a menor atenção. Que lhe importavam as manifestações ruidosas da existência descuidada e feliz que transbordava ao ar livre? O seu interesse supremo confinava-se totalmente no estreito espaço marcado por quatro paredes, onde havia um leito inocente e sobre ele um corpinho frágil, torturado pela dor, corpo que ela gerara no seu ventre, que alimentou com o branco leite imaculado dos seus seios e em que punha a sua maior ilusão de mulher desgraçada e o seu admirável orgulho de mãe!

— Ah! Se ele morresse, justos céus, se ele morresse!... — murmurava Maria Eduarda, enclavinhando as mãos com desespero.

De novo se curvava, brandamente, sobre o travesseiro, beijando o filho com infinita suavidade. A confiança apaziguava-se. Não morreria, decerto, não podia crer em tamanha crueldade. Bastante havia padecido já, em seis anos de casada, resignando-se às maiores humilhações, devorando em silêncio a angústia do seu abandono, curtindo as maiores amarguras, sem se queixar contra a tristeza dum destino que não merecia. Deus restituiria ao seu amor, à sua purificada veneração materna, já sarado e vigoroso, aquele pobre filho que, poucas horas antes, enchia a casa inteira da música inefável do seu riso infantil...

O doente fez um movimento, descerrou as pálpebras, fitando a mãe com um olhar vítreo... — Ainda te dói, amor? — inquiriu ela com solicitude.

— Dói-me muito! — sussurrou debilmente o enfermo.

A criada abriu mansamente a porta do quarto, aproximando-se de Maria Eduarda na ponta dos pés, e disse:

— Minha senhora, o médico está lá em baixo.

— Mande-o subir, imediatamente.

Levantou-se sem lazer barulho, foi ela mesmo esperar o homem providencial de quem talvez dependesse a saúde, a salvação de seu filho pequenino: mas o doente, pressentindo-lhe os movimentos, outra vez pediu:

— Não fuja, mamã... Venha para aqui. Tenho medo!...

— Espera um pouco, amorzinho. Volto já... O médico entrou, pousando o chapéu e a bengala sobre uma cadeira, fora do quarto, tomou o pulso da criança, arregaçou-lhe as pálpebras, observou-o demoradamente e esboçou um imperceptível gesto de desalento.

— É grave a enfermidade, senhor doutor? — preguntou Maria Eduarda.

— Tem alguma gravidade, minha senhora.

— Mas, está tudo perdido? — acudiu ela, com um soluço mal reprimido e agarrando-lhe nervosamente o braço.

O médico teve piedade da mãe desditosa, hesitou na resposta, procurou tranquilizá-la.

— Tudo perdido, ainda não... Nesta idade, os organismos possuem um enorme poder de resistência... Enquanto vivem, resta sempre uma
ilusão... Tenha coragem!

Pediu papel, receitou, deu instruções acerca da maneira de aplicar os medicamentos e ordenou que, se os sintomas do mal se agravassem,
o fossem chamar sem demora. Maria Eduarda escutava-o, retendo a custo as lágrimas.

— Não chore! — murmurou o clínico. Por enquanto, não há razão para isso... Não desespere!

— Que há de fazer uma desditosa mãe, senão chorar, senhor doutor?

— Mas, se eu lhe digo que confie!...

Despediu-se rapidamente, pegou no chapéu e na bengala, desceu as escadas e saiu, enquanto Maria Eduarda, depois de ter mandado a criada a uma farmácia, voltou a sentar-se junto do leito do filho, aconchegando-lhe a roupa à volta do corpo e acariciando-o.

— Mama, quem era aquele homem? — interrogou o doente.

— Um nosso amigo, filhinho. Veio a nossa casa, para fazer-te bem.

— Tenho medo, tenho medo...

— Medo de quê? Estou perto de ti, vês? Dá cá a tua mão... Assim!... Agora, ninguém virá. Dorme um bocadinho, para melhorares.

Sorrindo doloridamente, com a sua mãozinha, que queimava, entre as da mãe amorosa, a criança fechou os olhos para dormir. Um suor glacial porejava-lhe da fronte; a respiração era sibilante...

Baixavam apressadamente as sombras noturnas. Já pelas ruas se acendiam os candeeiros de iluminação pública. O ruído exterior afrouxava. Então, Maria Eduarda, com os olhos rasos de água e a descrença na alma, começou a evocar o seu infortúnio, que parecia não ter fim. O passado iluminava-se subitamente na sua memória, numa rápida sucessão de quadros. Lembrava-se dos menores detalhes da sua vida, da confiança e da simpatia com que fora levada para Vicente, por um ardente e sincero impulso de amor, da doçura, da felicidade indizível dos seus primeiros anos de casada. Em saborosos meses, que tão ligeiramente deslizaram e que atrás de si apenas deixaram a saudade, vivera toda a ventura — uma ventura que chegou a julgar perpétua e que tão rudemente havia de mentir-lhe. O filho, Luís, nascera dois anos depois do seu casamento e foi como se no seu lar sereno e florido se erguesse uma aurora! Ainda agora via, numa aleluia de esplendor, Vicente dobrar-se sobre o berço em que o pequenino vagia, agitando os bracinhos rosados, para pousar-lhe um beijo doce na face, que era gorda e que se vincava em covas, quando ele sorria! Considerou Maria Eduarda que aquele fraco ser teria a força necessária para prender para sempre o marido à esposa e que enlearia o amor de ambos em tão estreitos laços que ninguém seria capaz de os desatar. Entre uma adoração que parecia indestrutível, desabrochara a graça, o encanto, a ternura, a beleza de uma flor pura!... Sonhos vãos...

Maria Eduarda foi interrompida nas suas divagações pela criada, que regressava com os medicamentos receitados pelo médico. Despertou o filho, que acordou alvoroçado e dizendo, no delírio da febre, palavras sem nexo, o que a alarmou. Fê-lo tomar uma colher de remédio. O doente insurgia-se, mas ela, meigamente, venceu a sua teimosia.

— É para sarares e voltares aos teus arcos, aos teus cavalos, aos teus soldados de chumbo, meu amorzinho.

A noite fechara-se completamente. Sob um céu profundo e cheio de estrelas, que dardejavam, a cidade dormia, mergulhada em sombras densas. Maria fechou o bico de gás, acendeu um candeeiro com abajur verde, embrulhou--se num xale de lã e foi estender-se num canapé estofado que mandara pôr à beira da cama do enfermo. A solidão pesou então mais duramente à sua roda. Enquanto em tantas outras vivendas a infância dormiria um sono inalterável e pacífico, velada pelas aparições siderais, o seu pobre filho, contentamento único de lancinantes desventuras, padecia amargamente, sem que ela pudesse suavizar-lhe o padecimento. Mãe de Misericórdia! Como a sorte, era áspera para certas criaturas! E por que, por quê? Nunca fizera mal a ninguém, socorria as mãos trêmulas dos mendigos que batiam à sua porta donde a alegria fugira, devotara-se aos outros, fora uma sacrificada que se não insurgira contra os sacrifícios, tornara, na desdita, mais funda e perfeita a sua crença religiosa. Tudo inutilmente! No seu caminho só encontrara a desilusão, o sofrimento, o abandono. Àquela hora adiantada e solitária da noite, seu próprio marido folgaria com a amante, por quem a trocara, não porque fosse mais amado, mas pela sedução duma formosura que a sua perdera, queimada pelo fogo das lágrimas.

— Mamã, tenho medo! — gemera Luís, revolvendo a cabeça sobre o travesseiro.

Maria passou-lhe levemente a mão pela face, ameigando -o e murmurando:

— Sossega, meu amor, sossega!... Novamente, quando o pequenino recaiu na sua sonolência, Maria Eduarda recordou vários episódios da sua vida extinta — uma vida que ia já muito longe e de que ainda conservava uma lembrança grata como um perfume... Vicente começara a ser menos terno com ela justamente meses depois do nascimento do filho. Entrava em casa a desoras, preocupado, respondendo com irritação às suas preguntas, falando-lhe com enfado ou desabridamente, repelindo o seu afeto com tédio. Se ela lhe fazia alguma observação ou formulava uma vaga queixa, exasperava-se, praticava desatinos ou ria-se sarcástica mente. Uma vez dissera-lhe, mesmo, que se não estava bem, era pela porta que se saía para a rua. Apesar disso, Maria Eduarda suportava-o, procurando o desafogo no pranto; e, estreitando o filho nos braços, exclamava:

— Só te tenho a ti neste mundo, meu amor! Por fim, Vicente abandonou definitivamente o lar, indo viver com a amante, uma costureira que seduzira e que instalara numa vivenda próxima, com elegância e luxo. A Maria Eduarda enviava mensalmente uma pequena mesada que ela aceitava, porque seu pai, um modesto empregado público, não lhe legara qualquer fortuna, ao morrer. Daí em diante, todo o seu amor, todo o seu sentimento afetivo, todo o seu espírito de devoção, se concentraram nesse filho que era o seu enlevo, a sua companhia, o seu futuro. E agora, esse mesmo filho, por quem ela daria o sangue das veias, a luz dos olhos sem um minuto de hesitação, parecia querer fugir-lhe também.

— Senhor, Senhor, tem caridade! — soluçava ela angustiadamente.

A noite foi longa e atribulada. Maria Eduarda, que de duas em duas horas, tinha de medicar o doente, não repousou um momento. A claridade matinal veio surpreendê-la pálida, com os cabelos em desalinho e os olhos encovados. Apagou a luz, abriu uma frincha da janela, espreitou Luís que agitava as mãos, inquietamente... Alvoroçada, quis despertá-lo da sua modorra, mas a criança, descerrando as pálpebras, mostrou os olhos revirados.

— Jesus, Jesus! O meu filho morre, Maria Santíssima!...

Os seus gritos alarmaram a habitação, acudindo a criada.

— Vá chamar o médico! Depressa!... E olhe!... Procure também o senhor, na casa em que sabe, e diga-lhe que o menino está a morrer!...

Ajoelhando junto do leito, num choro que a transtornava, implorou:

— Luís, meu filhinho! Não morras! Não morras!...

Mas o doente continuava a agitar as pobres mãozinhas, revirando os olhos e torcendo a boca, sem a ouvir. Quando o médico chegou, Maria Eduarda, correndo para ele, exclamou:

— Salve-o, Sr. Doutor, tenha pena de mim!... Ele afastou-a brandamente, dizendo:

— A meningite! A meningite!... Tremia-lhe uma lágrima ao canto dos olhos.

— Não há nada a fazer, minha senhora. A ciência nada pode contra desígnios mais altos!

A manhã resplandecia. Num céu translúcido brilhava um sol de ouro, com um brilho de luz intensa incidindo sobre um cristal.

— Nada a fazer!... Nada a fazer!... — repetia ela, num alheamento de loucura.

Com efeito, o enfermo, em seguida a uma convulsão mais forte, ficou imobilizado, morto sobre o leito. Em breve a sua fronte se cobriu duma palidez de cera. O médico saíra, desorientado. Enoveladas sobre a roupa da cama, Maria Eduarda e a serva — que tinha voltado — lamentavam-se em altos brados, quando de súbito Vicente, sem gravata, com os cabelos desmanchados, entrou no quarto onde o filho acabara de expirar.

— Luís, Luís! — gritou.

— Morreu agora mesmo! — soluçou Maria Eduarda, apertando nervosamente o pequenino cadáver nos braços. Já não chegaste a tempo de vê-lo com vida...

Vicente, de pé, com uma tremura na face, contemplava a cena dramática. Sentia na garganta uma constrição que o sufocava.

— Estou só, só! — bradou Maria Eduarda — mais só do que os enjeitados... De resto, eu sou também uma enjeitada. Só tu me não enjeitaste, meu amor! — dizia ela agarrada ao filho e cobrindo-o de beijos e de pranto.

Vicente rompeu num fundo choro. Com os olhos enevoados, avançou lentamente para o leito, beijou o morto, e voltando-se para a esposa, como se na sua alma se fizesse, de repente, uma revelação, soluçou:

— Maria, perdoa-me!...


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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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