
No
ano de 1539 vivia em uma terra considerável entre Gand, e Curtrai, a Condessa
de Leerven, viúva, e possuidora de bens imensos. Ela não tinha mais do que uma filha
chamada Adriana, a qual a uma grande beleza ajuntava muito de engraçada. A
natureza a tinha dotado de muito boas qualidades, que uma má educação tinha
corrompido. Seu caráter, ainda que dócil no seu fundo, era firme;
ordinariamente transportado; e algumas vezes extremo. Acostumada a não ser
contradita, nada a podia desviar dos projetos, que uma vez tinha concebido: a
Condessa sua mãe, que a idolatrava, a deixava absolutamente Senhora de suas
vontades.
Um
tão grande partido foi logo procurado por muitas pessoas. Entre o grande número
de seus adoradores, o Barão de Vierkove teve a felicidade de agradar a Adriana.
Ele era de uma figura encantadora, e feita para o amor; sua alma sensível, e
terna, não pôde resistir aos atrativos de Adriana; e como ele devia bem pouco
temer seus rivais, não tardou em ser feliz. O partido era conveniente; por ser
ele também o herdeiro de sua casa. A Condessa aplaudiu a escolha de sua filha,
e estes felizes amantes foram unidos com magnificência, e grande contentamento
de suas respectivas famílias.
Nunca
união alguma deu sinais de ser mais constante. Havia pouco mais ou menos um ano
que eles viviam nesta feliz, e rara inteligência, quando perderão a Condessa de
Leerven.
Depois
de lhe terem feito os últimos deveres, eles foram a Gand, para distraírem a sua
dor. Naquele tempo o Imperador Carlos V vem a Flandres para apaziguar as
perturbações, que ali se tinham levantado por ocasião das novas taxas, que ele
tinha imposto; e ficou algum tempo nesta Cidade, onde fez severamente castigar
os amotinadores.
O
Barão, que tinha a honra de ser particularmente conhecido deste Príncipe, foi
fazer-lhe sua Corte: ele foi de todos os prazeres deste Soberano, e mesmo
algumas vezes fazia partida com ele. Não havia algum concerto, que o Imperador
não fizesse executar por músicos italianos, que trazia consigo. Safira, célebre
Cantarina, tinha tanto de espírito como de talento: ainda moça, divertida, e
espirituosa, bem depressa se apercebeu da impressão, que sua voz, e seus
encantos tinham feito sobre o terno Nierkove; ele esquece-se de suas
protestações à terna Adriana; ele se abandona à sua nova paixão, e só vivia
para Safira. Ele corre a sua casa, lança-se a seus pés, pinta-lhe seu ardor em
termos os mais persuasivos, enche-a de seus donativos: enfim, ouro, diamantes,
festas, tudo foi prodigalizado. Duvida-se bem qual dos dois foi o mais feliz.
Quando se reúnem os talentos, a figura, a fortuna, e o nascimento, pode-se porventura
achar mulheres cruéis, principalmente no estado de Safira?
O
Barão só se ocupava de sua felicidade (se dela se pode gostar, quando
imprudentemente se faz desgraçada uma Esposa digna da mais viva ternura): tal é
a desordem do coração humano, quando ele se entrega a seus desejos, e quando a
razão o abandona.
A
triste Adriana não pôde conceber em seu Esposo uma mudança tão repentina: ela
estava muito bem persuadida de sua infidelidade: as liberalidades do Barão já
se tinham notado, e a sua familiaridade com Safira era pública a toda a Corte.
A desafortunada Baronesa deixou ao tempo o cuidado de fazer tornar a si este
infiel: ela se persuadia que aquilo mesmo que lhe tinha roubado seu esposo,
poderia da mesma sorte restituir-lho. Além disto ela sabia que o único meio de
reganhar um inconstante, era mostrar-se ignorante de sua perfídia, servindo-se somente
de paciência, e de doçura. As repreensões irritam; o silêncio nos condena, e
nos faz entrar em nós mesmos.
Ela
tomou pois este partido; e escreveu ao Barão dizendo-lhe, que se ele tinha negócios
na Corte, ela partia à sua Pátria a tratar de seus interesses; e que lá
esperava notícias suas. Sem lembrança de resposta, ela partiu logo, penetrada
de dor, e desesperação. Ela adorava o Barão: sua inconstância a penetrou
sensivelmente. O retiro em que ela vivia, longe de extinguir seu amor, lhe deu
pelo contrário novas forças. Somente corações sensíveis, que tem experimentado
a mesma sorte que Adriana, podem julgar da grandeza de seus males.
O
Barão, sempre encantado de sua querida Safira, parecia ter-se inteiramente
esquecido de Adriana: ele sobre isto nada falava a seus amigos; e ninguém da
mesma sorte se atrevia a falar-lhe: ele mesmo nunca mais lhe escreveu. Sempre ocupado
de sua amante, não a deixava um só momento. Ele a retirou da comitiva do
Imperador, que tinha partido para Espanha. Ele lhe procurou uma casa toda
abundante; e prazeres sempre novos preveniam continuadamente os desejos da
galante Safira, ambos no meio das delícias julgavam perpétua a sua felicidade!
As
pessoas de honra começaram a murmurar: ainda não era costume, e principalmente
em Flandres, ver-se o escândalo sem desassossego. Quanto estes tempos se tem
mudado! Presentemente se faz consistir nisto mesmo a fidelidade; ninguém se
envergonha de tratar como respeitáveis estas uniões criminosas quando elas são duráveis:
o crime aplaudido goza hoje das vantagens da virtude. A vida pública de
Nierkove, e de Safira indispunha o povo; e disto mesmo eles foram informados. O
Barão para evitar tudo isto, resoluto a ir estabelecer-se em Veneza, desfez-se
de seus contratos, e de suas terras, para fazer transportáveis todos os seus
bens. Adriana, que não ignorava o menor passo de seu marido, não pôde resistir
a este último golpe. Transportada, de furor...
Ingrato,
exclama ela, é este o fruto do amor que em mim tens experimentado. A perda de
teus bens não é o que me aflige: liberaliza-os à tua indigna, e vil Safira,
porém restitui-me o teu coração. Torna a mim querido, e cruel esposo; meu amor
te perdoa... Mas, que digo? O infiel vai partir... Pode ser que ele se aparte
de mim para sempre!... Não, perjuro!... tu não me escaparás, eu saberei
punir-te minha vingança fará tremer, servindo de exemplo àqueles, que como tu,
desprezam a ternura de uma esposa desafortunada... Eu tenho procurado todos os
meios de te recuperar; o tempo, meu silêncio, minhas lágrimas, minha
desesperação, não tem podido abrandar-te... A morte só é... Que digo eu? Ai de
mim!... Sim, sim, cruel, a morte só vai unir-vos.
Adriana
escreveu logo a uma de suas amigas, e lhe pediu em um escrito separado que só
abrisse sua carta, passados oito dias; porque ela continha cousas de ultima importância,
que se deviam ignorar até este tempo... Ela fez logo por grades em todas as
janelas de seu aposento, e pregar nas portas fechaduras ocultas, cujo segredo
só ela conhecia. No mesmo tempo dispôs tudo de sorte que pudesse prosperar o terrível
projeto, que tinha meditado. Quanto é para temer uma mulher justamente
irritada! A desesperação ocupa toda a sua alma; a vingança a mais terrível lhe
parece suave; as maiores extremidades meios ordinários; e sua própria fraqueza
parece dar-lhe todas as forças.
Tudo
assim disposto, ela finge uma doença mortal: de uma mão tremula ela escreve a
seu esposo: Eu morro, e vos perdoo. Eu não vos imputo a minha morte, e
rogo ao céu que vos inspire o arrependimento. Vós recebereis todos os meus bens
da mão de um amigo comum, que deles será o depositário. Eu não choro a vida;
porque nem tenho filhos, nem esposo, ai de mim! que me pertençam. Poucas horas
tenho já de vida; ao menos concedei-me a graça de vos tornar a ver a última
vez. Vivei feliz, eu morro, e vos adoro.
O
desgraçado Barão caiu no laço, que era difícil evitar-se. Ele se persuadiu que
não devia honradamente deixar de ver sua mulher morrendo: este passo lhe pareceu
inocente, e a lembrança do depósito lhe facilitava o meditado projeto de fugir
com Safira. O interesse teve muito mais poder sobre seu coração do que o amor.
Safira, que não podia suspeitar a desgraça de seu amante, o persuadiu a que
desse esta última consolação à Baronesa espirando. Ele parte, e em poucos
momentos ele chega à sua terra. A tristeza, que ele vê espalhada entre toda a família,
moveu sua piedade. Um negro pressentimento se apodera de seu coração, e sem
poder dar conta de seu transporte, ele entra tremendo na Câmara de sua esposa.
As gentes, que à vinda inesperada de Nierkove, tinham ordem de se retirar, os deixam
sós. A furiosa Adriana fecha logo todas as portas. De repente, com os olhos
errantes, ela se levanta, e vai a seu gabinete por fogo, (sem que seu marido
disto se aperceba) a algumas matérias combustíveis, que ela tinha preparado; e
logo torna, e se lança repentinamente sobre seu leito. O Barão aterrado quer
chamar socorro, persuadindo-se que era isto efeito de transporte: porém qual
foi seu espanto quando ele viu de repente toda a casa em fogo. Treme,
perjuro, exclama Adriana, e reconhece uma esposa ultrajada: já que
tu não tens podido viver comigo, ingrato, ao menos poderás morrer. A violência
da chama, que vai a consumir-te, não igualará jamais os fogos, que me tem abrasado
por ti... A estas palavras o fumo lhe tira a respiração: o Barão sobressaltado
debalde procura salvar-se. Bem depressa a chama sai pelas janelas: correm a socorrê-los;
arrombam-se as portas; porém já é tarde: estes esposos se acham prostrados, e
já meios consumidos.
Os
progressos deste incêndio foram tão rápidos, que em pouco tempo todo o edifício
foi reduzido a cinzas. A notícia chegou logo a Gand: assentou-se que este fogo
tinha sido efeito da casualidade; porém a carta que Adriana tinha escrito à Viscondessa
Copens, sua amiga, revelou este horrível mistério. Ela queria sem dúvida deixar
à posteridade um tremendo exemplo da vingança de uma mulher desesperada, e uma imagem
terrível do castigo de um Esposo perjuro, e querido.
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Auto desconhecido (1818)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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