6/06/2019

Singularidades femininas (Conto), de João Grave



Singularidades femininas

Nesse domingo luminoso e inefável, estava eu no campo, a que a primavera havia dado uma beleza nova, tendo surgido por uma doce manhã dourada e espalhando flores por toda a parte, fazendo estremecer as sebes das canções dos ninhos e dos buquês das espinhosas. Por várzeas e pradarias desdobrava ela um longo manto de esmeralda picado de rosas vivas e deixava cair das suas mãos nevados lírios e cachos de junquilhos em cada canto da terra...

No meio-dia de maio todo louro do sol que ascendia num céu infinitamente calmo e puro, fulgia em cada motivo de aguarela um clarão de formosura nova; e os longes de serranias, que eu avistava da janela do meu quarto, esfumavam-se, azulavam-se no horizonte. Já havia miosótis, e as aragens mansas que passavam, sussurrando, vinham carregadas de perfumes e de murmúrios. À volta da minha casa estendiam-se as terras de cultivo, os pomares onde as laranjeiras e os pessegueiros vergavam de florações duma cor de rosa muito fina ou duma brancura imaculada. Nas tiras de morangal, errava já um cheiro de morangos maduros, e perto de um tanque escondido entre desgrenhadas trepadeiras, uma mimosa ramalhava ao vento morno.

Em baixo, na cozinha, crepitava alegremente a fogueira, enquanto as criadas, cantando uma cantiga triste, que falava de naufrágios e de amores malogrados, iam fazendo o almoço, e ao longe, perto dum lago, onde as águas verdes se encrespavam à brisa leve, todo toldado da sombra fresca de faias e choupos, descansavam dois pastores, guardando os rebanhos que pastavam na verde relva da lezíria. Uma paz suave penetrava a alma, e o silêncio era tão profundo, que os mais fugidios ruídos ganhavam na atmosfera lavada e sonora uma grande vibração.

— Ora aqui está um amável refúgio para Horácio compor as suas odes — pensava eu. Se já houvesse uvas, se os cachos pendessem das  ramadas como topázios ou como ametistas, o velho poeta latino encontraria certamente, na placidez deste recanto de aldeia humilde, uma inspiração divina...

As abelhas zumbiam em enxames, pousando nos renques de jasmineiros; escutavam-se os mugidos das manadas nos prados; ressoavam idilicamente as canções perdidas, brandas e saudosas, e uma claridade forte envolvia todas as coisas. A natureza renascia profeticamente, germinavam as sementes e os ramos das árvores estalavam de seivas criadoras.

— E é que tudo isto parece copiado das Geórgicas, de Virgílio! — meditava eu, com um livro de Björnson esquecido sobre os joelhos.

De repente, uma forte campainhada, retinindo, veio quebrar o meu enlevo e uma voz conhecida, entrando na sala, exclamou:

— Sabes? A Maria está doente. Foi ontem mesmo, na varanda, ao cair da noite, quando regava os cravos, que sentiu uma dor no peito... Levaram-na para a cama desfalecida e agora arde em febre!

Quem assim falava era o meu amigo Luís, companheiro antigo, a quem me prendiam tantas recordações e tantas alegrias; e Maria era uma encantadora rapariga que ambos tínhamos conhecido por um verão quente, numa repousada praia de banhos. Era alta, de belas formas severas de mármore grego, de corpo ondulante e nervoso, movendo-se lentamente num passo altivo de deusa.

Os seus cabelos dum tom cendrado, faziam--lhe um nimbo suave à volta da fronte, que mais relevo dava à sua carnação delicada dum branco mate, levemente tocada dum tom de rosa pálida; e o rosto, virginal e meigo, era iluminado por dois olhos imensamente azuis, mas dum azul transparente. Quando nos primeiros alvores da manhã aparecia à beira mar, fresca e sorridente, com um ar de perpétua graça e de perpétua pureza, de boina de veludo negro na cabeça e um botão orvalhado nas rendas do corpete, como era linda! O seu busto modelava-se impecavelmente sobre o fundo de safira do céu e da água — e dir-se-ia ter saído das vagas ou das conchas. Evocava então países longínquos, cidades do norte, terras distantes onde a beleza é uma flor misteriosa. Os rapazes chamavam--lhe miss Afrodite; — miss, talvez, pela alvura incomparável da sua pele, pelo ouro rutilante dos seus cabelos anelados, pelo cravo da sua boca vermelha; Afrodite, sem dúvida, pela rítmica airosidade do seu corpo soberbo, que parecia feito de espumas congeladas!

Durante a estação inteira, ela foi a elegância da praia, resplandecendo na sua esvelteza de Diana. O pescoço delicado, tinha a graça do caule dum lírio emergindo das rendas e das taptistes. Organizava as pescarias, nas noites de lua, com guitarras gemendo e os remadores tisnados do bafo das maresias, os piqueniques ruidosos à sombra de árvores, em pleno campo, sobre os trevos úmidos. Gostava de andar pelas campinas, entre as boiadas que a olhavam com os seus olhos meigos e fundos, rolar-se no feno seco, e regressar à noite a casa, cheirando ao aroma das boninas, ao hálito dos rosmaninhos e das violetas silvestres, que mordiscava com raivas felinas, ou esmagava nos dedos afusados e magros, onde rebrilhavam pedrarias de anéis. Os moços sentimentais faziam-lhe versos, comparando-a ao jasmim do Cabo, à nuvem dourada, à palmeira no deserto dando sombra às caravanas, porque neste ano romântico, ingenuamente pensávamos ainda que os corações se deixavam seduzir pelo calor das estrofes líricas; outros, os concentrados, seguiam-na docilmente, felizes se ela ria para eles; e ainda outros, nos casinos, se Maria dançava, quebrando-se languidamente no rodopio acelerado duma valsa de Strauss, desciam ao restaurante a afogar em vinho do Porto as suas penas, onde não reluzia já ura fugidio fulgor de esperança. Maria era cruel; tinha um jeito especial de receber as efusões ardentes dos seus adoradores, crivando-os de ironias aladas e espirituais.

Com a pontinha do seu sapato de cetim, pisava num desdém os corações e as rosas! Era bela, dessa beleza do norte, quando, na sua cândida voz de cristal e ouro, dizia as sagas escandinavas ou as czardas húngaras, que sempre falavam de noivados, ou as canções irlandesas em que sempre se fala de pastoras tecendo rendas sob os castanheiros ou de pescadores lançando as redes; e uma noite, numa soirée masquée, quando ela apareceu no seu elegante costume de camponesa da Delecarlia, com a flava auréola dos cabelos à volta da fronte, foi saudada com entusiasmo.

Luís, o meu amigo, era um dos apaixonados. Ah! o cuidado que ele punha na sua loilette, a gravata preta ressaltando dentre o colete de fustão branco, a quinzena de alpaca florida na botoeira! Quando conversava com ela, havia no seu modo um acanhamento que me surpreendia e um respeito que me encantava, porque o conhecera, nos tempos do Liceu, estúrdio, palavroso, ligeiro e irreverente. E em muitas horas de descrença, tive de aturá-lo, estirado sobre a minha cama, no cubículo do hotel, chamando a morte, pedindo a morte, admirando a coragem dos suicidas e preguntando-me, com um brilho de loucura nos olhos, se um tiro na fronte seria muito doloroso. Para o sossegar, encharcava-o de sumo de limão e água com açúcar, amesquinhando-o e chamando-lhe colegial idiota. E ainda me lembro muito bem da tarde em que ele, entrando exaltado no meu quarto, me pediu que lhe escrevesse uma carta.

— Mas uma carta com talento, hein? Uma dessas cartas que fulminam...

— Sei! O que tu queres é uma espécie de Cântico dos Cânticos, em que se entoem hinos à amada, em que Maria seja comparada às íbis que atravessam o Nilo num voo alto, à estrela da manhã, à pomba de Israel.

— Não, sóbria, muito sóbria, mas que diga tudo. Por que, sabes? Foi esta manhã, no banho! Dei-lhe cravos rajados, que ela adora...

— E em troca dos cravos, uma carta?...

— Aí estás tu! Olha que esta mulher enche todo o meu destino, absorve-me, tenho-a no pensamento, no coração e no sangue...

— Isso é amor de 1830, um absurdo, uma coisa que já não existe!...

Mas escrevi a carta que ele quis passar à sua esplêndida caligrafia, em papel do Japão, tocado dum hálito de aroma raro. Maria respondeu, com simplicidade. Creio que começou a amá-lo, desde a doce madrugada dos cravos; e oh! mistério do coração humano! volvido um mês, Luís já zombava orgulhosamente, no meu quarto, chamando-me o Secretário dos Amantes, porque, infelizmente, era eu o encarregado da correspondência.

Em outubro, Maria foi para uma quinta no Douro com o pai — um velho de venerandas barbas, que nós conhecíamos pelo nome de Hércules, pelo seu aspecto de atleta e pela maneira como arrastava a bengala, uma clava de grande castão de ouro — e nunca mais a tornei a ver. Com a sua ausência, a praia ficou deserta de graça e de claridade. As andorinhas emigraram em bandos, procurando a suavidade morna das regiões distantes, e eu regressei à cidade, em companhia de Luís que andava triste novamente e que começava a aludir outra vez à morte, como única libertação, mais romântico do que nunca. Enfim, nessa época saudosa, ainda se corriam léguas, nas noites solitárias, ao clarão luzente e pálido do luar, para ir, sob um balcão de trova, colher a flor casta que umas ternas e brancas mãos deixassem cair à poeira das estradas. Os namorados de hoje não podem fazer uma vaga ideia do enlevo íntimo que nós então experimentávamos, por estas pequeninas e queridas futilidades.

Escreviam-se regularmente cartas desvairadas. Maria falava-lhe em goivos, em lágrimas, na solitude das sepulturas; pedia-lhe que a fosse ver à aldeia pobre onde o pai a escondera com um ciúme feroz de que lha roubassem. E Luís, refugiando-se na minha tebaida das chuvadas tremendas, dos penetrantes frios das manhãs, tiritava, de galochas e varino, mordendo o bigode e exclamando:

— Campo, hein? Será uma bela fantasia de poeta, mas eu pertenço às legiões impenitentes da prosa. Lá quando a primavera vier, não digo que não. Mas agora!

Parava, sufocado. As palavras saíam-lhe num confuso tumulto, e nos seus olhos, uns olhos negros e enigmáticos que tanta perturbação lançavam nos corações ingênuos, coriscava uma pontinha de brilho. Depois, continuava, atirando largos passos pelo quarto:

— Não, minha filha, não irei! Eu abomino a campina e as suas relvas porque só de verão costumo ir para os pastos. E, menina, agora não gorjeiam as cotovias logo aos primeiros resplendores da alva, nem os rouxinóis cantam nos canaviais. Não há cenário para um idílio shakespeariano, e eu, meu amor, respeito a verdade histórica, a cor local.

Dizia isto e mentia, o desgraçado, para se aturdir. Tanto assim que um dia em que ela adoeceu, abalou rapidamente, tendo apenas o tempo necessário para se despedir de mim, num abraço melancólico, e para embrulhar colarinhos num jornal velho.

— Como vês, no lirismo pertenço ainda às hostes lacrimosas de 1840! Adeus! — disse-me ele.

Ia evocando estas lembranças antigas nessa gloriosa e consoladora manhã, no meu quarto, com o livro de Björnson abandonado sobre os
joelhos, enquanto Luís, espantado com o meu silêncio, acendia os charutos uns nos outros. Pouco a pouco, a minha indiferença aparente foi-o irritando, e cheio de cólera, arremessando o charuto para o quintal, rugiu:

— Homem, mas tu não me dizes nada? Pois venho confessar-te a minha aflição, vês-me aqui torturado e não tens piedade, nem sequer uma palavra de coragem, caramba!... Olha que está muito doente e não se salva!

— Que queres que eu te diga? É lamentável, sim, magoa-me que essa pobre rapariga parta deste mundo para o funeral romântico dos bichos, para as núpcias das larvas! Aí tens!

— Pelo amor de Deus, deixa essa orgia de estilo. Vê que se trata de duas vidas... Porque eu mato-me. Não resisto!...

— Isso passa. Tudo na vida passa. Eu compreendo a tua dor. Perdê-la, quando o mundo era belo, e tu vogavas a plenas velas no oceano infinito da ilusão!... Oh! Luís!...

Ah! também eu queria esconder o meu sofrimento! Porque havia muito que eu a adorava, em silêncio. Mas o meu amor era sem esperança e nunca ela o saberia. Confesso que cheguei a experimentar uma alegria abominável, por a morte, inesperadamente, se vir meter entre eles ambos, quebrando o fio desse sonho imaterial e inocente. Mas, o arrependimento não tardou; e então, com interesse, preguntei:

— Que queres que eu te fala?

— Anda comigo, vamos vê-la. Ela conhece-te, falou-me de ti, muitas vezes, com simpatia. Ao menos, se tiver de morrer, que vá para a cova
rodeada das afeições dos que tanto lhe quiseram.

— Vamos!

Fomos encontrá-la na larga sala do solar, encostada a fofas almofadas de cetim, com a cabeça loura e luminosa inclinada para a frente, espreitando a luz expirante da tarde que morria. No ar diáfano, que cheirava às rosas de vergel, voavam as pombas. Uma velha parenta tocava, num cravo arrumado, um lânguido minuete do século XVIII, e, na meia tinta do ambiente, parecia que essa música doutora acordava aparições antigas — as donas altivas e aristocráticas, com as faces macias picadas de sinais, dançavam lentamente, arrastando as longas caudas de saias de veludo. Maria parecia sonhar. Corria tão doce o tempo! Já refloriam nos muros da quinta as glicínias roxas, e as fontes tinham um choro mais suave. Ao ouvir-nos, despertou e fitou-nos, sorrindo. A dama velha esqueceu os dedos engelhados e faiscantes de anéis sobre o marfim das teclas. Ouvia-se o chiar das noras, ao fim da horta, regando as plantas.

— Ah! entoo sempre veio? — preguntou ela.

— Soube da doença. Foi Luís quem me informou... — exclamei.

— Este Luís é uma joia — disse Hércules, batendo-lhe uma palmada afetuosa no ombro possante. Mas, não foi nada! Uma leve dor... Não é verdade, filha?

— Sim! Estou restabelecida.

— Graças, minha senhora! Que susto! Este rapaz!...

E Luís rejubilava, conversando com o pai de Maria, que o afastara, para lhe mostrar uma arca portuguesa do século XVII — uma preciosidade. Ora, foi neste momento que ela, volvendo afetuosamente para mim os seus olhos ternos e curvando-se um pouco, murmurou:

— Por que não tem aparecido? Sei que reside agora perto de nós... Venha por aqui!... Quantas saudades!...

E cerrava as pálpebras num delíquio...

— Sabe? — continuava. Lembro-me às vezes tanto dos tempos antigos, dos dias que findaram!

E, como eu, surpreendido e adivinhando uma doce, inefável simpatia nas suas palavras, me conservasse silencioso, interrogou com impaciência:

— Mas, não diz nada?

— Eu, minha senhora... Que afável tempo, não é?

E disse esta banalidade, porque Luís, fugindo à perseguição de Hércules, se aproximava de nós, rindo com aquela sinceridade em que transparecia logo uma leal nobreza de alma.

Recuperando a minha serenidade, arrependi-me da minha fraqueza. Quase que cometia uma traição — e perdi aquele excelente almoço que a Rosália, a minha criada, ia cozinhando enquanto eu lia. Para que saí de casa está manhã?...

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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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