6/10/2019

Uma eleição perdida (Conto), de Conde de Ficalho



Uma eleição perdida

CAPÍTULO 1

— José Duarte — leu alto o Castro, que tinha a cópia do caderno de recenseamento aberta diante de si.

A luz do candeeiro de petróleo, concentrada num círculo nítido pelo abajur de papel verde, iluminava fortemente a mesa, recortava sobre o pano escuro o quadrado branco do caderno, ensebado nos ângulos pelos dedos, e punha toques vivos no tinteiro de latão bem areado, e na calva brilhante do Castro, inclinado sobre as colunas de letrinha miúda. O resto da sala, e as doze ou quinze pessoas, sentadas ao longo das paredes, ficavam numa penumbra vaga, onde de tempo a tempo luziam os pontos rubros dos cigarros, puxados em fumaças longas.

— Quem é esse José Duarte? — perguntou uma voz.

— E o sapateiro da Rua da Fonte.

— Ah! esse falo-lhe eu! é certo, marque-o lá... — disse um velho magro.

— Pudera... se o tem entalado por oito libras que lhe emprestou pelo Natal — observou em voz baixa um rapaz muito pálido de bigode preto, que escrevia na secretária da câmara.

— José Francisco Salgueiro — continuou o Castro.

— Falo-lhe eu — disse um grosso de suíças grisalhas. — Esse também é certo; lavra uma sorte na herdade de meu irmão Antônio, e não há de querer que lhe tirem a terra.

— Arrocho!!... — murmurou o amanuense da câmara, que decididamente tinha ideias subversivas...

— José Francisco Simões — ia continuando o Castro.

— Morreu há mais de dois anos — observou alguém.

— Então está seguro — disse uma voz no fundo da sala.

Duas ou três risadas altas acolheram esta graça um tanto fúnebre; mas o Castro, imperturbável, continuou a ler:

— José Francisco Tavares.

— Esse é todo deles!... é escusado falar-lhe.

— Quem é?

— É o feitor dos Carvalhos do Lendroal.

— Ah! sim, com esse não se faz nada!

— Já cá está uma cruz — disse o Castro; e leu:

-José Francisco Trigueiro.

— O sacristão, fala-lhe ali o nosso prior.

— Por eu lhe falar não seja a dúvida; mas olhem que ele já ma pregou mesmo à última hora na eleição da câmara — respondeu o prior, que se tinha levantado para acender o cigarro sobre o vidro do candeeiro.

O Castro interrompeu-se, enrolando também um cigarro; e um velhinho, já muito quebrado, aproveitou a ocasião para se despedir. Como o dono da casa o acompanhasse, ficaram um instante cá fora, no patamar da escada, enquanto o velho levantava a gola do capote, e puxava sobre as orelhas de pergaminho o barrete de seda preta.

— Vai-se hoje muito cedo, Sr. Cairão — disse o dono da casa amavelmente.

— Nada, não senhor, Sr. João Lopes, são as minhas horas... são as minhas horas respondeu o Cairão.

Prontos já a sair, com o capotinho azul abotoado em cima, e a bengala de castão de prata na mão, o Cairão acrescentou:

— Depois manda-me lá a lista dos eleitores que são meus criados ou meus seareiros.

— Esteja descansado, lá vai tudo em ordem; já disse ao Castro que tirasse a nota. E amanhã vem à estação?

— Vou, vou com toda a certeza. Sempre chega amanhã o nosso candidato?

— Chega amanhã sim senhor! Ainda hoje recebi uma parte confirmando-me a sua chegada. Vem aqui passar estes dois meses por conselho meu. Nós temos elementos poderosos, mas necessitamos congregá-los sem perda de tempo. Eles têm por si a autoridade, não recuam diante de meio algum; e nós devemos dar-lhes uma boa lição.

— Decerto... decerto. O Azevedo vai para a sua casa da Rua do Álamo, segundo ouvi?

— Vai! também por lembrança minha. É a antiga casa da sua família, e faz bom efeito na opinião vê-lo ali estabelecido.

A casa está muito mal preparada, como não pode deixar de estar uma casa desabitada há catorze anos...

— Já há catorze anos, como o tempo passa! — interrompeu o Cairão.

— Catorze anos seguros. Foi logo depois da morte da avó, a D. Margarida, que o rapaz partiu para Lisboa na companhia do tio, e que fecharam a casa... assim está ela! Mas enfim eu mandei-lhe fazer uns arranjos, tomei-lhe os criados, e o Dr. Azevedo não fica mal. Tinha-o hospedado aqui em minha casa com muitíssimo prazer; mas faz melhor efeito que vá para a sua própria casa, sendo, como é, um dos principais proprietários da localidade. Nestas coisas é necessário atender muito ao efeito.

— Decerto... decerto — disse o Cairão despedindo-se.

E desceu a escada, encostado ao corrimão, chamando o moço, que o esperava embaixo com a lanterna.

— Cuidado com os dois degraus de pedra da loja — gritou-lhe de cima o João Lopes.

Dentro, o Castro continuava a leitura; ia nos Manuéis.


CAPÍTULO 2

Na tarde seguinte, o aspecto da estação era brilhante.

Em dias ordinários, a pequena casa caiada e o barracão das mercadorias, perdidos num país chato e feio, onde raras culturas zebravam de amarelo o verde-negro da charneca, tinham um ar muito abandonado, como se os pardais atrevidos, que piavam nuns eucaliptos magros e despenteados, fossem os seus únicos habitantes. E, defronte, na erva alta de uma terra inculta, alguns fardos de cortiça, denegridos pela chuva, melancolicamente alinhados, pareciam irremediavelmente esquecidos, esperando o comboio de mercadorias do dia de juízo. À passagem dos trens, a estação mal acordava daquele sono; às vezes não desciam passageiros. O carregador, aborrecido e vagaroso, tirava do break volumes de encomendas, enquanto o chefe, um gordo de barba por fazer, conferia papelinhos amarelos com o condutor; e, lá fora, atada à cancela de ferro da passagem de nível, a mula velha do correio abanava as orelhas, sacudindo as moscas.

Mas, naquela tarde, a estação mudara completamente de aparência. O comendador João Lopes, o chefe do partido, veio na sua carruagem grande dos machos castanhos; o Galrão e o sobrinho na traquitana de cortinas; o Castro no carrinho, com o Loureiro da loja; e o João Gualberto, presidente da câmara transata, a cavalo com todos os rapazes — o Moniz da botica, o amanuense da câmara e os outros. Um carro toldado transportou a Civilização e Harmonia, a filarmônica de feição oposicionista. E o Castro havia recrutado na vila uma ou duas dúzias de rapazitos, que, juntos aos criados de lavoura do Galrão e do Lopes, deviam representar as massas populares. O Lopes tinha mesmo — com uma louvável preocupação da cor local — mandado vir o seu rancho da monda, que andava ali perto nos tremeses da sua herdade do Freixo.

Esta parte mais popular da recepção estava pouco animada. As mondadeiras, não percebendo bem a que vinham, apertavam-se a um canto, como um rebanho de ovelhas assustadas; e ao pé das raparigas, os ganhões, com as grandes mantas riscadas a rastos, esperavam tranquilos, um tanto cépticos, numa indiferença fatalista de semitas. Mas enfim, o efeito geral era bom. O Castro multiplicava-se, alinhando a filarmônica, dispondo os grupos de ganhões, falando às moças pelos seus nomes.

Quando, à chegada do comboio, o Júlio de Azevedo, no seu fato de viagem verde-escuro, com o coco cinzento à banda, a luneta de um vidro só encaixada na órbita, e o bigodito atrevidamente retorcido, saltou sobre o asfalto, foi recebido ao som do hino da Carta, e dos vivas, levantados pelo Castro, e frouxamente correspondidos pelos ganhões. O comendador adiantando-se para ele, assegurou-o... “da satisfação e justo orgulho com que os seus patrícios acolhiam um moço, que no alvorecer da vida era já a glória da terra, que lhe fora berço”.

Houve depois um momento de confusão, em que todos procuraram as carruagens e os cavalos, enquanto as mondadeiras e os ganhões dispersavam a pé, e os músicos trepavam para o carro, com os trombones mal limpos debaixo do braço. Afinal toda a linha de veículos e cavaleiros se pôs em movimento, levando na frente a carruagem dos machos castanhos, com o João Lopes e o candidato.

— Temos perto de oito quilômetros a andar, Sr. Azevedo — dizia o comendador. — E por culpa dos engenheiros, que o caminho-de-ferro podia ter chegado mesmo aos farrejais da vila... coisas da nossa terra!

O trote dos machos deixava já atrás a charneca; e a estrada seguia por uns chaparrais arroteados de novo, onde o sol oblíquo da tarde dourava a baganha das aveias maduras. Na carruagem o comendador ia nomeando e explicando os sítios; e, numa volta, apontando para a direita, disse ao seu companheiro:

— A sua herdade da Gafeira, Sr. Azevedo.

Então, o rapaz debruçou-se, subitamente interessado. Em Lisboa, quando recebia as rendas em letras sobre Anjos e C.ª, ou sobre Mayer e Filhos, tinha apenas a impressão vaga de ser rico; mas agora, aquela encosta de montado, onde as sombras das azinheiras desciam muito longas, e os últimos raios de sol punham uma gaze alaranjada sobre a erva viçosa, deu-lhe a sensação forte e nova da propriedade, de uma coisa que era sua, de árvores e de terra que lhe pertenciam. Ao lado, o comendador continuava as suas explicações:

— Uma boa herdade, muito boa de pastagem no cedo; é talvez o melhor invernadouro do concelho. Mas boa, o que se pode chamar boa de lei, é a sua Pedra Negra...

E abrangendo num gesto vago todo o lado do nascente, como se lhe quisesse marcar onde ficavam, ele ia dando ao Azevedo uma miúda descrição das suas terras.

Os machos subiram a longa encosta a passo. Agora a carruagem chegava ao alto, donde se dominava o largo vale, com as manchas escuras dos olivais, apagados na luz morta do crepúsculo; e, em frente, o perfil da vila e as torres quadradas da matriz, negras no violeta do céu. O Júlio começava a reconhecer os sítios. A linha familiar da vila, uma ponte à esquerda sobre o ribeiro, o portão velho de uma horta, acordavam pouco a pouco no seu espírito as impressões de infância, que ali dormiam esquecidas havia tantos anos.

Afinal, a carruagem rodou sobre a calçada, atravessou a praça por entre os grupos de curiosos, e toda a comitiva, num grande ruído de escorregões de mulas e de guizeiras, parou à porta do comendador.

— Por aqui, Sr. Azevedo, por aqui se me faz favor — dizia o João Lopes entrando na loja, e virando à esquerda para uma casa grande ao rés-do-chão, onde estava armada uma mesa de vinte talheres. — A primeira coisa necessária depois de uma jornada destas é uma sopa quente, por isso eu tomei a liberdade de o trazer diretamente a esta nossa casa.

Confidencialmente acrescentou:

— Peço-lhe desculpa de lhe não apresentar hoje minha esposa e minhas irmãs, mas estamos mais à vontade só com os amigos... e estas coisas da política não interessam às senhoras.

E como todos entrassem, parando à porta da sala, o comendador distribuiu os lugares:

— Galrão faz-me favor senta-se aí defronte; Sr. Azevedo à minha direita; João Gualberto aqui à esquerda; meus senhores, fazem obséquio, sem cerimônia.

As moças, muito limpas, com os lenços de chita cruzados sobre os peitos duros, começaram a servir a sopa, e estabeleceu-se um silêncio profundo; mas pouco a pouco a conversa animou-se. O comendador completava as apresentações, rapidamente feitas no barulho da estação:

— Senhor Azevedo, o Sr. Galrão, um antigo amigo de sua avó, e de todos da sua família.

— Decerto... decerto, um grande respeitador da Sra. D. Margarida, que sempre me honrou com a sua amizade.

— Talvez se lembre ainda do nosso Moniz? — disse o comendador, indicando um rapaz gordo na extremidade da mesa.

Como o Júlio hesitasse, o Moniz explicou:

— Eu tive o gosto de andar no latim com vossa excelência. Então o Júlio lembrou-se, e numa inspiração de bom rapaz exclamou:

— É verdade... és tu Antônio!

E o Moniz, muito lisonjeado, levantou-se do seu lugar, e veio fazer shake-hands com o candidato em grandes expansões de velhos amigos.

As moças passavam travessas de frango ensopado e perus assados, indo de quando em quando à porta do fundo receber as ordens de uma autoridade invisível e suprema. Começavam a acender-se os cigarros — à espanhola. E, depois do arroz-doce, todos falaram alto, principalmente da eleição. O Júlio foi então miudamente informado... “do estado das coisas, das influências em jogo”.

Soube que o José Carlos não trabalhava por estar mal com o cunhado, desde as partilhas que fizeram por morte da tia; e que o Sá devia três contos e quinhentos aos Carvalhos do Lendroal, que o apertariam para o pagamento se ele saísse a campo; soube que os eleitores da aldeia de São Miguel só viriam à urna se lhes consertassem o telhado da igreja; e os da Corte Pequena se lhes aforassem o baldio; soube que o José Antônio tinha um lugar prometido na alfândega; e o Antônio José queria tomar uma empreitada na construção da estrada municipal. E desta ladainha de nomes próprios desconhecidos, destas coisas pequenas e vazias, elevava-se pouco a pouco como um grande tédio, que se misturava com o calor da casa, e com o cheiro forte da comida.

O Azevedo combateu a custo esta sensação de enjoo, fumando cigarros laferme, e bebendo golinhos de aguardente de erva-doce do comendador, que na verdade era excelente — parecia anisette.


CAPÍTULO 3

Já passava da meia-noite, quando o Moniz e o Castro, com três ou quatro dos mais entusiastas, vieram acompanhar o candidato a casa, e se despediram dele à porta do palacete da Rua do Álamo.

Ao entrar na loja, grande, úmida, calçada de seixo miúdo, imperfeitamente alumiada pela moça, que levantava na mão um candeeiro de três bicos, o Júlio recebeu uma impressão fortíssima. Aquela casa era a sua, a velha casa dos Azevedos, onde tinham nascido e vivido todos os seus, onde ele próprio nascera e se criara. Mal se lembrava dos pais, mortos sendo ele ainda muito criança, mas conservava viva a memória da avó. Era já um rapazito crescido, quase um homenzinho, quando, entre as criadas que soluçavam, veio ajoelhar ao lado da cama, em que a velha senhora, serena e branca, expirava docemente. E parecia-lhe ainda sentir na testa o contato dos seus beiços já frios, num último beijo em que ela pôs todo o seu amor, um amor mais que maternal. Parecia-lhe ainda ver aquela mesma loja, como estava na tarde do enterro, toda cheia de convidados; e ele, um rapazito pálido, vestido de luto, de pé no alto da escada, assistindo à saída do caixão, que descia por entre as capas pretas dos irmãos da Misericórdia e as luzes vermelhas das tochas. Dias depois, partia dali com o tio e tutor, o Dr. Manuel de Azevedo, então juiz da 3ª vara em Lisboa, que viera de propósito buscá-lo; e, naquele mesmo sítio em que agora ficara parado, grupavam-se os criados da casa, a velha Mariana, o João coxo que dava água, todos eles, todos chorando ao verem o menino subir para a antiga traquitana da família, que o levava para a estação... para tão longe! Lembrava-se bem da longa viagem, metido a um canto do compartimento de primeira classe, sentindo as lágrimas a bailarem-lhe nos olhos. E do seu espanto de pequeno alentejano, que só vira as ribeiras quase secas, orladas de loendros floridos, quando ao chegar ao Barreiro entrou no vapor — o Sol caía para além de Almada, e a enorme superfície da água, rosada, espelhada, apenas vibrante, estendia-se até aos pés da grande cidade, refletindo as suas casarias resplandecentes.

Como eram dolorosas e doces ao mesmo tempo estas evocações das velhas coisas, ainda agora quase esquecidas! E as primeiras recordações pareciam suscitar todas as outras. Numa concentração súbita, viu a sua vida inteira. O tempo do colégio, e as visitas ao domingo a casa do Dr. Manuel de Azevedo na Rua da Emenda, uma casa tranquila e triste, sem crianças, onde a tia, pálida e loira, lhe dava um beijo distraído, e tocava piano na sala escura, com os stores descidos. Os anos da Universidade, deixando-lhe uma impressão confusa e já remota, de trabalho, de cantos de rouxinóis ao luar, e de fados corridos. Ali, o rapaz passava pouco a pouco a homem, afirmava a sua situação de estudante premiado, de membro influente de um cenáculo literário, de redator principal do Facto, um jornal positivista, bastante avançado e algum tanto ingênuo. Mas o tempo corria, e um dia achava-se bacharel formado em Direito, maior, independente e rico — muito mais rico mesmo do que tinha imaginado. Começava então a sua vida ociosa de Lisboa, com os quartos de garçon às Chagas, com os jantares no Bragança, com a cadeira em São Carlos, com a série dos amores fáceis, as Lolas e as Carmens, entremeadas de duas ou três portuguesas, uma modista de chapéus do Matos e Irmão, e a Adelaide do Príncipe Real. Destas nebulosas do amor destacava-se um pouco a sua grande aventura com a D. Sofia, a mulher do Mosqueira do banco; uma aventura esboçada no fim da estação de São Carlos da cadeira para a frisa, desenrolada durante o Verão no terraço do Vítor, e prosaicamente rematada em um quarto com saleta, alugado aos meses na Rua dos Douradores. No fundo uma aventura tão banal como todas as outras, deixando-lhe a mesma impressão de vazio triste. E era tudo, toda a sua vida durante quatro ou cinco anos. Apenas uns restos de amor ao trabalho e à Arte, as correspondências semanais para o Facto, um livrito de contos e estudos da rua, publicado sob o título de Asfalto e macadame, o haviam preservado de cair absolutamente na irremediável chateza da reles vida elegante.

Parecia-lhe singular, que nestes últimos anos tão despreocupados e inúteis se não tivesse lembrado uma só vez de visitar a sua terra e a sua casa; e no entanto era assim. Deixara ao tio, mesmo depois de formado, todos os cuidados da administração; a sua vida ociosa retinha-o com o imperioso despotismo da monotonia; e as recordações da província iam-se lentamente apagando. Fora necessário que uma candidatura, oferecida pelo João Lopes e outros amigos do Manuel de Azevedo, o viesse arrancar aos seus hábitos; e só agora, ao cabo de catorze anos, entrava de novo na sua casa. Mas aos primeiros passos dados naquela loja, toda a sua infância revivia, nítida, atual, como se nunca dali tivesse saído; e, por um fenômeno curioso, eram os acontecimentos da véspera, que pareciam recuar para um passado remoto, numa flutuação de coisa falsa, sonhada.

Parado na porta, o Júlio não via a moça, que continuava a erguer na mão o candeeiro, nem a outra criada, esperando em cima no patamar. E as duas, admiradas já daquela imobilidade, pensavam lá consigo: “...que o senhor era muito esquisito”. Quando afinal reparou nelas, teve um desejo irrefletido de as mandar embora, uma necessidade de ficar isolado, como um pudor dos seus sentimentos; e, tirando o candeeiro das mãos da moça, disse para as duas:

— Podem-se ir deitar, eu não preciso mais nada esta noite.

Então, só, com uma espécie de respeito religioso, começou a visitar a casa. Estava muito abandonada e velha. Dos vidros partidos, dos postigos desconjuntados e podres, vinham correntes fortes de ar, em que a luz do candeeiro, mal abrigada pela mão, vacilava, pondo nas paredes das salas caiadas clarões incertos, cortados de grandes sombras oscilantes. Em cima, os tetos de castanho, denegridos pelo tempo, esverdeados pela água que filtrava dos telhados, ficavam numa obscuridade indecisa. Os móveis antigos, tamboretes de couro mal de aprumo, contadores de pau-santo sem ferragens, encostavam-se às paredes, como abatidos pela idade, procurando um arrimo. E as manchas escuras dos grandes armários vazios, recortavam-se na cal branca, que se esfacelava em partes, deixando ver o reboco. Alguns ratos escaparam-se ao longo das paredes; e, numa das salas, dois ou três morcegos giravam no seu voo incerto e sem ruído.

Mas o Júlio não sentia este abandono; visões alegres, claras, da sua vida de criança, povoavam, iluminavam em volta dele aquele pardieiro. Os móveis, as paredes, eram como amigos velhos, vistos ao cabo de longos anos, que recordam o passado com circunstâncias pequeninas, muito definidas: cá estava o corrimão de pedra da escada, polido da mão rude dos ganadeiros que vinham ao avio, e que ele descera tantas vezes, a cavalo, deixando-se escorregar; com grandes sustos e muitos ralhos da velha criada Mariana; o armário alto donde furtava as peras, quando a Mariana descia à adega medir azeite para os pastores; e o outro armário mais pequeno, sempre fechado à chave, onde se guardava o doce, uma gila encandilada, e uns quartos de marmelo ressequidos com cravo de cabecinha, que a avó lhe dava sobre grandes fatias, nas merendas das tardes de Verão. Parecia-lhe então ver passar a avó, alta, magra, um pouco deitada para diante, com os cabelos brancos alisados sob o lenço de seda preta, o xale de lã cinzenta nos ombros, levando na mão o molho das chaves luzidias, que se chocavam num tinir fino. Que encanto eram para ele aquelas chaves! Como gostava de ver abrir as arcas, donde se tiravam os lençóis de linho, e as toalhas de mesa de Guimarães, tendo um cheiro bom, de roupa bem lavada, seca ao sol pelas colinas aromáticas, sobre moitas de tomilho e rosmaninho! Ou então, nos dias de festa, o armário da prata, donde saíam as salvas grandes, com lavores maciços, um pouco denegridas!

Quantas coisas, ontem tão esquecidas... e agora vivas, nítidas, como se se estivessem passando naquele momento! Mais nítidas, talvez, porque a memória dá às vezes como umas provas fotográficas, que parecem mais definidas que a própria realidade.

E o futuro deputado, o céptico redator do Facto, sentiu um nó na garganta e os olhos rasos de lágrimas...

Sacudiu este enternecimento pouco digno, e foi em busca do seu quarto, onde havia um conforto relativo. O esteirão novo do Algarve, o travesseiro de folhas, a colcha de cetim, denunciavam os cuidados e a solicitude do comendador.

Já ali estava a sua bagagem. O Júlio abriu o Gladstone bag, dispôs sobre a pedra da cômoda a complicada coleção de frascos e escovas, e, depois de proceder minuciosamente à sua toilette noturna, procurou o romance começado, a caixa de pheresly très fort, acendeu o último cigarro, e estendeu-se na cama. Achava-se numa disposição feliz. A emoção de estar na velha casa da sua família dissipara a impressão desagradável da conferência eleitoral. Aos vinte e oito anos, com uma boa fortuna, um nome já feito, uma liberdade completa, e a porta aberta para a vida pública, parecia-lhe bom viver. Adormeceu, tendo visões vagas de triunfos oratórios, de ministérios derrotados e desfeitos a grandes golpes de eloquência.


CAPÍTULO 4

Era tarde, quando ao outro dia o Júlio de Azevedo abriu a janela do seu quarto, e, assustando as lagartixas, que durante anos haviam gozado a posse tranquila da pedra da sacada, veio encostar-se à velha grade de ferro forjado, com um cigarro entre os dentes. Ao sair da atmosfera um pouco úmida do grande quarto ladrilhado, o ar daquela esplêndida manhã de maio envolveu-o num banho tépido.

O Sol ia alto; e da cimalha da casa caía sobre a ruazita só, muito quieta, uma estreita faixa de sombra. Da sua janela elevada, o Júlio dominava os telhados das casas térreas fronteiras, e os seus terraços de ladrilho, orlados de craveiros, plantados em fundos de bilhas partidas; devassava mesmo os segredos dos pequenos quintais, que se estendiam por detrás das casas. Havia ali um cantinho de vida doméstica, surpreendida na sua intimidade tranquila e abandonada: grupos de galinhas em boa camaradagem com porquitos ruivos; alguidares ainda cheios de água espumosa do sabão; roupa molhada, enxambrando ao sol presa de cordas, imóvel no ar parado, muito clara na luz intensa; e, num quintal um pouco maior do que os outros, como um toque de esmero nas ruas varridas, nos goiveiros amarelos, nas rosas vermelhas brilhando por entre as ramas das árvores. A vila por aquele lado alargava-se pouco, e o campo começava logo para além dos quintais, desenrolando-se em ondulações doces. Em frente, umas colinas baixas, vestidas do verde frio dos olivais, limitavam o horizonte; mas à direita, na queda do terreno, o vale abria-se em uma larga várzea de trigos altos, amadurecendo já num tom claro de espigas. E, ao longo do ribeiro, marcado pela linha de faias esguias, os laranjais e romeirais das hortas destacavam-se em manchas escuras, picadas de pequeninas casas brancas. Pela abertura do vale, a vista alongava-se aos tons dos planos distantes, esfumados, esbatidos, adelgaçados até à cor docemente azulada das últimas serras, fundidas quase no azul-claro do céu. Havia ainda na entoação fina dos verdes, na folhagem vibrante, uma frescura nova de primavera; mas os cevadais quase brancos, os trigos espigados, o fundo morno do ar, anunciavam já a proximidade do ardente verão alentejano.

O Júlio ficou ali muito tempo, embalado pela absoluta quietação. Na rua não passava gente; as andorinhas corriam, tocando quase as pedras da calçada no seu voo rasteiro, quebrado em voltas rápidas; ou vinham, com um pequenino grito alegre, pousar nos ninhos presos à cimalha. Ao fim da rua, por cima das árvores de um quintal, via-se um dos torreões das antigas muralhas da vila, e em volta os gaviões revoando, passando como pontos negros, apenas distintos, na limpidez clara do céu. Um grande silêncio abafava tudo; um destes silêncios mortos, pesados, de vila de província donde todos saíram para o trabalho, que deixava ouvir, lá ao longe, no vale, o bater da roupa nas pedras do ribeiro, e as vozes das lavadeiras bradando pelos filhos.

Todas estas coisas tão conhecidas, tão familiares, tão absolutamente iguais ao que tinha deixado, acordavam no espírito do Júlio os velhos tempos esquecidos; sentia reviver as suas impressões de infância nas formas, nos sons, até nos cheiros — naquele perfume bravo, muito alentejano, que subia das medas de estevas, empilhadas à porta do forno. E, quando as onze horas soaram lentamente na torre da matriz, ele teve a sensação fantástica de que o tempo só agora recomeçava a correr, de que tudo parara durante a sua ausência, de que a vilazita de província o esperara, imóvel e adormecida como a princesa de um conto de fadas.

Depois, pelos postigos abertos de uma das casas fronteiras, começou a sair o som das vozes de criança soletrando. Era um soletrar antigo, cantado, estranho à influência de João de Deus; mas as vozes puras das pequerruchas davam graça à cantilena, fundiam-se num chilrear alegre com o canto das andorinhas nos ninhos da cimalha. E, de repente, aquela casa, em que agora reparava melhor, evocou no espírito do Júlio uma nova onda de recordações.

Aquela casa fora mais sua do que a sua própria. Morava ali nos antigos tempos o João Pascoal, o escrivão. Era um homem alto, malfeito, desgracioso, com os olhos úmidos, muito tímidos. Tinha uma única paixão — a dos pássaros. As horas que podia roubar às audiências, ao escrever monótono no papel selado, passava-as pelos valados e barrancos, armando. E o Júlio estava sempre em casa dele, ajudando-o a fazer gaiolas de cana, ou a consertar as redes das codornizes, vendo-o preparar grandes tachadas de visco.

Que boas tardes de Verão tinham passado juntos, quando ao sair da aula do padre Salgado vinha a casa deixar a Selecta, e pedir licença à avó para ir com o Pascoal! Com que seriedade o escrivão o iniciava nos segredos da arte, ensinando-o a distinguir os chamarizes dos tentilhões, fazendo-o escutar o canto dobrado dos chapins reais — os cheichapins, como ele dizia , ou o prrrt... metálico dos trigueirões, pousados sempre nos mais altos raminhos das moitas! Que ansiedade quando a bandada dos pintassilgos se dirigia para as varas... eles deitados atrás de um valado, e o Pascoal pondo-lhe a mão no ombro, fazendo-o estar quieto... quieto... sem respirar! Que ferros, quando ao longe estalava a funda de um guarda de vinhas, e todo o bando fugia assustado! Que bons tempos!

O Pascoal fora sempre pobre e pouco considerado. Chamavam-lhe o passarinheiro. Era um sonhador, um poeta a seu modo. Ficava horas esquecidas escutando os melros nos balseiros, ou os papa-figos nos chaparrais, vendo as névoas brancas, leitosas, a levantarem-se dos barrancos, e a luz, coada pela folhagem verde, a acordar reflexos nos espelhos das péguias. Depois, chegava tarde, suado, mal arranjado para as audiências. Sujava os autos de visco. E — coisa mais grave — apesar de pobre, esquecia-se às vezes de receber o dinheiro dos órfãos e das viúvas, o que indignava algumas pessoas sérias, como um mau exemplo.

— Quer-se fazer generoso, e não tem onde cair morto, que tolo! — diziam.

Pobre Pascoal, que seria feito dele? Decerto já não morava na mesma casa, pois agora era ali a escola. Devia estar muito velho, se vivesse? E as filhas, deviam estar duas mulheres, a mais moça talvez casada? Lembravam-lhe agora as duas pequenas, com quem brincava, que tratava como irmãs; e parecia-lhe estranho, mal feito até, ter-se esquecido da sua existência tantos anos.

A mais velha, a Henriqueta, devia ter a idade dele. Era uma rapariguinha galante, com perfil fino, olhos grandes, e um esplêndido cabelo castanho; mas era contrafeita, coitadita. Os seus ombros desiguais, as suas mãos delgadas, demasiado compridas, muito brancas com veiazitas azuis, e o seu sorriso triste, faziam pena. A Margarida — uma afilhada da avó — era pelo contrário uma criança linda, direitinha, de um trigueiro sadio, tendo uma alegria constante nos olhos pretos, e um cabelo crespo, vigoroso, escuro na sombra, mas cheio de reflexos vermelhos, quase ruivos, quando o sol o feria. Lembrava-se bem da amizade terna que tinha à pequenita. Na sua importância de homenzinho, julgava-se o seu protetor natural; e ela admirava-o muito — a sua superioridade de rapaz de treze anos, já crescido, as suas audácias, as suas invenções. Como ela ria, quando ele, trepado ao damasqueiro grando no fundo do quintal, lhe lançava os damascos no regaço; enquanto a corcundita, muito séria, já maternal, ralhava com os dois! Decididamente queria vê-las hoje... agora mesmo... ia perguntar à criada se o Pascoal vivia, onde morava?... Mas nisto uma rapariga delgada apareceu embaixo no quintal grande das roseiras, que pertencia à escola; e começou a despregar das cordas a roupa já enxuta. Para tirar os alfinetes, levantava-se nos bicos dos pés, erguendo nos braços nus, curvando a cintura flexível; e o sol, caindo sobre ela, dourava-lhe ligeiramente a massa espessa dos cabelos escuros. Passados instantes, como se sentisse de longe o peso do olhar do Júlio, voltou-se, deu com ele na janela, corou e fugiu para dentro. Era a Margarida... com certeza... e quase a mesma, com os seus olhos alegres, com o seu cabelo crespo de criança! Então... ainda ali morava o Pascoal! E o Júlio, num primeiro impulso, desceu a escada, atravessou a rua sem chapéu, meteu o braço pelo postigo da porta, correu o ferrolho muito seu conhecido, e entrou na escola.

À sua entrada, quinze ou vinte pequenitas interromperam a leitura, contemplando-o pasmadas, com os olhos redondos de admiração; e, do estrado do fundo, a corcunda levantou­se, alegre, um pouco perturbada a princípio:

— O Sr. Júlio!

— A mana Henriqueta — disse o Júlio, usando instintivamente o antigo tratamento, e apertando nas duas mãos as mãos débeis da inválida.

— E o Pascoal? — perguntou.

— O pai está muito doente, entrevado! Mas venha vê-lo... ele vai ficar tão contente.

E levou-o pelo corredor ao quarto do fundo, que dava sobre o quintal, onde o escrivão, muito acabado, com o cabelo todo branco, estava sentado na cama.

— Ó pai, o Sr. Júlio — disse a Henriqueta.

— O menino Júlio!... o menino Júlio! E tão crescido... um homem! E não se esqueceu do pobre Pascoal, veio logo cá... — dizia o velho chorando, na facilidade banal das lágrimas, que dão a fraqueza e a doença.

Então o Júlio, querendo cortar aquele enternecimento, e reparando nas gaiolas penduradas das paredes, perguntou-lhe pelos pássaros.

— Ai! ainda se lembra! Eu já não vou armar, estou aqui preso na cama vai para cinco anos, com o reumático. Mas vai o Pedro... o Pedro, o filho do carpinteiro... há de ter ideia dele? E olhe o rapaz tem jeito, tem muito jeito...

Nisto entrava a Margarida, que tinha posto um lenço novo nos ombros, e tentado alisar o cabelo, tão rebelde como em criança.

— Sabes Margarida... — disse o Júlio, indo para ela; mas emendou-se, ao vê-la tão mudada, tão mulher: — Sabe, conheci-a logo, logo. De mim é que já se não lembrava?

— Então não havia de lembrar — respondeu a rapariga, corando. — O pai falava tantas vezes no Sr. Júlio, e mais agora, sabendo que o esperavam.

Ficaram ali de pé conversando, o velho em êxtase diante do seu menino, do seu grande valido, as raparigas voltando rápida e facilmente à velha intimidade de crianças. O Júlio fez mais perguntas; quis saber o que se tinha passado naqueles longos anos; e a Henriqueta então contou-lhe como tinham sofrido grandes privações, necessidades até, depois de o pai cair de cama, e ser obrigado a deixar o lugar. Venderam uma a uma as suas fazenditas, o olival da Fonte Fria, os três milheiros de vinha à Camada; só lhes restava aquela casa. Agora estavam um pouco melhor; a Henriqueta ensinava primeiras letras.

— Ao princípio não queriam mandar as pequenas, por eu... ser assim — dizia ela com o seu antigo sorriso triste. — Mas agora vêm muitas, e todos na vila são muito bons para mim.

A Margarida trabalhava para fora, cosia, engomava, fazia renda.

— Tem muita habilidade — acrescentava a Henriqueta com orgulho.

O tempo corria rapidamente. O Júlio achava-se em família, contente de ver o velho sorriso tranquilo e resignado da mana Henriqueta, e a pequenina Margarida, transformada naquela rapariga airosa, adoravelmente bonita no seu vestidinho pobre e no seu lenço vermelho. Conservava os fortes cabelos crespos, e o olhar alegre e claro de criança; mas, vendo-a bem, estava muito mudada, com o oval mais longo e afinado, com uma expressão nova, funda e doce, nos seus esplêndidos olhos negros, levemente pisados em roda. E o rapaz ficou-se a olhar para ela, enlevado, voltando-lhe a ternura protetora dos tempos passados, sentindo já, como a Henriqueta, um orgulho de irmão mais velho.

O candidato esquecera-se completamente da hora, do comendador e da eleição, quando ouviram bater à porta. A Margarida foi lá fora correndo, e voltou a dizer: “...que a moça vinha chamar o Sr. Azevedo, porque o Sr. João Lopes e muitos senhores estavam defronte, no palácio, à sua procura”.


CAPÍTULO 5

O candidato atravessou a rua, subiu os degraus da escada dois a dois, como nos bons tempos de rapaz de escola, e entrou na sala desculpando-se de se ter demorado um instante: “tinha ido ali defronte, visitar o seu velho amigo Pascoal”.

— E muito o honra não olvidar as pessoas com quem tratou na infância, mormente sendo... enfim sendo pessoas de condição humilde, observou benignamente o comendador.

Estavam já ali, além do João Lopes, o Castro, o Moniz e mais alguns convidados do jantar da véspera, com três ou quatro novos amigos políticos. O Moniz apresentou particularmente um destes, um rapaz amarelo, apertado na sobrecasaca preta, com uma gravata de cetim azul bastante ensebada:

— O meu amigo José Mena.

— Tenho o maior prazer em conhecer pessoalmente a vossa excelência — disse o rapaz, estendendo a mão ao Júlio. — Tenho admirado muito os seus belíssimos artigos no Facto.

— O Mena também é escritor, é uma das ilustrações cá da nossa terra — explicou o Moniz.

— Pelo amor de Deus! — atalhou modestamente o Mena.

— Publiquei apenas alguns contitos insignificantes, muito singelos... um pouco vívidos talvez... naquele gênero simples do Daudet.

— Ah!... no gênero do Daudet! — disse o Júlio numa surpresa profunda.

— E escrevo as crônicas literárias no jornal do distrito, no Clarão do Sul. É possível que vossa excelência! as tenha notado?

— Li alguns números do jornal, mas não... não me lembro bem...

— Eu na crônica não uso o meu nome, assino Sagaz.

— Ah!!

A entrada de novas visitas veio interrompê-los. O comendador fazia cerimoniosamente as apresentações; e os amigos políticos sentavam-se em roda, com os chapéus altos sobre os joelhos, enquanto o Júlio começava a notar com uma certa inquietação, que tinha poucas cadeiras, e algumas quebradas.

Mas a conversa tornou-se geral. O João Gualberto falou: “na situação desgraçada do país”. Então o Lopes, com as pernas abertas, as mãos nos joelhos, expôs as suas ideias:

— O que não pode continuar é esta desconsideração sistemática da propriedade. A agricultura, a nossa primeira indústria, descurada; salários cada vez mais caros; encargos pesadíssimos; o preço do gênero como todos nós sabemos; nisto é que ninguém pensa. Porque afinal quem nos governa são empregados públicos... moços de inteligência, não há dúvida!... mas sem sisudez, sem terem interesses ligados à terra...

— E que no fim de contas o que querem é comer, interrompeu o Castro mais positivo.

— Não digo tanto, Castro, não digo tanto!... Ainda que desgraçadamente parece, que alguns se têm locupletado à custa dos dinheiros públicos. O remédio, tenho-o eu dito muitas vezes, está em restituir à propriedade a sua legítima influência. A propriedade territorial é a verdadeira, é a única aristocracia dos nossos dias...

— Não devemos esquecer a aristocracia do talento, Sr. João Lopes — observou o Mena.

— Ora, sior Mena — atalhou o Castro sempre positivo. — Faz favor de me dizer o que paga a tal aristocracia do talento? Quem paga é a terra, e quem deve governar é quem paga... tudo o mais são histórias.

— Felizmente o nosso Azevedo reúne as duas aristocracias — disse o Moniz conciliador.

O Júlio tinha-se levantado para ir receber o velho Galrão, que entrava, coberto pelo capotinho apesar do calor; e lhe apresentou um homem gordo, de suíças brancas, sem gravata, com os colarinhos altos, bem lavados, presos por dois botões de filigrana de ouro:

— Senhor Dr. Azevedo, o Sr. Francisco Dias, um antigo amigo de toda a sua família.

— Ora ainda bem que torno a ver um Azevedo nesta casa! — disse o lavrador, apertando fortemente a mão fina do candidato.

E começou a falar-lhe do pai, da avó, “uma santa senhora, uma dona de casa como já as não havia”; tudo isto num tom de amizade, de respeito sincero pelo nome e pela família dos Azevedos, que lisonjeou o rapaz, descansando-o da eloquência do comendador. Gostou do homem, achou o original, muito fino sob a sua bonomia rude.

Mas o Mena veio dizer-lhe ao ouvido, com a familiaridade de um confrade em letras:

— Um bom tipo, hem! Vossa excelência vai-se divertir muito com estes selvagens.

E o Júlio sorriu, pensando que o bom tipo, o tipo divertido e reles, era o Mena e não o lavrador.

As visitas demoravam-se, hesitando em se despedir. Mas, quando o Moniz e o Mena deram o exemplo, foi uma debandada geral. Agora ficavam unicamente o João Lopes, o Galrão e o Castro, de pé junto de uma das janelas. E sós, mais à vontade, o Lopes desenvolveu o plano de campanha:

— Passado amanhã vamos a São Gens, por causa do João Máximo. O João Máximo está duvidoso.

— Ah! O João Máximo está duvidoso? — disse o Júlio para dizer alguma coisa.

— Está! O homem está retirado. Ficou descontente desde a última eleição... desde o caso que se deu com o Dr. Fragoso. Há de saber?

— Bem sei — respondeu o Júlio, que não sabia nada.

— Pois ficou; mas indo nós lá, estou certo que o levamos a campo. E pode dar-nos um bom contingente... ele tem ali muita influência!

— Não esqueça a carta para o visconde — insinuou o Castro.

— Ah! é verdade; fez bem em me lembrar, Castro. É necessário que o conselheiro Freitas escreva ao visconde.

— Eu mando pedir a meu tio que lhe fale, e estou certo que o Freitas manda imediatamente a carta.

— Pois é urgente. O visconde sempre pertenceu ao partido, mas tem antigas relações de amizade com este governador civil, e por ora não quis dar a cara. Escrevendo-lhe o conselheiro Freitas, que foi quem lhe deu o título, quando era ministro do Reino, estou certo que se decide...

Mas o comendador interrompeu-se, vendo o relógio; e, dirigindo-se de novo para o candidato, acrescentou amavelmente:

— Isto são horas das sopas, e o Sr. Azevedo vem jantar comigo.

— Eu não quero incomodar.

— Incômodo, nenhum! E depois o meu amigo hoje não tem remédio senão vir. Isto cá na sua casa está ainda tudo no ar... Vem, Sr. Galrão?

— Obrigado... obrigado, a minha esposa espera-me.

— Você vem, Castro, pode ser preciso tomar alguma nota depois do jantar.

E o comendador enfiou o braço no do Júlio, dando-lhe apenas tempo de pegar no chapéu e nas luvas, protestando contra qualquer mudança de toilette:

— Isto é sem cerimônia, meu caro amigo, não estamos na capital.

Se o Júlio se não tivesse esquecido um pouco da topografia da vila, teria notado que o comendador o levava por um caminho singularmente longo. Subiram toda a Rua do Álamo, e foram virar à Rua de São José, direitos à Praça. O João Lopes levava-a fisgada. Queria atravessar a Praça e passar diante da loja do Faria, o baluarte dos contrários, em toda a sua glória, com o seu candidato pelo braço.

Quando desembocaram na Praça, viu imediatamente que não perdera o tempo. À porta da loja estava o Faria, um beirão atarracado, de barriga em bico, e barretinho de pala de seda preta. E, encostado à ombreira, o administrador de concelho, muito engoiado sob o chapéu alto, conversava com o Joaquim Carvalho, o mais moço dos do Lendroal, um rapaz forte, de chapéu à serrana, botas de montar, e jaqueta de alamares. Trocaram saudações corteses, mas frias:

— Senhor administrador... meus senhores.

— Senhor João Lopes.

E os três ficaram examinando criticamente o veston justo de quadradinhos e as calças escuras do Azevedo.

— Parece um palhaço! — disse o Joaquim Carvalho, que tinha visto em Lisboa os clowns da companhia do Dias.


CAPÍTULO 6

Na véspera à noite, o Júlio apenas entrara na casa de jantar improvisada ao rés-do-chão; mas hoje, o comendador fê-lo subir a escada de ladrilho, escrupulosamente limpa e almagrada de fresco; e, atravessando uma pequena casa de espera, introduziu-o na sala.

Estava claríssima a sala do comendador, com o teto e as paredes bem caiadas, reluzindo numa brancura maculada. O sol daquela bonita tarde de maio entrava largamente pelas duas janelas que davam sobre a Praça, e, passando através das cortinas transparentes, apanhadas nos patéres de folha dourada, caía em faixas oblíquas sobre o esteirão espanhol de esparto, amarelo e vermelho. Não havia ali tambores carunchosos, nem veneráveis e inválidos bufetes de pau-santo, como no palacete da Rua do Álamo; pelo contrário, todos os móveis pareciam sair naquele momento do armazém. Um canapé e doze cadeiras, de mogno e reps verde, recentemente comprados na Rua Augusta, guarneciam as paredes em linhas regulares e simétricas. Ao fundo, por cima do canapé, estava suspenso um largo espelho, com a sua moldura dourada, nova, muito crua sobre o branco forte da cal. E, das paredes dos lados, encaixilhadas em madeira preta com filetes dourados, pendiam quatro litografias de Julien, aux deux crayons: uma pastorinha da Suíça com as tranças caídas; uma castelã da Idade Média; uma tirolesa, rechonchuda e alambicada; e uma contemporânea qualquer de Mademoiselle de Montpensier, largamente provida de caracóis. Entre as janelas, um piano; e, defronte, uma mesa de jogo — da Rua Augusta — fechada, tendo em cima dois castiçais de prata, assentes em tapetinhos de lã, ornados de contas de vidro. Diante do canapé, uma mesa oval — sempre da Rua Augusta — sobre a qual se via um candeeiro de petróleo de zinco esverdeado, um cestinho de prata arrendada contendo bilhetes-de-visita, um álbum de retratos, e um volume do Musée des jamilles. Tudo isto era nítido, correto, e absolutamente novo.

O Júlio apenas teve tempo de ver rapidamente estas coisas, porque a porta do fundo se abriu, dando passagem às duas velhas irmãs do João Lopes, seguidas por um padre moço, alto e magro. E, ao ver entrar as duas senhoras no antigo traje da província, as saias redondas e um pouco curtas, os xales de lã nos ombros, os lenços de seda escura sobre os cabelos grisalhos, o rapaz teve uma emoção. Achou-as parecidas com a avó. Era o mesmo vestuário, era o mesmo ar sereno, bondoso, um pouco apagado mas digno, formado pela longa influência da vida tranquila, passada no conforto pálido da casa abastada. Ao vê-las, sentiu como um toque suave e doce das velhas ternuras, do aconchego tépido de umas saias de mulher em que se aninhava em pequeno. O sorriso, com que inventariara a sala do comendador, apagou-se; e foi com um respeito comovido que ele se curvou perante as duas senhoras.

Mas o João Lopes apresentou-lhe o padre, um antigo condiscípulo; e o Júlio lembrou-se logo de o ter visto na aula do padre Salgado, rapaz já feito, esgrouviado, muito pobre, com uma quinzena roçada de mangas curtas, que deixava ver os punhos da camisa esfiados, e os pulsos ossudos, vermelhos do frio: “Com que então tinha-se ordenado?”

— O nosso padre José está capelão da Misericórdia — explicou o João Lopes.

— Favores aqui do Sr. Provedor — acrescentou o padre curvando-se.

— Não tem que agradecer, padre, foi justiça... foi simples justiça.

Neste momento a porta abriu-se de novo, e uma senhora entrou majestosamente, apertada no vestido de xale preto.

— Permita-me que o apresente a minha esposa — disse o comendador: — Amália, o Sr. Dr. Azevedo.

— Muitíssimo prazer em o ver nesta casa — disse ela, estendendo corretamente a mão ao seu hóspede.

E, voltando-se para o João Lopes:

— Menino, o jantar está pronto.

Passaram para a casa de jantar, pegada com a sala, muito alegre também, iluminada por uma porta de vidros que dava sobre o terraço. À mesa, ao princípio, ficaram calados; mas o Júlio, em excelente disposição de espírito, pôs todos à sua vontade, falando dos antigos tempos, lembrando-se de tudo, dos nomes das pessoas, dos sítios onde ia passear. Interrogou diretamente o padre José, querendo notícias dos condiscípulos... “o Moniz tinha-o visto já!... Mas o Chico Saraiva? E os dois Sequeiras, os filhos do capitão reformado? E o... aquele, um gordo... que nunca sabia a lição?”

— O Antônio Soares?

— Isso!

— Está prior na Corte.

— O quê, também se fez padre?!

— O rapaz, coitado, precisava de um modo de vida... o pai tinha-lhe dado cabo de tudo — explicou muito naturalmente o padre José.

Mas o que encantou sobretudo as duas velhas irmãs, foi o modo por que o rapaz falava da avó, com um respeito profundo, com uma saudade ainda viva. No dia seguinte, não se calavam em elogios ao Azevedo: “Tão bom rapaz”, diziam elas, “parece impossível que seja dos que escrevem nos papéis!” O comendador, porém, emendou-as, advertindo: “que entre os redatores havia pessoas muitíssimo sérias... que a imprensa era uma instituição útil, sendo regrada”.

E, na verdade, as duas santas senhoras faziam dos jornalistas uma ideia singular. Julgavam todos pelo José Mena, que — segundo afirmavam na vila — tinha roubado os resplendores de prata dos santos no oratório da mãe, para ir jogar a batota no bilhar do Caxinha, à esquina do Terreirinho.

Durante o jantar, e apesar da conversa, o Júlio observou dissimulada e curiosamente a sua vizinha do lado. Deu-lhe trinta e cinco... talvez quarenta anos. Em todo o caso era uma bela mulher, alta e forte sem ser gorda, com um busto amplo, muito apertado no vestido de faille, que reluzia como uma couraça. Quando se voltava para ele, nas atenções naturais de uma dona de casa, envolvia-o no olhar direto dos seus olhos verdes, a que os cabelos, muito pretos e lustrosos, e as sobrancelhas espessas davam uma expressão um pouco dura. Pareceu-lhe uma senhora muito decidida. Trinchou o peru assado com gestos corretos mostrando os anéis ricos de gosto duvidoso; e dava às duas moças que serviam, ordens curtas e claras, prontamente obedecidas.

Falou pouco ao jantar, como se os assuntos locais, que seduziam as duas cunhadas, fossem menos dignos da sua atenção; mas depois, quando serviu o café na sala, mostrou-se muito amável, pedindo ao Júlio que fumasse:

— Faz favor de se não prender, Sr. Azevedo, nós as senhoras estamos todas tão acostumadas.

E, como o Júlio colocasse a xícara do café sobre o piano, perguntou-lhe se tocava, dizendo-lhe que a música era a sua distração favorita, que passava ali horas e horas. O Júlio tocava também, de ouvido, bocados de valsas, e umas peteneras e tangos, aprendidos em má companhia. Esta semelhança de talentos estabeleceu logo uma familiaridade. Falaram de São Carlos e das últimas óperas. D. Amália ia todos os invernos passar uma temporada em Lisboa, e o teatro lírico era a sua paixão. Ao lembrar-se dos prazeres da capital, lamentou-o:

— Vai-se aborrecer muito nestes dois meses.

— Não me parece, minha senhora, e basta para me não aborrecer o ter a honra de ser recebido em casa de vossa excelência.

— É muito amável, Sr. Azevedo, mas vai... olhe que se vai aborrecer muito! Isto é uma terra impossível, sem passatempos de espécie alguma, sem convivência quase. É um desterro para as pessoas criadas de uma certa forma...

Lentamente, numa conversa cortada, fazia-lhe as suas confidências. Disse-lhe quantos anos tinha passado em Lisboa, no colégio da madama Santos, a Buenos Aires, uma senhora finíssima, de uma educação esmerada. Falou-lhe da sua terra, Setúbal, uma terra boa, e tão próxima da capital. Tinha conhecido ali o João Lopes, que estava a banhos. Havia uma grande diferença de idade entre os dois; mas a sua família toda desejava muito aquela união, e... o tempo das primeiras ilusões já tinha passado. Podia dizer que fora muito feliz. Nunca se arrependera de ter dado aquele passo; ninguém decerto seria mais atencioso, mais delicado do que o comendador:

— ... mas tenho uma criação, um modo de pensar muito diverso das pessoas daqui. É muito triste não ser compreendida!... — terminava ela com um suspiro.

— Vossa excelência não tem filhos? — perguntou o candidato talvez indiscretamente.

— Ai não, Sr. Azevedo, e felizmente... filhos são cadilhos. O João Lopes desejou muito ter um herdeiro, mas hoje, coitado, nem pensa nisso.

Havia nesta última frase um desapego tão desdenhoso, que o Júlio involuntariamente levantou os olhos para o comendador. Viu-o sentado na extremidade da sala, conversando com o Castro e o padre José. De pernas abertas, por causa da barriga, a papeira caída sobre a gravata preta, tinha um ar lamentável de abatimento pomposo e gordo. O Júlio começava a interessar-se — neste interesse muito especial, despertado sempre pela mulher que parece fácil, ou simplesmente possível. E, muito amável, num principiozinho já de corte, insistiu para a ouvir. Ela então pôs-se ao piano, e, depois de uns acordes, cantou-lhe uma romance qualquer, muito conhecida.

A tarde caía. Lá fora havia um silêncio, cortado apenas pelo ruído dos carros de mulas, que atravessavam a Praça, voltando do trabalho. Na obscuridade que invadia a sala, o João Lopes e o padre José escutavam sonolentamente; e, encostado ao piano, a luneta no olho, o Júlio via de vez em quando os olhos verdes de D. Amália voltarem-se para ele numa expressão exagerada.

A romance esfriou-o; achou-a mal cantada, com uma pronúncia detestável. Pareceu-lhe a cantora ridícula. Mas, apesar de tudo, quando recolheu a casa pensou muito na nuca forte e bem encabelada, no buço esfumado sobre os beiços vermelhos, e no olhar direto da mulher do comendador. — Que diabo quererá ela? — foi a sua última reflexão.


CAPÍTULO 7

No dia marcado, o João Lopes e o Azevedo foram a São Gens, visitar o João Máximo; e ao outro dia à Corte, onde estava prior o Antonico Soares; e no dia seguinte a São Miguel. Às noites juntavam-se na sala pequena à esquerda da casa de espera — a que o comendador chamava o seu escritório, apesar de nunca escrever. Ali, à luz do candeeiro de petróleo, o Castro lia o recenseamento; tomavam-se notas; faziam-se cálculos; vinham trazer notícias os galopins subalternos, o Chico barbeiro, e o Norberto, um oficial de diligências demitido, que esperava ser reintegrado quando o ministério caísse. Mas pouco a pouco os trabalhos afrouxaram. Por maior que fosse o zelo do João Lopes e do Castro, era impossível ficar dois meses inteiros na brecha. Depois, as coisas tomavam bom aspecto; o João Máximo decidiu-se; o visconde pronunciou-se; os governamentais andavam muito descoro­çoados. Finalmente o candidato podia respirar.

Ia todas as noites a casa do comendador, mas, enquanto ao emprego do dia, conquistara uma independência relativa. Estava já regularmente instalado na sua velha casa. Uma das suas moças, a Josefa, saiu-se uma cozinheira de talento. Tinha-lhe chegado de Lisboa um caixote de livros; e, mesmo no seu quarto de dormir, improvisara uma grande mesa de trabalho, com o seu tinteiro, as suas penas válidas, e uma boa provisão de papel almaço. Ali, durante as horas de calor, redigia as correspondências para o Facto, ou os primeiros capítulos de um romance esboçado. E sentia-se em veia, escrevia umas páginas mais vivas, mais naturais do que tudo quanto tinha escrito até então. Afastado de todos os modelos, em contato íntimo com a poesia penetrante e severa daquela natureza um pouco árida, o seu modo de dizer despia-se das fórmulas convencionais, tornava-se mais simples e mais vibrante, como se o animasse o ar fino, que entrava largamente pela janela, aberta de par em par, como se o iluminasse a luz forte, que inundava o vale.

Quando passeava no quarto, procurando uma frase, mascando nos dentes a ponta do cigarro apagado, sucedia-lhe ficar-se parado defronte da janela, absorvido na contemplação daqueles campos vastos, alongados sem fim, onde as searas iam branqueando de dia para dia. As ceifas das cevadas temporãs começavam já. Pelas onze horas, as moças recolhiam do trabalho, andando depressa sob o sol pesado; e os ranchos de figuritas negras, graciosamente envoltas nos xales, animavam um momento a solidão das estradas, poeirentas e claras. Às vezes, de manhã, passavam vacadas, voltando das pastagens da serra — as reses vermelhas vinham lentamente, marcando o passo no aceno das cabeças finas, fazendo soar os chocalhos num ritmo demorado, que acentuava o largo silêncio tranquilo. Sentia-se o Verão chegar. Os trigos amadureciam. O trabalho misterioso da vida completava-se, pondo nas sementes o germe da vida futura. O ar vinha de longe, morno, em sopros leves, carregado das emanações aromáticas e bravas das grandes charnecas fortemente aquecidas. E ele então experimentava o prazer puramente animal de viver, da retina que se banha de luz, dos pulmões que se enchem, dos contatos tépidos na pele; qualquer coisa como a beatitude refletida nos olhos mansos dos bois, ruminando ao sol, enterrados na erva até ao joelho.

E sempre, antes de recolher para dentro, deitava os olhos para o quintal das roseiras. Uma ou outra vez via a Margarida a despregar roupa no seu gesto gracioso, em bicos de pés, os braços erguidos. Trocavam de longe uma saudação e um sorriso; e ele vinha sentar-se à mesa de trabalho, com os olhos e o cérebro cheios de luz — talvez do sol, talvez do sorriso da rapariga.

Terminada a página, o Júlio demorava-se ainda numas voltas pelo quarto; e depois descia, dando-se a si próprio uma explicação... “ia fazer um bocado de companhia ao Pascoal, coitado!... ouvir-lhe repisar pela centésima vez as velhas histórias”.

Ao acabar da aula, a Henriqueta vinha sentar-se numa cadeirinha baixa, ao lado da cama do pai. Como o tempo ia quente, a janela abria-se, deixando ver um cantinho do quintal a ruazita fugindo entre linhas de alfazema, as roseiras altas, mal talhadas, batendo na ramagem clara das amendoeiras. Os prisioneiros do Pascoal chilreavam; e, lá fora, na sua gaiola de cana, dois melros ensaiavam assobios hesitantes, numa modulação fresca de primavera. Uma roseira-de­toucar orlava a janela, e os cachos compactos de rosinhas brancas, miúdas, caíam em festões. A Margarida, que ensaboava no quintal, vinha encostar-se ao parapeito da janela, pelo lado de fora, com os braços trigueiros, muito puros de  forma, ainda úmidos do sabão. E ficava ali muito tempo, imóvel, os olhos pretos atentos, escutando o Júlio. O sol, refletido na parede do fundo, orlava-lhe os cabelos crespos de um contorno luminoso, deixando-lhe o rosto numa sombra vaga; e as rosinhas-de-toucar formavam-lhe em volta uma espécie de moldura de vieux saxe, fresca e virginal. Quando o Júlio tinha graça — o que lhe sucedia várias vezes —, Margarida descerrava os lábios num dos seus risos claros de criança; e uma atmosfera viva e alegre de mocidade e primavera enchia o quarto do pobre paralítico.

Pouco a pouco as visitas amiudavam-se e prolongavam-se. O Júlio agora passava as manhãs no quarto do Pascoal. Às vezes, com um pretexto qualquer, voltava de tarde. As suas criadas já sabiam onde ele estava. Ali lhe vinham trazer os escritinhos urgentes do comendador; e as grandes bandejas de doces da D. Amália: “... com muitas recomendações da senhora”, como dizia o moço dos recados. Ele sentia-se bem, à vontade, entre as duas raparigas muito singelas, e muito inteligentes na sua singeleza. Todas as vulgaridades da meia civilização que o feriam na casa do comendador, desapareciam ali, naquele interior primitivo. E, sem que o pressentisse a princípio, a paixão da Margarida retinha-o, envolvendo-o, penetrando-o, como o envolvia e o penetrava o ar fino daquelas manhãs límpidas de Primavera.

E era uma paixão! Logo nos primeiros dias, sem o saber e sem o querer, ele tomara posse do coração da rapariga, como de uma coisa naturalmente sua. Margarida tinha chegado aos vinte e dois anos sem um namoro, guardada pela vigilância da Henriqueta, pela vida quase clausurada, sobretudo pela timidez altiva. Arredada de uns pela sua situação humilde, de outros por um principiozinho de educação e pelos instintos finos, encerrara-se no retraimento doloroso da sua pobreza. O aparecimento do Júlio, superior a tudo quanto tinha visto e tinha sonhado, veio trazer uma funda perturbação à sua existência sossegada. Sentiu-se subitamente presa por aquela inteligência clara, elevada, ocupada de mil coisas que ela não percebia, mas começava a adivinhar na sua intuição sutil de mulher já namorada. E ao mesmo tempo que o Júlio a deslumbrava como um ente quase sobrenatural, tranquilizava-a pela familiaridade alegre e franca de antigo companheiro. Na fisionomia original do Azevedo, tão finamente insolente, quando em presença de estranhos encaixava o monóculo na órbita, havia sempre para ela o sorriso carinhoso e bom de um irmão mais velho. E ela achava-se bem na sua inferioridade, na sua admiração sem limites de mulher submissa.

Tudo nele a seduzia, a finura do seu espírito, como os requintes absolutamente desconhecidos da sua elegância. Para a pobre rapariga, que só vira a jaqueta domingueira do Pedro carpinteiro, ou, à porta da igreja nos dias de festa, as gravatas vistosas do Mena e do Moniz, houve uma revelação nos vestons de flanela branca do Júlio, nas suas meias azuis com estrelinhas vermelhas, nas suas mãos bem cuidadas, nos anéis sólidos, tendo as esmeraldas e os rubis fundamente cravados no ouro fosco. Todos os pequenos objetos da elegância masculina a surpreendiam: a pérola do alfinete; a cigarreira de prata, onde os phereslies descansavam em simetria no fundo dourado; as firmas de cor nos lenços perfumados, que ela admirava muito com os seus conhecimentos práticos de costureira.

Então, diante dele, achava-se ignorante e rude, nos seus vestidinhos de chita, na vulgaridade das suas mãos bonitas, mas um pouco avermelhadas e grossas do sabão. Julgava-se duramente, muito humilde, muito distante dele, apenas digna de ser sua criada, uma das suas moças, como eram a Josefa, ou a Bárbara. Mas depois lembrava-lhe a camaradagem de outros tempos. Via nele a antiga imagem do rapaz enérgico e forte, que protegia a sua fraqueza de pequenita de oito anos. Feria-a assim com todo o vigor de uma impressão nova, e com toda a suavidade de uma recordação de infância. E, docemente, confiada, deixava-se ir sem resistência para aquele amor, que era como a continuação natural de uma amizade inocente. Com um atrevimento puro de criança fixava nele largos espaços os olhos meigos, sem fugir aos seus olhares.

Mas, às vezes, sentia-se perturbada, numas revelações súbitas, quase brutais, da intensidade da sua paixão. Um dia que estava fazendo renda, o Júlio veio ver a obra, passando-lhe o braço à roda da cintura. Assim, muito perto dela, a sua respiração agitava-lhe levemente os cabelinhos da nuca; e ela julgou desfalecer, uma onda rosada tingiu-lhe o pescoço e as faces, e, na pele até à raiz dos cabelos, correu-lhe um arrepio doce, de uma doçura tão funda que era dolorosa. Ao mais leve contato percebia que era toda dele, o corpo como a alma. E, vagamente, sabia que a um aceno lhe teria caído nos braços, rendida antes de combater, sem defesa possível.

O Júlio, porém, estava a mil léguas de pensar em uma sedução. Se lhe ocorresse tal ideia decerto a teria repelido sem hesitar — a casa do seu velho Pascoal era sagrada para ele. Mas, na verdade, nem mesmo resistiu à tentação, porque não tinha consciência do amor pela rapariga. E, se lhe tivessem dito, que ele gostava da Margarida, teria dado uma gargalhada. Que disparate! Era amigo das duas irmãs... da Margarida como da corcunditata. Isso era! muito amigo dela... nada mais.

Somente, quando passava algumas horas sem a ver faltava-lhe o que quer que fosse.


CAPÍTULO 8

Os dias e as semanas passavam, e — contra o que prognosticara a D. Amália — o Júlio não se aborrecia.

Uma única coisa lhe bulia às vezes com os nervos, e era exatamente a que o trouxera ali — a eleição. O ingênuo redator do Facto trazia sobre eleições ideias um tanto falsas; sonhara comícios, movimentos de opinião, vontades populares energicamente manifestadas; e vinha cair em umas transações mesquinhas de pequeninos favores e de ressalvas de recrutamento. Como entendia pouquíssimo destes manejos, sentia-se inútil nas complicações da sua própria eleição. Via que o não consultavam; percebia que o tinham mandado vir unicamente para o mostrar, como um objeto de luxo, uma espécie de coche de respeito, um cavalo do estado de São Jorge bem encaparazonado. Esta situação um pouco singular não o incomodava, divertia-o até, vendo-lhe bem todo o lado cômico; mas outras coisas mais positivas repugnavam-lhe. Ele viera naturalmente com a intenção firme de não dever a sua eleição ao dinheiro. Não se lhe dava de gastar alguns centos de mil réis em despesas indispensáveis; mas coisa que cheirasse a compra não queria — positivamente não queria. Ninguém lhe falou em gastar um real. Não lhe era difícil, porém, perceber que o comendador gastava por ele, e gastava bastante. Isto no fim de contas vinha a dar no mesmo; simplesmente, era mais econômico e... mais reles. E, sempre que demorava nesta ideia, sempre que uma alusão qualquer a despertava no seu espírito, ficava mal à vontade, aborrecido, envergonhado quase.

Uma tarde, já luzes acesas, entrando ao passar na botica, encontrou o Moniz todo paramentado, de colarinhos altos, um botão de rosa do fraque preto — era o dia da recepção íntima do comendador. O Mena, pelo contrário, pareceu-lhe particularmente sujo, com a barba de três dias, e a pele amarela muito lustrosa. O comendador nunca o convidava para casa, apesar de ele pertencer ao partido — isto irritava-o. Afetava então maior desalinho, um desprezo do mundo, uma superioridade de homem de letras.

Enquanto o Moniz se inundava de água-de-colônia, e dizia ao Josezinho, o praticante, que podia fechar mais cedo, o Júlio ficou vendo a partida de damas do João Gualberto com o prior — dois jogadores de fama. O Mena, entre portas, assobiava; e, de repente, voltando-se:

— Então o João Máximo sempre entalou o Lopes com a fiança?

— Parece que sim — respondeu o João Gualberto secamente, sem levantar os olhos do tabuleiro.

— Estava claro que o tal sujeito não dava os votos de graça! — acrescentou o Mena no seu tom azedo de homem amarelo.

O Júlio não fez reflexões, e a conversa caiu. Mas depois, quando saíram todos para a Praça, deu o braço ao Moniz, obrigando-o a ficar para trás, perguntando-lhe: “que história era aquela da fiança?”

— Homem, é simplicíssima! — respondeu o Moniz. — É uma dívida de novecentos mil réis que o João Máximo aí tinha, de que lhe não queriam renovar a obrigação, e de que o Lopes ficou agora por fiador.

— Para que o outro lhe desse os votos de São Gens?

— Provavelmente.

— Que diabo... isso é extremamente desagradável!

— Desagradável, o quê?

— Desagradável que o Lopes esteja assim a gastar dinheiro na minha eleição.

— Deixa lá, que tens tu com isso? Estás muito enganado se cuidas que o Lopes te faz deputado pelos teus belos olhos... É para conservar a sua influência... para ser o reizinho cá da terra. Ora essa! se quer custe que lhe custe... Olha, deixa-o gastar, e vem daí para casa dele... a D. Carolina já passou há que tempos com as sobrinhas.

Esta filosofia prática do Moniz não quadrava completamente ao Azevedo, que subiu a escada do comendador muito contrariado.

Logo na casa de espera, vendo os xales das senhoras sobre as cadeiras, e os chapéus pendurados, o Moniz exclamou:

— Olá! temos enchente!

E, ao entrarem, ficaram parados, para não interromper. As duas sobrinhas da D. Carolina tocavam a quatro mãos um pot-pourri da Traviata; e, junto do piano, o amanuense da câmara, sério e pálido, passando de vez em quando os dedos no bigode preto, voltava a folha. Isto desagradou ao Moniz, que namorava a mais velha.

Encostado à ombreira da porta, escutando o piano por polidez, mas sem o ouvir, o Júlio via distraidamente as senhoras, sentadas em fila ao longo da parede, nas cadeiras de reps verde. Conhecia-as todas: a velha esposa do Galrão e a filha, uma rapariga dos seus trinta e tantos anos, seca e magra, de uma magreza ácida de solteira; a prima D. Joana, na sua apatia mole, entre as duas irmãs do Lopes; a D. Carolina, uma viúva ossuda e rica, de buço preto, sempre afogueada; a D. Plácida, a mulher do cirurgião, pequenina, muito puxada, fresca ainda nos seus quarenta anos. Abanavam-se lentamente num abatimento doce, tendo nas fisionomias apagadas um ar tranquilo, como uma resignação à monotonia indefinida e vaga da vida. E, mais no fundo, no canapé por baixo do espelho, o Júlio via as meninas, duas ou três, direitas nos vestidinhos malfeitos, deixando escorregar os olhares sonsos até ao grupo dos homens compacto na porta da casa de jantar.

Quando entrou, o Júlio abaixou de longe a cabeça à D. Amália; e, ao terminar o pot-pourri num murmúrio de aplausos, atravessou a sala para lhe falar.

— Vem hoje muito tarde! — disse-lhe ela, envolvendo-o todo nos olhos verdes, pondo nesta simples frase uma queixa imperiosa.

— Demorei-me um bocado na botica do Moniz — respondeu ele quase secamente.

A sua flirtation com a D. Amália continuava, mas frouxa, sem um passo decisivo, cortada de hesitações, de escrúpulos, de faltas de pachorra; e demais, naquela noite estava nervoso, pensando ainda nos novecentos mil réis do João Máximo.

Mentindo à sua reputação já bem estabelecida de amabilidade com as senhoras, passou um pouco desdenhoso, com a luneta caída, indo juntar-se ao grupo dos homens, que fumavam no terraço. Teve um momento a intenção de se explicar com o Lopes sobre aquela secantíssima questão do dinheiro; mas francamente a ocasião era mal escolhida. E não tinha mesmo tempo de lhe falar; todas as senhoras estavam de pé, entrando para a casa de jantar. Era a hora do chá, que se costumava servir ali à roda da mesa. E neste movimento forçado, elas animaram-se um pouco, em conversas mais íntimas, mas lentas, no tom discreto de pessoas bem-educadas. Junto da mesa, a D. Amália fazia as honras na sua solicitude vigilante de boa dona de casa.

— Os merendeiros que estão frescos, prima Joana!... mais uma chávena, Sr. Cairão?... com pouco açúcar, não é verdade, Sr. Azevedo?...

De pé, a um lado, os homens graves conversavam, sorvendo devagar pequeninos goles do chá muito quente. Vinham os assuntos mil vezes repisados: os olivais que estavam bonitos com muita flor; os trigos que não engrandeciam, queimados por aqueles calores de maio; toda uma vida de esperanças e decepções. E, naquelas queixas de lavradores, sentia-se passar o amor à terra, o amor vivo e entranhado a uma ingrata, que pagava tão mal aos seus apaixonados. Pouco a pouco caíram na eterna questão do trabalho; falaram dos criados que se não podiam sofrer, uma súcia de bêbedos, sem respeito aos amos, sem zelo pelas casas onde serviam; mas os jornaleiros eram piores, mais insolentes, e depois os salários subiam de dia para dia. O Galrão perguntou:

— A como traz os homens esta semana?

Então o Lopes teve um gesto de desolação, como se o mundo acabasse:

— Não me fale nisso... a catorze vinténs!... e olhe que não pegam no trabalho senão com uma e duas horas de sol.

— Eu não sei onde isto há de ir parar! — disse o padre José, remexendo lentamente o açúcar no fundo da xícara.

Calaram-se, meditando aquela reflexão profunda; e, na pausa da conversa, o Júlio, que escutava distraído, ouviu distintamente atrás de si a sobrinha de D. Carolina dizer em voz baixa:

— Passas amanhã?

— Às duas horas — respondeu o Moniz.

Mas no ruído abafado, comedido, das conversações lentas, as vozes das senhoras levantaram-se agora, mais altas, num entusiasmo, que os atraiu a todos para junto da mesa; tratava-se de uma proposta do João Gualberto, acolhida com muito favor. Habitualmente, depois do chá, a D. Amália organizava uma partida de loto, ali mesmo em volta da mesa grande; e o João Gualberto acabava de propor o monte, baratinho, uma brincadeira, para divertir as senhoras. Teve um sucesso; todas aplaudiram, num desejo de ganho, numa tentação aguda do fruto proibido. A prima D. Joana, saindo da sua apatia, exclamou:

— É mais divertido, não é prima Amália?

O próprio comendador sorriu com benevolência, explicando ao Dr. Azevedo: “que o jogo era um vício funesto, mas assim em família podia considerar-se um divertimento aprazível”. Apenas o Castro protestou tacitamente... não se divertia com aquelas coisas. Esgueirou-se para o escritório, a tomar certas notas sobre uns diabos de uns eleitores de São Miguel, que lhe não pareciam seguros.

Todos rodeavam a mesa; e, mal se levantaram as bandejas, o João Gualberto instalou-se para talhar, pondo diante de si quatro libras e uns cassoquinhos em prata, dizendo amavelmente:

— Vinte mil réis para quem os quiser!

D. Carolina estava já sentada ao pé do banqueiro; a mulher do cirurgião do outro lado. A D. Amália chamou o candidato para junto de si:

— Venha fazer uma vaca, Sr. Azevedo, mas eu é que administro, que o senhor é um perdulário. Dê-me cá dez tostões.

O princípio da cartada foi fatal para os pontos; o João Gualberto ganhava de todos os lados. A D. Carolina, já muito excitada, estendia nos dedos uma moeda de dois tostões, dizendo:

— Cerco à sena... mas espere lá, o que é que está morto embaixo?

— Deve estar morto o valete da cor... mas se a Sra. D. Carolina quer não se mata nada — respondeu o João Gualberto, que carteava finamente, com muito bons ditos.

— Ora muito obrigada ao seu favor!... bem, está morto o valete de ouros, então cerco à sena.

— Jogo — disse pausadamente o João Gualberto; e voltou na palma o valete de paus.

Apertado pela fogosa D. Carolina, o Júlio arredou-se um pouco para trás, pondo o braço sobre as costas da cadeira da D. Amália, assistindo à sua administração prudente e hábil dos dinheiros da vaca. Via-lhe o perfil perdido, a nuca forte, redonda, muito branca sob o nó preto dos cabelos duros. Pareceu-lhe bonita assim, na sua elegância sólida, as costas largas, o peito oscilando no ritmo da respiração descansada. Quando se encostava para trás, a abertura em bico do vestido descobria-lhe o princípio do sulco fundo entre os seios, perdendo-se embaixo na sombra tépida e provocante. Sentia-a muito perto de si, roçando-lhe no braço em contatos demorados talvez intencionais, envolvendo-lhe as pernas nas pregas do vestido azul, num calor penetrante de saias. De toda ela partia a emanação quente de uma mulher robusta, com o sangue vigoroso, muito desejável na perfeição outoniça da sua beleza. Esta vizinhança excitou-o, deu-lhe um momento a necessidade puramente animal de a apertar, de lhe pôr um beijo mordido na nuca branca, ali mesmo, diante de todos...

Mas a sua imaginação indômita e caprichosa fugiu-lhe para longe dali. Tudo em volta dele se apagava pouco a pouco. A D. Amália, o João Gualberto carteando, as senhoras à roda da mesa, a fila dos homens de pé, estendendo os braços para receberem os tostões, sumiam-se gradualmente sem contornos já e sem forma, como se os cobrisse o véu de gaze de uma mágica — daqueles véus que se vão multiplicando, espessando, obscurecendo, até se tornarem opacos num cinzeiro negro de nuvens carregadas. E agora, nesta obscuridade, criada pela fantasia, uma janela abriu-se. Dava sobre um fundo luminoso e claro, todo cheio de sol, de folhagem viçosa e de flores. Em torno pendiam cachos de rosas-de-toucar, miudinhas, brancas, apenas tintas de carmim diluído. E ao parapeito da janela veio encostar-se pelo lado de fora uma rapariga. Tinha o oval fino, sob os cabelos escuros tocados de reflexos quentes, os olhos negros e alegres, os beiços entreabertos deixando ver o esmalte brilhante dos dentes pequeninos. E ficou ali, fitando-o e sorrindo... Passado um instante, a sua expressão mudou; os olhos negros, levemente pisados em roda, tornaram-se sérios na concentração íntima de um sentimento absorvente. E aqueles olhos negros eram transparentes, apesar da sua negrura; via-se através deles, como em algumas noites escuras se vê a profundidade infinita do céu. E do fundo, muito do fundo da sua transparência, vinha uma corrente de amor, intensa e doce. Na criação desordenada do sonho, ele sentia aquela corrente, como se fosse material e palpável. Sentia-a na testa e no cabelo, semelhante ao sopro de um leque brando, agitado de manso... E a expressão mudou de novo; o círculo escuro em volta dos olhos negros marcou-se mais, e eles tomaram a tristeza magoada de uma queixa humilde e muito submissa; mas esta expressão dorida e queixosa não lhes apagou o amor, como se coisa alguma neste mundo nem no outro fosse capaz de o apagar...

Em volta da mesa houve um movimento, e o Júlio acordou sobressaltado — o João Gualberto acabava de ir à glória, e a sua vaca com a D. Amália ganhava sete mil e oitocentos.

Todos se levantaram para sair: era um escândalo... mais de meia-noite!

O Galrão já tinha partido com a esposa e a filha. A prima D. Joana, embrulhando-se muito, saiu também, acompanhada da moça e de um criado de cacete, porque era uma senhora muito tímida. Os outros desceram a escada em rancho, numa conversa animada, debicando ainda com o João Gualberto sobre a perda dos vinte mil réis.

— É um porquinho de menos na vara — disse o Castro, que acabava de sair do escritório com a tal lista dos eleitores de São Miguel.

E já na rua a conversa continuava:

— Que noite tão linda!

— Faz um luar que parece dia — observou o padre José.

— Ó D. Carolina, sempre é bom abafar-se, que está úmido — disse a D. Amália da janela.

— Ai não, menina, até está calma.

— Boas noites!

— Boas noites!

Foram deixar a D. Plácida e a filha em casa logo ali na Rua de São José, e a D. Carolina mais adiante à esquina da Rua dos Ferreiros. O João Gualberto, o Castro e o padre José seguiram conversando; e o Júlio, sozinho, tomou a travessa do Fosso ao longo das muralhas... veio devagar pelas ruas desertas da vila adormecida, fumando maquinalmente, todo cheio de sensações novas e complicadas.

Antes de bater ao portão ficou um bocado olhando para a janela da Margarida. Tudo estava fechado e quieto. O luar iluminava cruamente as paredes caiadas da escola, enquanto a sua casa parecia mais alta, toda na sombra, recortada em negro sobre o cinzento-claro do céu sem estrelas. À volta não havia nem um ruído, nem um movimento; apenas as corujas brancas passavam em cima no seu voo fofo, absolutamente silencioso.


CAPÍTULO 9

Como era singular tudo aquilo! Aquela revelação justamente ali à mesa do monte! Aquela interposição de uma imagem entre ele... e um desejo banal!

O rapaz passeava no quarto, ruminando estas coisas, dando voltas à roda de uma ideia, sempre a mesma, insistente e teimosa. Grupava uma um todos os acontecimentos das últimas semanas, pequeninos, insignificantes, um gesto, um olhar, uma entoação mais vibrante na voz, coisas vagas, despercebidas no momento; mas que, agrupadas agora, lhe mostravam o amor da Margarida tão claro, como aquele sol claro de Maio. O seu primeiro sentimento foi uma alegria intensa e irrefletida, um desejo vivo de a ter junto de si, de lhe tomar as duas mãos, de ficar longamente com os olhos mergulhados na transparência dos seus olhos negros. Mas nesta mesma alegria percebeu de repente, que ele... gostava também da Margarida; e no seu espírito formulou-se uma pergunta, que ficou sem resposta: Para quê? Para ter com ela uma aventura semelhante às outras?... para lhe pegar e largá-la, como teria feito à sua moça, a Bárbara, uma rapariga desembaraçada e instruída, que decerto se não incomodaria muito com o caso? Isto era simplesmente impossível; nem o queria, nem mesmo... o desejava. Ele não podia tocar na Margarida, na velha companheira, na filha do Pascoal, na afilhada da avó! Então... para quê? Esbarrava nesta pergunta, como em um muro sem porta. Sim... para quê? E, gradualmente, diante desta embaraçosa interrogação, veio-lhe uma reação de juízo. Começou a formar planos sensatos, todos cheios de prudência e de razão. A eleição estava à porta; logo em seguida partia para Lisboa; e até lá tudo ficaria assim. Mais tarde, a paixoneta da Margarida passava facilmente... se acaso a tinha. Para se sossegar, diminuía-lhe a importância... teria inventado talvez... exagerado decerto. Chegou a pensar no futuro da rapariga, bem estabelecida, tranquila e honestamente casada. Mas esta ideia do casamento... com outro, deu-lhe um arrepio; repugnou-lhe violentamente. Não... casada não... assim tranquila e honesta como estava. Era isso, nem podia ser outra coisa! No entretanto não alterava os seus hábitos... mesmo por prudência, para se não reparar. E na verdade não tinha nada que alterar, pois se no fundo não havia nada!

Justamente era a hora da sua visita ao Pascoal, e desceu a escada, mais lentamente talvez do que costumava. Achou o velho melhor nesse dia, animado, muito entretido a mudar de gaiola uns verdilhões que o Pedro lhe trouxera na véspera. No quarto ao lado, com a porta aberta, a Margarida engomava, atenta ao trabalho, encanudando habilmente uma saia complicada da D. Carolina.

— Viva! — disse o rapaz da porta, num tom que julgou perfeitamente natural.

— Muitos bons dias, Sr. Júlio. Então divertiu-se muito ontem? — perguntou ela levantando os olhos da tábua.

— Nem muito, nem pouco... uma coisa. Por que pergunta isso?

— Porque veio muito tarde.

— Como sabe? Eu olhei para cá, e estava tudo fechado.

Mas ela demorou-se a responder, pondo o ferro nas brasas para tomar outro; e, direita, aproximando o novo ferro da face, experimentando-lhe o calor:

— Ouvi-o bater ao portão a sua pancada do costume, e dali a um instantinho deu uma hora.

— Ah! então o que fazia a menina acordada àquelas horas? — perguntou ainda o Júlio, forçando-se a brincar.

— Eu... não sei... não podia dormir.

Calaram-se. Ambos eles sentiam instintivamente que o som das suas vozes os atraiçoava, que as palavras não significavam nada, que tinham outra coisa a dizer, a verdadeira coisa, a que estava lá dentro. Margarida foi a primeira a cortar o silêncio:

— É verdade, e a sua rosa!

Pagava-lhe o foro diário de uma rosa para o veston; e era sempre uma longa escolha no quintal, de botão em botão, a que o Júlio assistia sem querer intervir. Naquele dia escolheu-lhe uma rosita vermelha, meia aberta, e veio enfiar-lha na casa, muito unida com ele, séria, tendo apertado entre os beiços o alfinete com que a devia pregar. Quando terminou, recuou um passo para admirar a sua obra, levantando para ele um olhar tão franco e tão claro, que o rapaz ficou indeciso. Sentiu-se penetrado pela paz íntima da sua expressão. Pareceu-lhe um olhar de irmã. Decididamente... talvez se tivesse enganado. Era melhor assim.

E, pouco a pouco, nos dias seguintes, recaiu na sua segurança. Julgava de novo, que era unicamente muito amigo da Margarida. Uma coisa contribuía para o iludir — a sua tranquilidade junto dela, aquele efeito tantas vezes repetido do seu olhar franco e claro. Longe, tinha-a sempre no pensamento, sentia-se inquieto e impaciente como um verdadeiro namorado; mas ao entrar na escola ficava bem, contente de a ter ali, de a ver trabalhar, de a ouvir no quintal, cantando a meia voz a moda nova da vila. E não desejava outra coisa, não se violentava para a respeitar — respeitava-a pelo simples instinto do seu amor naturalmente casto. Não lhe reparava no pé bonito e fino, no tom quente do braço trigueiro, nos peitos pequeninos, direitos sob as pregas do lenço. Não, não gostava dela assim — gostava dela de outro modo, do que via no fundo dos seus olhos negros, da alegria do seu sorriso, do seu modo de falar doce e grave, um pouco cantado à alentejana. Tinha às vezes a necessidade quase irresistível de a puxar para si, pondo-lhe um beijo longo e apertado na testa, à raiz dos cabelos — nada mais. O desejo masculino e rude que sentira tantas vezes sem uma parcela de amor, que sentia junto da D. Amália, apesar de a achar ridícula, de quem teria nojo uma hora depois, nunca o sentiu ao pé da Margarida. A sua virilidade diluía-se na intensidade da sua ternura.

E julgando o seu amor menos forte, exatamente porque era mais fundo, adormecia numa segurança toda fictícia, sem ver o que se passava dentro de si, sem ver mesmo o que se passava em volta.

E era necessário ser cego para o não ver. A história do Azevedo com a Margaridinha do Pascoal andava na boca de todos. Uma personagem da importância do candidato não podia dar um passo, sem que dezenas de olhos curiosos o seguissem; e a frequência das suas visitas a casa do velho escrivão foi notada, logo desde os primeiros dias. Naturalmente todos acertaram com o motivo; e naturalmente também ninguém acreditou na inocência do idílio.

Alguns acharam aquilo malfeito. Os adversários pensaram mesmo em levantar a questão. Na loja do Faria chegou-se a falar em “sedução de menores”. Mas um advertiu logo dali: “que era uma asneira, que a rapariga tinha vinte e dois anos já feitos”. Isto calou-os. E, como a especulação política fosse impossível, o zelo pela moralidade esfriou.

De resto, a opinião geral não os seguia, muito indiferente, favorável mesmo ao Azevedo, numa deferência pelos que estão de cima. Quando na loja do Loureiro se discutiu o caso, todos se desinteressaram, achando desculpas: “Que diacho, o Azevedo era um rapaz solteiro, tratava de arranjar a sua vida conforme podia... e a rapariga lá lhe encontraria também as suas conveniências.”

O velho Peres, o antigo juiz ordinário, bom latinista e muito devasso, teve um dito feliz, recordando-se a propósito do seu Terêncio.

Homo sum: humani nihil a me... — disse ele, não terminando a citação, numa meia palavra de bom entendedor.

Na roda, sem perceberem bem, ficaram convencidos, celebrando o dito, penetrados de respeito pelo texto latino.

Unicamente o Cairão, tocado pela esposa, se mostrou um pouco inquieto. Chegou a consultar o Lopes; mas este tranquilizou-o:

— Olhe, Sr. Cairão, eu não sei o que há, nem quero saber. Em todo o caso não me parece coisa de circunstância... sim, não anda nisso envolvida uma família das nossas relações. É uma rapaziada!... E nós quando éramos rapazes não fizemos também o que pudemos?

— Lá isso é verdade... e mesmo agora, hem!... e mesmo agora! — disse o Cairão, com as rugas apanhadas num sorrisinho brejeiro.

Olharam um para o outro satisfeitos, remoçados até por aquela aventura, numa alegria de velhos gastos, que folgavam na taberna. E nunca mais falaram no assunto — era uma questão liquidada.

A opinião feminina... essa foi contrária à Margarida, absolvendo o sedutor. Achavam-lhe simplesmente mau gosto. Uma das moças do Azevedo, a Bárbara, rapariga de muitas posses e nada má, resumiu-a no fim de uma conversa com a Rita do forno:

— Até parece impossível, com uma lesma daquelas!

Nisto é que todas se matavam: “o que encontraria o Azevedo naquela lesminha, naquela santinha de pau carunchoso?”

Mas algumas senhoras protestaram com mais aspereza. Uma manhã, à missa das dez, quando as Pascoais vieram ajoelhar ao pé da capela do Santíssimo, a D. Plácida, a amiga íntima da D. Amália, puxou ostensivamente a filha para o lado, arredando-a daquele contato impuro. A Margarida não percebeu; mas a corcunda viu o gesto, e, muito pálida, abaixou os olhos sobre o livrinho de missa.

Efetivamente a Margarida não percebia. Vivia, como o Júlio, nas regiões aéreas. Concentrava-se no gozo íntimo de uma coisa que ela sabia sem ninguém lhe ter dito, por um saber lá de dentro, todo instintivo. Repetia mil vezes consigo: “Ele gosta de mim”; e a felicidade que lhe davam estas palavras transbordava, enchendo-lhe os olhos de lágrimas. No entanto, ambos iam dando que falar às más e às boas línguas da vila.

O Júlio agora vinha todas as manhãs, e voltava todas as tardes — naquelas tardes intermináveis de Junho. Entrava ao cair do dia, quando o Sol se ia escondendo atrás das últimas serras numa cor sanguinolenta de incêndio. Nesta hora, morta para o trabalho, as duas raparigas, ao largar da agulha, andavam no quintal, ocupadas nos arranjos da casa. E o Júlio sentava-se também cá fora, ao pé da janela do velho. Uma ou duas vezes estranhou a Henriqueta. Pareceu-lhe constrangida, hesitante, como desejosa de lhe falar. Achou-a mesmo mais pálida, com o perfil mais afilado. Coitada... talvez estivesse mais doente? Mas sempre ativa, girando de um lado para o outro no seu passinho desigual, entretida com os pássaros do pai, mudando a água dos bebedouros; e, quando se aproximava dele, sempre com o mesmo sorriso triste e bom.

Algumas tardes vinha por ali o Pedro carpinteiro: “dar notícias ao sior Pascoal da passarada”. Era um grande amigo do Azevedo, andava sempre a desafiá-lo para irem às perdizes, ao reclamo; tinha dois perdigões como não havia outros na vila, nem dali muito longe:

— Ó sior doutor, onte à tarde ali ós carrascais da Mãe-d'Água era uma praga. Abalei daqui já depois das três horas, e inda matei quatro.

— Homem, é tempo de defeso — objetava-lhe o Júlio.

— Ora, isso o que monta?... Ninguém repara.

A conversa esgotava-se, e ficavam muito tempo em silêncio. O Pedro, sentado no fundo de um cesto, inclinava-se para diante na sua fisionomia parada e paciente de homem do povo, enrolando lentamente o cigarro nos dedos duros.

Ficava ali como ficaria noutra parte, numa tranquilidade de animal, habituado a todas as maçadas. E o Júlio caía num sonhar vago, tocado daquele adormecimento contagioso.

Mas a Margarida voltava do terraço do fundo, de regar os goivos, corada, levemente despenteada do trabalho, sacudindo os pingos de água da saia; e, sentando-se no ângulo do alegrete, voltava para ele os olhos negros, calada também, embebida na quietação da hora.

Sob as árvores, as sombras cresciam, mais negras e mais úmidas. Na obscuridade nascente, as formas veladas perdiam as proporções; a ruazita das alfazemas alongava-se; todo o quintal parecia maior, sem limites definidos. E defronte, do outro lado da rua, o Júlio via a sua casa, a janela do seu quarto aberta, a fachada cinzenta, um pouco vermelha ainda nos últimos clarões do céu. Vista assim de baixo, a velha casa dos Azevedos, com as grades negras de ferro batido, e, nas ombreiras de pedra, as manchas amareladas e redondas dos líquenes mortos, tinha um ar severo, dominando o quintalzinho plebeu do alto da sua aristocracia.

O Júlio às vezes julgava ler uma censura naqueles muros denegridos; mas desviava os olhos, procurando o perfil da sua Margarida, indeciso já na luz quase extinta. Sentia-se preso no amor da rapariga; sentia-se enredado também na doçura neutra daquela existência, para que o atraía o seu sangue apático de provinciano, para que o preparavam as fortes impressões da sua primeira mocidade.

Numa preguiça invencível ia-se demorando até ser já escuro. A Henriqueta acendia a luz no quarto do Pascoal; e cá fora, a aragem fresca da noite levantava-se, passando nas folhas finas das amendoeiras, que tremiam num sussurro de gozo, consoladas depois do longo dia abrasador.


CAPÍTULO 10

Mas, de repente, esta tranquilidade alterou-se. A campanha eleitoral tomava uma feição nova. Os ministeriais, que pareciam batidos, acordaram numa febre de trabalho. Do governo civil vieram ordens terminantes, ameaças de transferência e demissões, promessas de empregos, autorização até, segundo diziam, para gastar muito dinheiro. E o candidato do governo — um tenente-coronel de engenheiros — chegou também, indo alojar-se no Lendroal, em casa dos Carvalhos, a quatro quilômetros da vila. Foi então um sem­cessar de mensageiros. De manhã, de tarde, altas horas da noite, os moços do Lendroal nas éguas do monte, nas mulas da lavoura, vinham trazer recados ao administrador, ou atravessavam a vila, levando cartas para a capital do distrito. Este ruído de bestas pelas ruas irritava o comendador, e punha o Castro num contínuo sobressalto.

Tinham, porém, dias de triunfo e de vingança, quando os criados do visconde chegavam da sua quinta de São Marcos, onde ele agora estava. Vinha às vezes o feitor, um homem sério, já grisalho, na égua ruça do amo. Mas quem sobre todos fazia efeito era o perreiro, o Joaquim Poças, um mulato alto do Sado, de jaqueta de peles, espingarda de dois canos atravessada, montado no seu cavalo preto, que marchava em passo espanhol, com um grande barulho nas calçadas, deixando a perder de vista as mulas do Lendroal. O comendador chegava então à janela da Praça, gritando aos seus criados: “que recolhessem o cavalo, que lhe deitassem ração”; e ao Joaquim Poças:

— Suba, Joaquim, suba!... Você vai tomar alguma coisa, enquanto eu respondo à carta do Sr. Visconde.

Tudo isto azedava os ânimos. Da botica do Moniz, os amigos do Júlio olhavam, desconfiados e irônicos, para as entradas e saídas na loja do Faria, ao outro canto da Praça.

Mesmo as relações pessoais estavam quase cortadas. Apenas o João Gualberto, partidário fiel mas de gênio fácil, parava algumas vezes à porta do Faria e trocava uma chalaça com o administrador, apertando a mão ao Joaquim Carvalho, um companheiro de caçadas. E o Castro não via aquilo com bons olhos, resmungava:

— É uma asneira do João Gualberto estar-lhes a dar confiança.

O Júlio, sem querer, andava mais envolvido na eleição. Duas, três vezes por dia, ia ver a Margarida; mas ficava menos tempo com ela, achava-se mais preso, mais rodeado. O Chico barbeiro e o Norberto vinham procurá-lo a casa; traziam notícias das manobras; alegavam serviços, contando as boas partidas que tinham feito ao Faria. E os eleitores, dependentes da casa dos Azevedos, apareciam também, obsequiosos, no seu ar cauteloso e fino de homens do campo — ofereciam o seu préstimo, fazendo jus a favores futuros.

Emaranhado numa série de intriguinhas, o rapaz aborrecia-se, voltava às ideias do princípio. Queria fazer uma reunião popular, dizer àquela gente o que era uma eleição, explicar-lhes os seus direitos, mostrar-lhes que iam votar contra um governo imoral e estúpido. O candidato ministerial tinha chegado... Pois bem! Que viesse à reunião defender-se. E, lembrando-se dos seus triunfos nas assembleias acadêmicas, o Azevedo sentia um desejo vivo de controvérsias. Então, o comendador dissuadiu-o, demonstrou... “ao seu jovem amigo, que tudo aquilo podia ser muito bom em países adiantados, onde o povo tinha ilustração... ali não... ganhavam mais no trabalhinho de sapa... além disso a eleição estava segura”.

O Castro foi mais positivo, num grande desdém pela palavra:

— Parolas, Sr. Azevedo! Isso com eles não pega! Olhe, prometa-lhes o senhor dividir em sortes a sua herdade de Vale de Pegas; arranja mais vinte votos em São Miguel, e ainda, em cima ganha dinheiro.

E, conhecendo os negócios do candidato a fundo, muito melhor do que ele próprio, o Castro fazia-lhe as contas:

— Vale de Pegas anda arrendada em trezentos mil réis: se a der ao quarto tira dali dez moios de trigo e cinco ou seis de cevada, uns anos por outros... e fica-lhe a pastagem livre...

O Júlio, nervoso, sem ânimo para lutar, cedia, prometia dividir a herdade, caía indiretamente nas compras de votos, que tanto lhe repugnavam. E agora, mais de perto, via também as pressões, com que se não podia conformar. Não sabia apertar as cordas nas gargantas. Chegou a trabalhar contra si.

Um domingo, ao sair para a missa, encontrou na escada uma mulher ainda bonita, com um belo olhar direito, e os cabelos pretos apenas riscados de fios de prata.

— Eu vinha falar a sua eicelência por via dos votos — disse-lhe ela, no ar desembaraçado das alentejanas do povo.

— Ah! por causa dos votos! — respondeu o Júlio, a quem esta palavra “votos” fazia mal aos nervos.

— Sua eicelência já me não conhece.... já se não lembra da gente... inda nem ali foi abaixo à sua horta. Eu sou a Prazeres, a sua hortaloa da horta dos Frades.

— A Prazeres! — exclamou o Júlio. — Lembro-me perfeitamente!

E lembrava-se; na sua memória tenaz passou num momento a visão da horta: a linha das faias brancas e o canavial ao fundo; a mancha vermelha do romeiral em flor; o porquinho louro, grunhindo debaixo da figueira, preso à estaca por um pé. A Prazeres, casada então de fresco e uma linda moça, fora a sua primeira paixão — aos treze anos. Quando artificiosamente podia convencer o Pascoal, lá iam os dois parar à horta; e não dormia de noite, meditando planos complicados e perversos para dar um beijo na horteloa, atrás do canavial. Os planos falharam sempre, e deles nunca teve conhecimento, nem a Prazeres, nem ninguém.

— Ora a Prazeres! — repetiu o Júlio, muito alegre de a ver. — E você ainda está na horta?

— Pois stou, mailo meu Bento e os rapazitos. E hoje vinha cá falar ó senhor por via do voto do meu homem.

— O seu homem vota em mim naturalmente.

— Pois ‘stá bem. O Sr. Lopes mandou dizer à gente, que lhe havêramos de dar o voto, quando não que nos tiravam a horta, p’rá dar ao Zé da Rita, que a quer. Mais a gente conhece a razão; somos rendeiros cá da casa vai pra dezesseis anos, e o meu homem disse logo, que o seu voto havera de ser cá p1rá casa. De todo ó modo sempre ficamos desgraçados.

 — Sempre ficam desgraçados!?

— ‘Stá bém que ficamos. Bem vê sua eicelência que a horta é piquinina, e a gente ali só não se podia governar, jamais com quatro filhos. Como o meu homem tinha a parelha, pidiu umas terras ao Sr. Cravalho, na herdade dele que fica aí pegada com os Coutos. Assim é que nos temos governado, com o que sameamos nas terras do Sr. Cravalho, e alguma coisa que dá a horta. De maneiras, que as semanas passadas o Sr. Lopes mandou-nos aquele recado; e ante o Sr. Cravalho foi estar com o meu homem, e disse-lhe, que lhe havera de dar o voto p’rás outros, ou que o deitava fora das terras. Já vê sua eicelência que sempre ficamos sem as terras, ou sem a horta... sim... de todo o modo sempre ficamos sem o nosso governo.

A Prazeres contou a sua história serenamente, sem lamúrias, num desprendimento fidalgo dos interesses materiais; mas o Júlio escutou-a em espinhos. Que diacho de história tão desagradável... uma complicação de horta, e de terras, e de hortelões desgraçados por causa dele! Depois, o belo olhar claro da Prazeres lembrava-lhe a sua antiga paixão.

Via a rapariga de outros tempos, forte, de lenço vermelho atado na cabeça, dando a travia ao bácoro com os braços nus — uns braços que o faziam tremer todo. Daquele primeiro acordar da imaginação e da carne ficava-lhe uma ternura vaga, uma amizade pela mulher. Mentalmente mandava a eleição, e o Carvalho, e o Lopes para... sítios muito distantes; e, de repente, numa inspiração:

— Olhe, Prazeres, diga ao seu homem que dê o voto aos Carvalhos, percebe. E quanto a tirarem-lhe a horta... isso é comigo, pode ficar sossegada.

Safava-se já, sem a querer ouvir mais; mas de baixo chamou-a:

— Ouça lá... vocês não falem nisto, é escusado que o Sr. Lopes, ou o Sr. Castro o saibam.

Subiu a rua, em direção à freguesia, muito satisfeito com aquela solução; contente de ter deixado a Prazeres tranquila; numa alegria de estudante ao lembrar-se do voto, roubado ao Lopes, e ao Castro. Apressou o passo, porque era tarde.

Em Lisboa tinha deixado havia muito tempo de ir à missa, esquecido nas sonolências preguiçosas das manhãs de domingo, almoçando depois do meio-dia para ir de tarde aos touros; mas ali, na sua terra, cumpria regularmente o preceito católico. Não para fazer efeito; nem ele se lembrava de tal; nem, no nosso céptico Alentejo, uma missa de mais ou de menos era coisa que pesasse na balança de um candidato. Ia naturalmente... porque tinha ido em pequeno com a avó, à mesma igreja, à mesma hora. Reatava o fio daquele hábito, como reatara o fio de tantos outros. Logo no primeiro domingo, ao ouvir o repique bem conhecido, anunciando a missa das onze, pegou no chapéu e saiu, sem mesmo pensar no que fazia.

Mas nesta manhã chegou tarde, demorado pela conversa com a Prazeres; e, fendendo o grupo dos homens de trabalho, apinhados junto do guarda-vento, foi encostar-se à pilastra do primeiro andar, à esquerda.

A missa estava começada, e ele ficou ali, de pé, numa distração pouco devota, deixando a vista errar ao acaso pela igreja, grande, de uma nudez fria — aquele frio especial do estilo jesuítico. Via, no corpo da igreja mal cheio, os grupos disseminados das mulheres do povo, ajoelhadas com os xales pretos postos alto, quase pela cabeça, em linhas rígidas de freiras; mais adiante, junto da teia de pau-santo, os chapelinhos floridos de cinco ou seis senhoras, dando uma nota moderna, discordante ali, de meia civilização; lá ao fim, no altar-mor, o prior lendo a epístola, numa casaula verde debotada, a pequenina coroa muito nítida nos cabelos duros; e por cima, sobre as luzes trêmulas da banqueta, a talha dourada do trono, denegrida em tons roçados de cobre velho. Em volta, reparava agora nas capelas dos lados, onde, na penumbra funda, se entreviam formas indecisas — o branco sujo de um manto de imagem, a lividez doentia de um Cristo preso à coluna. E, nos azulejos azuis e brancos que revestiam as paredes, examinava curiosamente as figuras dos santos, esguias, em roupagens duras, tendo gestos falsos e sem vida de autômatos. Com as janelas do coro fechadas, tudo isto se velava de sombra, todas as cores se apagavam em entoações discretas e mortas. Apenas, lá adiante, um raio claro de sol caía de uma fresta, marcado na poeira visível — como uma cutilada de luz na obscuridade azul.

Sentia uma tristeza pairando. Pensava naquela religião, viva e aguda quando se levantou a igreja, e se pintaram os azulejos, e se esculpiu a talha; adormecida hoje, caindo numa tradição, seguida como um simples hábito por todos os que ali estavam, desde o prior até ele próprio. E pouco a pouco deixava-se penetrar por esta tristeza — a tristeza das coisas que se vão sem serem substituídas...

Subitamente, porém, uma leve emoção varreu como um sopro as suas meditações nebulosas. No vaguear distraído dos olhos reconheceu as duas irmãs, ajoelhadas do outro lado da igreja, muito atrás das senhoras elegantes; e o coração bateu-lhe ao ver a Margarida, direita e graciosa no xalinho castanho, o modesto lenço de seda carmesim sobre os cabelos escuros. Foi uma surpresa. Não as esperava ali; elas iam habitualmente à Misericórdia, às dez horas, ouvir a missa do padre José. Mas não teve tempo de fazer reflexões; o prior despachava as últimas rezas, cortando atalhos pelo latim, e todos saíam já, num arrastar lento de pés.

Cá fora, na luz deslumbrante do adro, o Júlio encontrou um grupo de rapazes conhecidos: o sobrinho do Galrão; o Moniz, esperando a D. Carolina e a namorada; o próprio Mena, que apesar de não ouvir missa por causa dos seus princípios, vinha por ali ver as moças. Demorou-se um pouco com eles; e, quando as Pascoais saíram, foi-lhes falar muito naturalmente, apertando-lhes a mão, retendo um instantinho a da Margarida na rua. Despediu-se delas muito alegre, dizendo alto:

— Até logo.

Mas, ao voltar para o grupo, feriu-o um riso parvo, insolente, estampado na cara dos três rapazes. Teve uma destas impressões frias, súbitas, irrefletidas de cólera; e, a voz baixa, o olhar direto sob as sobrancelhas apertadas:

— O que estão os senhores a rir?

O ar do Azevedo era tão agressivo, que o sobrinho do Galrão bateu prudentemente em retirada; e o Mena, disfarçando, se afastou dois passos. Unicamente o Moniz resistiu ao choque, fiado na intimidade maior, naquele tu que lhes ficara do latim. Meteu no caso a bulha, querendo brincar:

— Anda lá, maganão, que não perdes o teu tempo... parabéns, a rapariga é boa deveras!

— Que tolice, ou que infâmia é essa? — perguntou-lhe o Júlio entre os dentes.

— Homem, não te zangues... ninguém te pede que te confesses! — respondeu-lhe ainda o Moniz, já muito comprometido.

O primeiro impulso do Júlio foi retalhar-lhe a cara com a bengala; mas, num resto de sangue-frio, percebeu que não remediava nada com isso; e voltou-lhe as costas, violentamente agitado. Via tudo, absolutamente tudo. Como um relâmpago no campo nos mostra na décima parte de um segundo os mais pequenos acidentes do terreno, aquele riso de três parvos mostrava-lhe agora tudo quanto se dizia e se pensava em volta dela.

No caminho para casa, e já depois, fechado no quarto, revolvia todos os indícios que tão estupidamente lhe escapavam até àquele momento — todas as meias palavras, todos os sorrisos significativos. Dava agora o verdadeiro sentido à luz fria e dura que vira brilhar nos olhos da D. Amália, nas duas ou três vezes em que inocentemente tinha falado da rapariga diante dela. Lembrava-se também da expressão constrangida e aflita da pobre mana Henriqueta. Todos então sabiam, todos falavam daquilo! E numa revolta — que ele julgava ser a revolta da sua justiça, mas era no fundo a revolta do seu amor — sentiu um desejo louco de ir pelas ruas, gritar àquela vila imbecil: “que se enganava, que ele nunca tinha roçado os beiços pelo cabelo da Margarida”.

Mas, no instante seguinte, viu a inutilidade dos seus protestos: caiu numa desanimação. Achava-se desarmado diante da calúnia intangível. Ainda quando ele corresse a pontapés o Moniz e o Mena, e todos os Menas, a calúnia ficaria de pé, avivada mesmo pelo escândalo. E tanto menos a podia destruir, quanto era plausível... tinha uma razão de ser. Acusava-se agora de imprudência, de estupidez. No seu egoísmo bruto, só porque lhe era agradável passar longas horas junto dela, tinha-se esquecido do que podiam dizer, tinha-a dado em pasto às más-línguas de uma terra pequena. A consequência ali estava. Quando partisse para. Lisboa, eleito deputado, triunfante e tranquilo, deixaria atrás de si um rasto de lama — uma pobre rapariga perdida de reputação, e tendo para a defender uma irmã corcunda e um pai paralítico. E era irremediável isto!

Lentamente — o mundo exercendo mais uma vez o seu mister habitual de Galeoto —, uma ideia germinou no espírito do rapaz, indecisa e confusa a princípio, sem que ele próprio a quisesse formular claramente. Sim... era irremediável... se todos o acreditavam... se todos o diziam... por que não viria a ser?... por que não seria a sua Margarida realmente sua? Ele então, delicada, muito delicadamente, poderia melhorar a sua situação, instalá-la numa casa boa, rodeá-la de bem-estar, de luxo mesmo — aquele luxo de província, que no fim de contas se pode ter com tão pouco. Não renunciava à sua vida livre de rapaz solteiro, às suas novas e ainda pouco arraigadas ambições políticas, aos seus hábitos sobretudo. Não... nem era necessário... continuava a viver em Lisboa, independente, tal qual como antes. Somente, viria ali passar meses, muitos meses, com ela. Isto convinha­lhe mesmo; administrava a sua casa; podia talvez montar uma lavoura, quando terminassem os arrendamentos das suas herdades. Esta ocupação sorria-lhe. Afinal estava cansado da sua antiga existência, inútil e ociosa. E quanto a ela, havia de a cercar de tanto carinho, de tantas a tenções, de tanto respeito, que a imporia ao respeito de todos!

E um momento deteve-se com satisfação neste plano. Via diante de si uma vida tranquila, quase regular; a Margarida junto dele para sempre, feliz e...

Mas, no fundo do seu espírito ou do seu coração, alguma coisa se insurgia contra todos os seus planos, deixando-o mal consigo.


CAPÍTULO 11

E, ao outro dia de manhã, o Azevedo permanecia nas mesmas dúvidas, na mesma irritação surda.

Na véspera à tarde, muitas horas depois da cena do adro, tinha descido como costumava a casa das vizinhas. Encontrou a Margarida como sempre, naquele seu enlevo submisso, concentrada na sua paixão, feliz de o ver, esquecida de si e dos outros. A Henriqueta fez-lhe o efeito de estar mais triste, mais inquieta; ou porque realmente fosse assim, ou porque ele agora a observasse melhor. E tinha ali ficado até ser noite, no seu quintalinho querido, que lhe pareceu muito diferente. Ainda lá estavam a ruazita das alfazemas alongando-se na sombra, e as amendoeiras recortando a folhagem fina e negra no clarão vermelho do sol-posto; mas a paz exterior das coisas tinha fugido, dispersada e desfeita pela agitação interna do espírito. Saiu dali sem fixar uma ideia; voltava agora para lá no mesmo estado, impelido unicamente pelo desejo imperioso de ver a rapariga.

Quando correu o ferrolho da porta, e entrou na casa de fora, viu a Henriqueta sozinha, sentada à banca de pinho da aula, apesar de não ser ainda a hora da lição. Estava-o evidentemente esperando. Veio logo ao seu encontro, ao mesmo tempo hesitante e decidida, como quem obedece a uma resolução penosa, longamente meditada. E, sem rodeios, sem mesmo lhe dar os bons-dias, naquela coragem precipitada dos tímidos, perguntou-lhe numa voz baixa, um pouco trêmula:

— É nosso amigo... não é verdade?

— Se sou seu amigo, mana Henriqueta... Que pergunta!

— É que eu queria-lhe pedir uma coisa. Há muitos dias que lhe quero pedir isto, sem ter ânimo... e tenho feito mal... mas custava-me tanto! Queria-lhe pedir que viesse cá menos...

A um gesto involuntário do Júlio, a Henriqueta pôs-lhe no braço a sua mão de doente, branca e fraca, num toque doce, apenas perceptível; e levantando para ele os olhos, já cheios de lágrimas:

— Eu bem sei que não faz mal nenhum... mas é para sossego da... de nós todos. E não lhe peço que deixe de cá vir...

Bem vê, daqui a pouco vai-se embora para Lisboa, e nestes dias que faltam vem menos vezes... sim?

Como o Júlio hesitasse, calado, ela acrescentou ainda, cada vez mais pálida:

— Lembre-se que foi criado conosco, como se fôssemos suas Irmãs.

— Tem razão, mana Henriqueta! — disse o Júlio; e saiu.

Tinha razão... ele não devia, não podia ir ali. Mas ao encontrar-se na rua experimentou uma sensação de isolamento doloroso, como se o tivessem transportado subitamente para uma terra distante, desconhecida e hostil. Só, sem ter para onde ir, viu bem o lugar que no seu coração, nos seus hábitos, na sua vida inteira, tinha tomado aquela casita pobre, onde agora não podia voltar. Sem ânimo de entrar na sua casa, receoso da solidão do seu quarto, subiu a rua, dirigindo-se para o centro da vila. Sentia a necessidade de um conselho, de um desabafo. Se ao menos tivesse ali um amigo — um destes amigos, que nós ouvem pacientemente, com um bom sorriso de simpatia nos lábios, enquanto nós, num passeio nervoso pelo quarto, vamos contando tudo, dizendo tudo, como se pensássemos alto! Mas que podia ele dizer àquela gente dali, que lhe profanara o amor nas suas suposições materiais e brutas? E, pensando bem, lembrou-se que em Lisboa estaria no mesmo isolamento. Não tinha um único amigo a quem falasse naquilo. Os amigos de São Carlos, de rosa na casaca, o cérebro vazio sob o cabelo correto, a quem ele contava a rir as aventuras com a Adelaide, a quem mesmo nuns momentos de condenável vaidade — tinha deixado entrever algumas das peripécias da sua ligação com a D. Sofia, a esses não podia falar na Margarida. Este sentimento novo escondia-se nos retraimentos de um pudor, absolutamente novo também.

Sentindo-se infeliz, o candidato vitorioso ia subindo a rua sem destino, sob o Sol a prumo, brutalmente reverbado na calçada e no branco violento das paredes. Respondia um pouco desconfiado às saudações das pessoas que encontrava; julgava ver nas caras de todos, aquele riso parvo do Moniz e do Mena; parecia-lhe que atrás dele deviam dizer: “Ali vai o Azevedo com quem está a Margarida do Pascoal.”

No seu desejo de ver alguém, de fazer alguma coisa, fosse o que fosse, tendo horror a entrar na botica, ocorreu-lhe ir procurar o Castro — esse ao menos só lhe falaria na eleição.

E, quando o encontrou, sugeriu-lhe um plano, uma expedição, a primeira coisa que lhe veio à cabeça: “Talvez fosse bom irem à Corte, falarem com o prior, o padre Soares, saberem o que por lá se passava?” O Castro caiu das nuvens ao notar-lhe este excesso de zelo; mas não era homem que deitasse água na fervura de ninguém, muito menos em uma fervura eleitoral. Combinaram logo jantar cedo para ir de tarde. Iam no carrinho — a estrada municipal de macadame já chegava mesmo à aldeia.

E às cinco horas, sob um sol de chumbo, lá se foram pela planície enorme, sem uma árvore, ao trote choutado do cavalinho lazão. O Júlio sentiu uma espécie de prazer naquela viagem desagradável, através de uma desolação amarela e seca; a erva seca nas valetas da estrada; as searas de trigo, sem fim, ainda de pé, oscilando lentamente num ruído seco de palha já morta; os restolhos das cevadas quase brancos, feios e hirtos como uma barba de oito dias; e, ao longe na estrada, a poeirada seca, levantando-se num destes pés-de-vento, súbitos e sem razão de ser, das tardes quentes.

Voltaram já de noite. O rapaz ao menos tinha gasto a tarde, e trazia os nervos aplacados pelo cansaço físico, a cabeça azamboada do sol, os rins moídos das molas infernais do carrinho. Apesar de ser tarde, quase dez horas, vestiu-se e saiu para ir a casa do Lopes. Conservava ainda o receio do seu quarto, do isolamento, de se achar face a face consigo mesmo.

Encontrou o comendador na casa de jantar, só com as duas irmãs e o padre José, sabendo já da expedição à Corte e desejoso de notícias. As notícias eram excelentes; os eleitores, teimosos a princípio no tal aforamento do baldio, cediam todos, levados principalmente pelo prior e pelo Cairão, que tinha ali perto o seu assento de lavoura. Deviam obter na Corte uma votação quase a flux...

Mas, enquanto relatava o emprego da sua tarde, a D. Amália apareceu na porta da sala, que estava às escuras, dizendo-lhe num tom de repreensão amável:

— Ditosos olhos que o veem, Sr. Azevedo!

Efetivamente ele não fora muito assíduo nos últimos dias; e, voltando-se agora numa surpresa:

— Ah! Vossa excelência estava aí!

— Estive ali um bocado na janela da Praça. É o único sítio onde corre ar.

O Júlio tinha-se dirigido naturalmente para ela, e penetraram juntos na escuridão da sala, cortada pela fisga de luz que vinha da casa de jantar. A situação do candidato junto da D. Amália era singular e levemente embaraçosa. Logo desde os primeiros dias ele lhe notara os requebros, mais do que isso, um destes desejos claramente manifestados de mulher já madura. Esta descoberta deu-lhe uma vibraçãozinha agradável na vaidade e nos sentidos; e uma ou duas vezes experimentou uma tentação mais forte, como umas veleidades de se deixar conquistar. Reteve-o a princípio a consideração que tinha pelo comendador, tão serviçal, empenhando o seu tempo e o seu dinheiro e mo fazer deputado. Reteve-o sobretudo o lado vulgar da aventura, o sorriso involuntário que lhe despertavam as pretensões senhoris da D. Amália. E ultimamente, com a vontade e o coração presos noutra parte, deixara de pensar nela. Mas isto colocava-o em uma atitude de resistência, em uma situação de defesa, sempre difícil e um pouco ridícula mesmo da parte de um homem.

— Então foi hoje à Corte? — perguntou-lhe ela agora, encostando-se à grade da sacada sobre a Praça.

— Sim, minha senhora. Com um sol medonho... por uma estrada medonha! — respondeu o Júlio, exagerando comicamente o adjetivo.

— Coitado! — disse ela numa lamentação irônica. — Não se aflija, o fim do seu desterro está por dias...

— Não há desterros junto de vossa excelência — atalhou o rapaz na sua amabilidade antiga. — E depois, não estou nada fixado sobre o fim disto, que chama o meu desterro. Ainda não sei quando irei para Lisboa. Em todo o caso, se vencermos a eleição, volto logo depois das câmaras fechadas; e conto passar aqui muitos meses. Tenho mesmo umas ideias de não renovar o arrendamento da Pedra Negra, e de me fazer lavrador. Já vê que estou um provinciano completo.

Sem querer, o Júlio respondia mais às suas preocupações íntimas que às perguntas da D. Amália. Na obsessão da ideia fixa, falava alto daquele seu plano incerto, tão indeciso ainda, de ficar ali, de não abandonar a sua Margarida. Talvez a mulher do comendador pressentisse isso, talvez a imagem importuna da rapariga passasse de relance no seu espírito; mas não se denunciou. E vendo, ou querendo ver nas palavras de Júlio coisas muito diversas, perguntou-lhe numa voz toda cheia de intenções:

— Isso... é sério?

— Perfeitamente sério — respondeu ele simplesmente.

Ficaram algum tempo calados, encostados à grade ombro a ombro, as mãos quase unidas sobre o apoio de ferro, olhando, sem a ver, para a Praça escura e deserta. Do outro lado, nas casarias altas, vagamente destacadas em negro no céu estrelado, não havia uma luz, um sinal de vida. Apenas à esquerda, o petróleo brilhante da botica do Moniz projetava sobre a calçada uma faixa clara. E defronte, para além da loja do Faria já fechada, mesmo à esquina do Terreirinho, via-se um clarão baço na porta envidraçada do bilhar do Caxinha. De vez em quando soava o choque de uma carambola; um momento, as vozes dos parceiros levantaram-se mais altas, numa disputa. Depois o silêncio caiu de novo em volta deles. E, neste silêncio, a obscuridade da Praça e da sala rodeava-os, isolando-os numa cumplicidade. D. Amália disse baixo, como na explosão involuntária da poesia interior:

— Que céu tão bonito!

E, direita agora, olhando para cima, as mãos apoiadas sobre o ferro, os peitos salientes:

— Como as estrelas brilham esta noite! Sobretudo aquela, ali, não vê, Sr. Azevedo?

— É Vega, minha senhora — disse o Júlio que, apesar de formado em Direito, tinha seus laivos de astronomia popular.

— Se eu amasse alguém que estivesse longe — continuou ela — havíamos de escolher esta estrela, para todas as noites a contemplarmos à mesma hora. Nunca olhou assim para uma estrela?

— Francamente nunca! — respondeu o rapaz com um leve sorriso, que se perdeu na obscuridade.

Mas a D. Amália cortou a conversa numa frase inesperada, que deixava pairar a suspeita da culpa sobre as suas inocentes relações:

— Vamos para dentro, Sr. Azevedo... podem reparar.

Dava meia-noite quando o Júlio se encontrou na rua, entregue de novo às agitações do seu espírito, esquecido da D. Amália. Veio lentamente, sem vontade de entrar em casa; e quando chegou à porta ficou-se a olhar para a casita pobre da sua Margarida, donde o expulsavam a mana Henriqueta e... o dever. Mas, na claridade frouxa das estrelas, pareceu-lhe ver uma das janelas meia aberta. Teve a intuição de quem ali estava, e, atravessando rapidamente a rua, perguntou baixo:

— É você, Margarida?

Uma forma indecisa recuou um pouco para a escuridão interior; mas ele, conhecendo-a, perguntou ainda:

— Que é... sucedeu alguma coisa?

— Não... nada... eu não podia dormir. Por que não veio hoje cá em todo o dia? — disse ela numa queixa muito humilde.

O Júlio tomou-lhe a mão, murmurando umas desculpas confusas... “gente que o tinha procurado de manhã... aquela maçada de ter de ir à Corte”.

Lentamente puxava-a para si; e ela, cedendo mais ao impulso interior que à sua pressão, encostou-se ao parapeito, um pouco debruçada. Muito perto agora um do outro, tinham os olhos confundidos, as mãos apertadas e trêmulas; e de repente sem uma palavra de amor que não era precisa, colaram as bocas num beijo interminável. Ao contato úmido dos seus beiços entreabertos, sentindo-a abandonar-se, desfalecida e entregue, o amor do Júlio — ainda agora casto e quase ideal — completou-se subitamente num desejo ardentíssimo. Queria-a toda... toda! Queria-a na vibração das mais Íntimas fibras. Queria-a, sim, num desejo ainda cheio de ternura, purificado pela identificação com a paixão interior, num desejo, que era como a aspiração infinitamente doce e infinitamente intensa para a união absoluta de dois seres, almas e sentidos; mas que... nem por isso o dominava menos rude, menos imperiosamente...

O parapeito da janela era baixo, o Júlio apoiou as mãos em cima para o galgar de um pulo, e... nesse instante teve uma singular reminiscência teatral. Viu-se como o Fausto, à janela da casa casta e pura, apertando nos braços a Margarida. Esta lembrança estranha, cortando a violência da sensação, salvou-o de uma ação má. Ouviu atrás de si o riso de Mefistófeles, e não lhe quis dar razão. Pegou com as duas mãos na cabeça da rapariga, puxou-a mais para si; e dando­lhe um beijo muito longo na testa, à raiz do cabelo — naquele sítio tanto tempo desejado — fugiu para casa.


CAPÍTULO 12

Durante três dias, o Júlio cumpriu religiosamente a promessa tácita, feita à mana Henriqueta. Durante três dias não entrou uma só vez na escola; e quando, na primeira noite, ao recolher a casa, viu aberto aquele postigo, junto do qual experimentara a mais doce comoção da sua vida, teve a coragem extraordinária de se não aproximar. Nas noites seguintes, a janela estava fechada, e tudo quieto e silencioso, como de costume.

Nestes três dias, o rapaz atravessou todas as fases, que vão da irritabilidade violenta à prostração desconsolada. No compartimento mortal das horas tentou trabalhar. Pegou de novo no seu romance, bastante adiantado nas primeiras semanas de estada ali. Releu os capítulos já escritos, em que ele contava a entrada de um provinciano na vida de Lisboa um advogadozito pobre do Norte, lançado de repente na roda literária das redações, e na baixa cozinha política. Ao mesmo tempo, um deslumbramento e uma desilusão. Um assunto bom — tendo apenas o defeito de ser inspirado diretamente por algumas páginas das Illusions Perdues de Balzac — e que ele tratara com uma certa força. Mas quando agora quis prosseguir, o trabalho recusou-se, a frase não vinha, a tinta não corria, pegada aos bicos da pena. Rasgou nervosamente meia dúzia de folhas mal escritas, e não continuou.

O romance vivido desviava-o do romance inventado.

Na tarde do quarto dia, vestido já para a recepção semanal do comendador, parlamentou com a sua consciência. Não lhe era possível viver assim. Tinha feito muito mais do que podiam esperar; mesmo a mana Henriqueta não lhe pedira tanto. Não queria passar nem mais uma hora sem ver a sua Margarida, sem lhe ouvir a voz, sem ao menos lhe apertar a mão. E, cheio de emoções diversas, o coração a bater, desceu a escada e foi direito ao quarto do Pascoal. O escrivão teve uma grande alegria ao vê-lo, achando logo o motivo da sua ausência: “Estava claro, o menino tinha tido muito que fazer, por força, nas vésperas da eleição.”

Uma única coisa preocupava agora o Pascoal, e era estar ali pregado na cama, não lhe poder dar o voto. Pois todos haviam de dar o voto ao seu menino, menos ele! Não se conformava com isto. Pensava até em pedir ao Pedro carpinteiro e a outro que o levassem à igreja numa cadeira, numa escada, fosse como fosse. O Júlio, sorrindo, consolou-o, explicando-lhe que o seu voto não havia de fazer falta, contando-lhe com muita pachorra o estado próspero da campanha eleitoral. Enquanto falava com o velho, examinou atentamente a mana Henriqueta, que, tranquila e triste, cosia na sua cadeira baixa, e o acolhera à entrada com um olhar agradecido, mas muito desconsolado. E só dali a pouco, quando a Margarida apareceu, ele penetrou bem o olhar na Henriqueta — o olhar desconsolado de um médico, que tivesse aplicado um remédio heroico já fora de tempo. A Margarida estava muito mudada; lembrou-lhe a singular visão que ele tivera junto da mesa do monte. Parecia sair de uma doença, pálida, as olheiras cavadas, os olhos maiores, como dilatados pelo sofrimento.

E na verdade tinha sofrido muito naqueles três dias; tanto mais, quanto não percebia nada do que se passava. Havia tempo já que o seu enlevo alegre e descuidado se desvanecera. Tinha revolvido longamente um problema doloroso na sua cabecinha ignorante, mas inteligente. Sabia que não tinha nada, absolutamente nada a esperar do seu amor. Vivia no presente, procurando afastar do espírito um futuro, que não existia para ela. De um momento para o outro o seu Júlio iria para Lisboa, esquecendo-a... talvez? deixando-a em todo o caso ali, só, entregue às suas recordações, à sua paixão, que, longe como perto, devia durar sempre! Estava preparada para isso. Pertencia à raça das mulheres que aceitam facilmente a dedicação e a dor, como sendo o seu destino natural na vida. Resignava-se a vê-lo partir; mas isto que sucedia... não podia perceber! Ignorando o que diziam deles na vila, ignorando a intervenção da irmã, não podia penetrar o mistério do seu súbito abandono. Pois ele estava ali, defronte, e não a queria ver... porquê? Por que não gostava dela... então que significavam a sua voz e o seu olhar dos tempos felizes?... Que significava aquele beijo, que ela sentia ainda nos beiços, de dia e de noite?... E o outro beijo, talvez melhor e mais doce, que lhe dera longamente na testa, ao despedir-se?... Não percebia... e a sua dor avivava-se na picada irritante desta dúvida... por quê?... Por quê? Que lhe fiz eu?...

A o vê-lo de novo, ali, junto da cama do pai, Margarida ficou indecisa, tímida, mais pálida ainda. Todos — exceto o pobre velho — sentiam como um peso a angústia das situações difíceis. E era singular, ver como aqueles três entes, que se adoravam, permaneciam assim, mudos, constrangidos, afastados por uma desconfiança. De todos, o Júlio era talvez o que estava menos à vontade; acusava-se do sofrimento tão visível da rapariga; via bem que a doce e tranquila intimidade tinha fugido para não voltar; parecia-lhe agora aquela entrevista, antes tão desejada, mil vezes mais penosa que a ausência. E, passado pouco tempo, não podendo dominar-se, arrancou-se dali com uma desculpa qualquer, que o velho aceitou logo:

— Vá, vá, pois está claro, o menino deve ter muito que fazer!

Instintivamente, a Margarida veio acompanhá-lo alguns passos pelo corredor. Não trocaram uma palavra; mas, junto da porta, ele passou-lhe o braço à roda da cintura, teve-a um instante encostada ao peito, sentindo-a chorar devagarinho. Baixou a cabeça para lhe dar um beijo; e, sem lhe procurar a boca, bebeu-lhe nos olhos o sabor amargo das lágrimas.

O escritório do comendador estava completamente cheio.

Faltavam apenas dez dias para a eleição, e naquela noite havia reunião magna de influentes, apuramento de resultados, uma espécie de revista das tropas aliadas. Logo da porta, através do fumo denso dos cigarros, o Azevedo reconheceu nos grupos o velho Galrão, o Loureiro, o João Gualberto, o Francisco Dias, o Moniz, que lhe veio imediatamente falar, um pouco embaraçado depois daquela cena do adro. Estava ali também o Mena, convidado pelo comendador em seguida a um artigo laudatório no Clarão. À mesa, o Castro, positivo e metódico, não falava a ninguém, classificando uns papéis que ia numerando a lápis. E, num ângulo, o padre José e o prior conversavam com o padre Soares, chegadinho naquele instante da Corte, ainda de esporas, todo empoeirado do caminho. Tinham vindo mais emissários: o feitor do visconde, com uma carta do amo, em que se desculpava de não comparecer pessoalmente por estar de cama; e o irmão do João Máximo, valentão de aldeia, na sua barba loira inculta. Entre os grupos, o Lopes circulava, radiante, numa auréola de glória — a eleição estava segura, seguríssima, arquissegura!

E todos, muito alto, faziam as contas.

Ganhavam nas duas assembleias da vila. Não seria por muitos votos, porque o Faria e o administrador tinham feito nos últimos dias um trabalho dos diabos, usando e abusando de todas as tricas, de todas as prepotências — uma pouca-vergonha. Mas ganhavam com certeza; o Chico barbeiro e o Norberto cortavam a cabeça se se perdesse em qualquer das duas assembleias.

Em São Miguel ficavam em minoria. Não lhe podiam valer, era o centro da influência dos Carvalhos.

A votação da Corte compensava, porém, esta diferença e muito mais. Ali, o padre Soares e o Galrão tinham tudo a postos; e da aldeia de São Marcos — que vinha votar à Corte — o visconde trazia a sua gente arregimentada, sem lhe faltar um só homem. Restava São Gens, muito importante, onde o Lopes dispunha de grande influência pessoal, e, aliado agora com o João Máximo, devia obter uma votação quase unânime.

Tudo isto somado, apurado, feitos todos os cortes, todo os descontos, deixando margem para todas as eventualidades, dava quatrocentos votos de maioria, perfeitamente seguros. Não havia que sair desta conta. Apenas o C astro, depois de classificados e numerados os papéis, levantou um grito de prudência:

— Em todo o caso, meus senhores, é necessário que ninguém se descuide. Olhem que eles ainda trabalham como uns danados... e lá têm as suas esperanças. Eu não sei o que há... mas há coisa!

Os outros riam: “O Castro era o demônio, a eleição estava ganha, ganhíssima!” E, na certeza do resultado, felicitavam o Azevedo, cheios de deferência, considerando-o já o representante do círculo. O Lopes especialmente contemplava-o com orgulho, com um amor de literato pela sua obra — era o seu deputado, feito contra o Faria e os Carvalhos, contra o administrador, o governador civil e o ministro do Reino: “Apre! haviam de ver se se brincava com ele!” Mas todos o queriam um pouco para si — todos o tinham feito. Em roda do candidato havia como um murmúrio contínuo de adulações, enquanto o comendador, pomposo e grave na sua jubilação íntima, lhe prognosticava “... situações eminentes, a que ele tinha incontestavelmente direito pelos seus dotes, pela sua respeitabilidade de grande proprietário”.

Pouco a pouco, o Júlio animou-se, no ruído das conversas, na excitação daquela atmosfera de batalha e vitória. A eleição, de que se desinteressara quase nos últimos dias, embebido em outro e mais fundo sentimento, ocupava-o agora todo — a sua ambição voltava. Parecia-lhe de novo invejável aquele lugar de deputado, que o podia levar a tudo. No triunfo do momento, na visão de triunfos futuros e maiores, esqueceu completamente as lágrimas da Margarida. Sentia uma impressão de vaidade satisfeita ao ver-se rodeado, cheio de importância, a primeira pessoa, em volta de quem tudo gravitava, de quem todos dependiam. Porque alguns, sem perderem tempo, tomaram-no logo ali de parte, falando-lhe nas suas pretensões: “...querendo ele era uma coisa feita... os deputados da oposição gozavam de mais influência que os da maioria... todos sabiam isso”. O próprio Mena, que ainda na véspera, irritado pelos seus ares arrogantes no adro, lhe chamara na ausência “uma besta”, enfiou-lhe o braço, familiar e subserviente, dizendo-lhe ao ouvido:

— Olhe lá, Azevedo, não me deixe ficar enterrado nesta pelintrice desta terra. Em sendo tempo, eu me farei lembrar.

E mesmo o Galrão e o padre Soares, entalando-o a um canto, chegaram a submeter-lhe o plano de um discurso, uma interpelação ao Governo: “A diretriz da estrada de primeira classe, que devia passar à parte de cima da Corte, e agora desviavam para os lados de São Miguel, contra toda a justiça, contra os interesses mais evidentes e mais sagrados daqueles povos...”

Nesta confusão de cálculos, de apartes, de recomendações, o tempo correu rapidamente. Davam já dez horas, e alguns começavam a sair. No momento das despedidas, o escritório tomava uma aparência pitoresca e bélica, ares de quartel-general. Os que partiam para longe, e se não tornavam a ver até à hora da batalha, recebiam as últimas instruções, os últimos apertos-de-mão. Tinham a gravidade decidida de oficiais, que vão ocupar os seus postos de combate. O padre Soares ficava naquela noite em casa do padre José, mas saía logo de madrugada para a Corte. O feitor do visconde ia já para São Marcos, tinha a égua aparelhada à porta. E o irmão do João Máximo também seguia dali para São Gens — só o tempo de ir buscar o cavalo à estalagem.

— Vê lá se te saem ao caminho — disse-lhe o João Gualberto rindo.

— Isso sim!... Ainda lhes não nasceram os dentes com que me hão de morder! — respondeu o valentão, cheio de desprezo.

Os que habitavam na vila, desciam também a escada aos grupos, conversando, sem mesmo se lembrarem de entrar na sala. Mas o Júlio não podia esquivar-se polidamente a ir cumprimentar as senhoras.

Encontrou-as muito abandonadas, sós com o Moniz e o amanuense da câmara, jogando em volta da mesa um loto desanimado. No seu golpe de vista pronto, a D. Amália viu-o entrar; chamou-o com um sorriso, fazendo-lhe um lugarzinho muito apertado entre ela e a prima Joana. O jogo continuou. A Luisinha, a sobrinha mais velha da D. Carolina, tirava os números, sentada junto do Moniz, com os olhos sonsos mas brilhantes. E defronte, o amanuense da câmara, mais pálido do que o costume, passava melancolicamente os dedos no bigode preto. No silêncio sonolento, a voz fina da Luisinha deixava cair os números:

— Vinte e seis... quarenta e oito... quinze...

D. Amália, desinteressando-se do loto, começou a falar baixo com o vizinho:

— Já sei que tudo corre às mil maravilhas, não imagina o prazer que sinto com isso. Olhe, que me há de mandar dizer quando fala na Câmara... vou de propósito a Lisboa para o ouvir.

O coro de adulações do escritório continuava ali; mas mais íntimo e mais quente. A voz reprimida da D. Amália dava a estas palavras simples a significação de uma carícia lenta.

E, requebrando-se, envolvia-o de lado no olhar verde, filtrado pelas pestanas unidas. O rapaz ouvia-a confusamente, atordoado do ruído e do fumo do escritório, ficando-lhe na cabeça fragmentos das conversas políticas. Não lhe voltara ainda a visão nítida da Margarida em lágrimas; mas sentia-se outra vez preso de uma sensação dolorosa — uma destas dores surdas que nos atormentam, mesmo sem disso termos consciência. Abandonado, inerte, os nervos lassos depois daquelas horas de excitação, não reparava bem no que se passava em volta. Mas num movimento involuntário — muito apertado entre as duas senhoras — encostou de leve o joelho ao da D. Amália; e, com uma surpresa que o despertou, sentiu-a responder demorada, energicamente, à sua pressão casual.

— Quinei! — disse do outro lado da mesa a D. Carolina.

Todos fixaram os olhos no cartão. Verificavam-se os números; não se sabia bem se o oitenta e sete já tinha saído.

E, neste instante de atenção que lhes criou um isolamento, D. Amália disse-lhe ao ouvido:

— Venha comigo.

Levantou-se, vagarosa e serena, dirigindo-se para a porta de vidros, aberta sobre o terraço. Ao passar, disse na sua voz pausada:

— Luisinha, eu não jogo agora. Acho isto aqui abafadíssimo!

Da porta do terraço chamou o Júlio, que hesitava:

— Está uma noite estrelada, lindíssima! Venha ver, Sr. Azevedo.

Quando o rapaz saiu para a escuridão exterior, atravessada em diagonal pela faixa de luz da porta, ela tomou-lhe as duas mãos com força, os braços hirtos num espreguiçamento, dizendo-lhe baixo, de muito perto:

— Era então certo que me amava... eu tinha-o adivinhado há tanto tempo!

Atônito, perturbado momentaneamente numa surpresa dos sentidos, o Júlio murmurou algumas palavras incoerentes. E ficaram ali, quase defronte da porta, no risco de serem surpreendidos, as mãos enlaçadas. Ele via-a vagamente, alta e forte num vestido claro; ouvia-lhe a respiração curta, passando entre os dentes cerrados. Num movimento poético, ela levantou os olhos para o céu, dizendo:

— Vê a nossa estrela?

— É verdade, a nossa estrela! — repetiu o Júlio tolamente.

Mas a D. Amália recobrou com presteza o sangue-frio; e, na sua voz habitual, imperativa e decidida:

— Precisamos ter muita prudência... Devemos voltar para dentro... amanhã lhe direi como nos podemos ver a sós.

Quando entraram, o comendador, que tinha chegado naquele instante do escritório com o João Gualberto e o Castro, veio a o seu encontro. Radiante ainda, envolvendo-os a ambos no mesmo olhar de proteção admirativa e terna, disse para a mulher:

— Ah! estavas aí fora com o nosso deputado!

— Estivemos ali um bocadinho a tomar ar — respondeu ela tranquilamente.


CAPÍTULO 13

Pelas três horas da tarde, o moço de recados do Lopes trouxe ao Azevedo um escritinho da Sra. D. Amália — um escrito muito simples, que todos podiam ler. Dizia-lhe apenas que tinha ajustado com a D. Carolina irem dar um passeio de tarde; mas à noite estaria em casa só, e esperava lhe fosse fazer companhia. Sublinhava a palavra “só”, sem a explicar. Simples como era, este escrito veio avivar todos os remorsos do Júlio.

Porque ele agora sentia remorsos de se ter deixado envolver, um instante que fosse, naquela estúpida aventura; remorsos mesmo das horas em que se esquecera da Margarida, ocupado da eleição, no ruído de lisonjas banais e interesseiras. Numa reação inevitável, recaía mais profundamente na contemplação exclusiva e doce do seu amor; e ao mesmo tempo na angústia irritante das suas dúvidas. Mais do que nunca, estava decidido a pôr um termo àquela situação, a calar por uma vez todas as calúnias; somente... não sabia bem como. E esta ridícula aventura com a D. Amália vinha complicar tudo! Um momento pensou, que não podia recuar — a honra masculina não o permitia. Lembrou-se mesmo com um sorriso daquele sábio José, que ainda se não levantou na opinião pública, e sobretudo na opinião feminina, da prudência com que se houve em uma ocasião semelhante. Mas logo em seguida esta ideia repugnou-lhe. No egoísmo a dois do seu amor chegou a ser injusto com a pobre D. Amália. Desconhecia o que podia haver de verdadeiro, naquilo que duramente chamava “um capricho de velha”. Se fosse preciso acabava tudo numa explicação clara... Extremamente difícil e desagradável a tal explicação... mas, que remédio?

E pouco a pouco esqueceu-se do singular acontecimento da véspera; a sua imaginação fugiu-lhe para outro lado. Voltou-lhe aquela visão constante de dois olhos negros, magoados e cheios de lágrimas por causa dele. Numa esperança vaga, num impulso irrefletido, foi à janela para ao menos ver a escola por fora. Os postigos verdes estavam cerrados; o quinta linho, deserto, inundado de sol. A humildade daquela casita pobre prendeu-o. Porque no seu amor complexo, feito da antiga amizade de criança, de funda ternura, de desejos ardentes, entrava inconscientemente outro elemento, sutil e mal definido... Sabia que não tinha satisfações a dar ao seu velho Pascoal, nem à Henriqueta, nem à Margarida, pois... por isso mesmo! Ele, que se revoltaria contra uma exigência, rendia-se à submissão absoluta. Sem habilidade, na simpleza inocente da sua índole e da sua paixão, a Margarida usara da maior arma de uma mulher, diante de certos homens — a dependência. Tinha, perante a força, o encanto doce da fraqueza. Apelava para o sentimento tão viril da proteção. E todos em volta dela, na sua indiferença ou na sua hostilidade, se haviam feito involuntariamente seus cúmplices. A pouca importância dada às suas relações supostas com a Margarida, a naturalidade com que admitiam que ele tivesse seduzido uma pobre rapariga sem defesa, indignavam o Júlio. Tomava o partido dela contra todos, e... contra si.

Neste estado violento, passeando no quarto, acendendo cigarros que deixava apagar em seguida, passou a manhã toda. Jantou só, em silêncio, servido pela Bárbara, que o rodeava outra vez de atenções significativas, desde que ele deixara de andar “metido com a lesma da vizinha”. Quando acabou, veio encostar-se à velha grade de ferro forjado, com um novo cigarro entre os dentes.

E ali, apoiado à grade, olhando para o vale, recordou-se daquela esplêndida manhã dos princípios de maio, em que se encostara naquele mesmo lugar, e vira pela primeira vez a Margarida despregando a roupa no quintal em bicos de pés. Dois meses apenas... nem tanto... e como tudo estava mudado fora dele e dentro dele! Lembrava-se bem do vale ainda fresco; os olivais em flor; o trigo espigando, num verde-claro, lavado de branco; a folhagem nova das faias, fina e trêmula na aragem ligeira. Dois meses apenas!... E agora o Verão tinha passado sobre aqueles campos como um incêndio. Na várzea ceifada, amarela e feia, os restolhos deixavam ver por baixo a terra ardida, reduzida a pó, toda gretada do calor. Os olivais sem brilho pareciam cobertos de cinzas. As faias mesmo envelheciam, picadas já de folhas mortas. Todo o campo, árido, sequioso, prostrado sob o Sol chamejante, se estendia sem viço e sem vida até às últimas serras, roxas agora na luz da tarde. E por cima, no azul do céu, duvidoso e quente, encastelavam-se umas nuvens brancas, compactas, duras, como feitas de algodão-em-rama, que anunciavam trovoadas distantes. Dois meses apenas!... Lembrava-se bem da sua emoção ligeira e fresca, ao reconhecer na rapariga delgada e graciosa, a Margaridinha dos tempos passados, a antiga companheira de infância. E agora esta emoção convertera-se em um amor profundo, aquecido nas dúvidas, amadurecido na luta interior, regado já de lágrimas...

Envolvido nos seus pensamentos, o rapaz olhava distraidamente em volta, e viu com surpresa abrir-se a porta da escola. As duas irmãs saíam, caso raro, em traje de passeio, nos seus xales escuros, os lencinhos na cabeça. Num movimento involuntário, como se sentisse culpado, recuou um passo, e ficou escondido, observando-as. A Margarida levantou para a sacada os olhos, que lhe pareceram muito tristes, e desceu a rua devagarinho, esperando pela irmã. Viraram ambas no fim da rua a uma travessinha, que dava embaixo para os farrejais de fora da vila. O Júlio hesitou um instante, e decidiu segui-las; queria falar à rapariga, mesmo diante da Henriqueta, dizer-lhe... não sabia o quê, qualquer coisa, contanto que o sangue voltasse às suas faces pálidas, a alegria aos seus olhos negros!

Mas quando ia a retirar-se da janela para sair, reparou no João Lopes, que vinha do outro lado, rua abaixo, num passo rápido, nada habitual. Mandou internamente aquele maçador para o inferno; e, com o fim de lhe abreviar a visita, veio esperá-lo ao alto da escada. O comendador entrou esbaforido, excitado, muito fora da sua costumada pompa e gravidade. Sem poder falar na falta de respiração, deixou-se cair sobre a primeira cadeira que encontrou, tão alterado, num ar de caso tão estranho, que o Júlio — tocado de uma inquietação — lhe perguntou quase sem querer:

— Há alguma coisa de novo?... alguma coisa que lhe dê cuidado?

— Se há alguma coisa de novo? — respondeu o Lopes numa ironia concentrada e feroz. — Há uma traição e uma infâmia!

Ficou um instante calado, e, achando um termo mais forte, repetiu:

— Há uma pouca-vergonha, é o que há!

A consciência mal segura do Júlio disse-lhe que o marido da D. Amália sabia tudo. Não podia perceber como, mas evidentemente sabia tudo. Viu num relance todas as complicações desagradáveis da sua situação. Serenou-se, porém, num esforço de vontade; e, tendo umas reminiscências românticas, murmurou as palavras sacramentais:

— Eu... eu estou às suas ordens, Sr. João Lopes.

— Bem sei meu querido amigo... bem sei, mas não há de ser preciso. A coisa é comigo, e só comigo.

— Então, por Deus, explique-me o que é!? — exclamou o rapaz, na manifestação involuntária e muito comprometedora da sua surpresa.

— O que é? E o João Máximo que se passou. Que patife!

Fazem-lhe a ponte que ele queria no rio Crez, e dá-lhes os votos todos. Mas que pouca-vergonha de governo!... Já aí está o engenheiro para ir lá pôr as bandeirolas, chegou esta manhã. O Castro bem dizia que havia coisa. Que grande patifaria!... Manda-nos ontem cá o irmão para nos deitar poeira os olhos... e já tinha tudo combinado...

O comendador passeava na sala, agitado, falando alto:

— Que isto não nos faz diferença nenhuma. Temos a eleição aqui... fechada na mão. Ainda que ele lhes desse os votos todos de São Gens, nós tínhamos a eleição. Mas não dá... que eu para lá vou... Quero ver aquele patife cara a cara!

Na distensão dos nervos, o Júlio sentia-se agora penetrado de simpatia pelo comendador, cheio de remorsos, agradecido aos seus serviços, ao calor que ele tomava na sua causa; e num oferecimento muito espontâneo:

— Vamos ambos.

— Não, Azevedo, não! Francamente não me ajudava. Vou com o Castro, e ficamos lá esta noite no meu monte da Ferraria. Venho de manhã, mas volto outra vez de tarde se for preciso. O senhor João Máximo há de saber com quem se meteu! Que patife!... Nem você Azevedo pode calcular toda a patifaria que há nisto.

Mas o Júlio lembrou-se dos famosos novecentos mil réis, a que o comendador delicadamente não aludia.

— Aí vem o Castro — disse este, sentindo rodar uma carruagem. Desceram a escada juntos. Embaixo, o Castro deitou a cabeça fora da portinhola, dizendo ao Júlio:

— Então... que me diz a uma destas?

O comendador perguntava ao cocheiro, o Jerônimo, se vinha o alforje, e o embrulho das mantas, e a condessa, e a maleta. Tudo pronto, ao despedir-se, apertando a mão ao Azevedo:

— É verdade, a Sra. D. Amália disse-me que lhe tinha escrito, e que lá o esperava à noite sem falta. Até amanhã.

De dentro da carruagem, o comendador gritou ao cocheiro:

— Ó Jerônimo p’rá Ferraria, e toca!

O rapaz ficou um instante parado na porta, vendo a carruagem descer a rua ao trote dos machos castanhos. Pensava no João Lopes, que ia passar a noite em um monte, tratando da sua eleição... e na D. Amália, que o esperava em casa, só.


CAPÍTULO 14

O Júlio tinha perdido um tempo precioso a conversar com o João Lopes — as duas irmãs deviam ir já longe, mesmo naquele passinho demorado da Henriqueta.

Quando desembocou da travessa para o campo, ficou um momento em dúvida, sem saber a direção que devia tomar. Mas lembrou-se, que elas, em pequenas, iam bastantes vezes à horta da D. Margarida — a horta chamada dos Frades, onde estava a Prazeres, e que era agora sua. Podiam muito bem ter ido para lá — ficava perto, do outro lado do ribeiro. Ele nunca mais para ali fora desde os tempos de rapaz de escola; mas conhecia o caminho a palmos. Tomou à direita, na estrema de um farrejal, um carreirito estreito, entre chupa-méis já secos e cardos em flor. Na encosta descoberta, voltada ao poente, o Sol da tarde ainda caía pesado, num calor abafadiço de trovoada. Em cima, na matriz, ouviu dar seis horas.

Depois de atravessar o ribeiro sobre a velha ponte de um só arco, achou-se em uma das estradas, que desciam da vila. Orientou-se. Virando à esquerda, a horta dos Frades devia ficar logo ali embaixo, a terceira ou a quarta. A estrada, uma simples carreteira fundamente cortada das rodas, acompanhava a margem do ribeiro, apertada de um lado pelos valados de pitas das hortas, do outro pelas balsas de silvados, que trepavam aos troncos das faias. O Júlio seguiu-a devagar, procurando encontrar na poeira a marca dos pés das raparigas. Esta pesquisa interessava-o; dava-lhe a sensação do caçador que segue uma pista.

E, pouco a pouco, o sentimento angustioso de dúvida que o oprimia, desvaneceu-se; voltavam-lhe todas as alegrias de rapaz, toda a elasticidade de espírito dos dias passados. Esqueceu-se da D. Amália, do comendador e da eleição, sentindo-se de novo criança. Não tinha tomado uma resolução; não sabia o que ia dizer à sua Margarida sabia só que ia em busca dela. Isto bastava-lhe. O simples fato de ter saído do seu quarto, onde se agitava ao acaso como um urso na jaula, dava-lhe a excitação do sangue em movimento. Depois, a estradinha assombrada, que ia conhecendo pedra a pedra, árvore a árvore, recordava-lhe a sua vida de estudantinho de latim, as longas excursões aos pássaros com o Pascoal, o inocentíssimo namoro à Prazeres. Sorria, pensando naquela infantil paixão; e mergulhava-se mais na sua nova paixão, tão diferente, tão séria e tão funda! De vez em quando, julgava distinguir no pó da estrada a marca estreita do pé da Margarida. Devia ser!... ali adiante... dentro em pouco alcançava-a... via-a... falava-lhe!... E isto enchia-o de um contentamento intenso e louco. Parecia-lhe que toda natureza em volta celebrava o seu amor, que as árvores e as ervas estavam contentes como ele. Ao lado, o ribeiro cantava alegremente nas pedras. Por cima, as folhas das faias tremiam, num sussurro leve e festivo.

Em uma volta, viu lá o portão velho da horta dos Frades. Conheceu-o logo. E, quando o empurrou e entrou, ficou surpreendido ao encontrar tudo sem uma alteração: as faias e o canavial ao fundo; as tabuadas do romeiral, com a meia dúzia de laranjeiras grandes por detrás; mesmo, debaixo da figueira, um porquinho louro, absolutamente igual ao antigo. Não se tinha enganado; diante da porta da casa, as duas irmãs estavam sentadas com a Prazeres. Esta viu-o entrar, e levantou-se, dizendo numa surpresa alegre:

— Olha, o Sr. Azevedo!

O Júlio caminhou para elas, sorrindo, perguntando:

— Então, que passeios são estes?

E a Margarida, corada ao vê-lo, muito pálida em seguida, foi a primeira a responder:

— Ora... uma lembrança da Henriqueta. Diz que havíamos de sair esta tarde, porque eu andava assim... amarela, sem vontade de comer.

A Prazeres foi-lhe buscar uma cadeira; e o Júlio sentou-se junto delas conversando, olhando longamente para a rapariga. Achou-a abatida ainda, um pouco animada agora de o ver, de perceber que ele tinha vindo em sua procura. Revivia na sua presença, como ali embaixo, nos canteiros da horta, as plantas murchas iam revivendo na água corrente da rega. Um momento fitou-o também, avidamente, para se certificar de que o tinha outra vez junto de si. Os seus olhos encontraram-se, e eles sentiram como uma impressão física de ternura interior, os beiços trêmulos, as pálpebras pesadas. Mas o Júlio queria-lhe falar; e, reparando numas roseiras de todo o ano, que estavam mais longe, junto do tanque, disse-lhe brincando:

— Margarida, eu quero a minha rosa do costume... que me não dá, já nem eu sei há quantos dias?

Levantaram-se juntos, dirigindo-se para o tanque, e, afastados já da Henriqueta e da Prazeres, ele perguntou-lhe:

— Por que estás triste?

Pela primeira vez, instintivamente, sem saber porquê, tratava-a por tu. A rapariga não respondeu, procurando a rosa com as mãos a tremer. Ele continuou docemente:

— Não quero que estejas triste... Sabes... já me não vou embora. Fico... por tua causa... porque não posso viver sem ti. E tu gostas um bocadinho de mim?

— Para que me pergunta isso... sabe-o tão bem como eu — respondeu ela muito baixo.

O rapaz calou-se... sem saber... sem se atrever talvez a dizer o que queria. Tinha-a diante de si, com a cabeça curvada, os olhos no chão, torcendo nervosamente nos dedos o pé da rosa. Via-lhe de cima a risca estreitinha nos cabelos escuros, e a passagem para a testa, onde lhe dera aquele longo, longo beijo... um só. No silêncio em volta, ouvia-se distintamente o ruído de uma nora distante, o chocalhinho da mula, a água dos alcatruzes caindo em jorros sobre o tabuleiro. Lentamente, ele insistiu, ainda numa hesitação:

— Não, não quero que estejas triste. Quero-te alegre, feliz... feliz comigo... feliz por mim...

Margarida levantou os olhos, bebendo uma a uma as suas palavras. Na última tentativa de resistência ainda murmurou:

— Bem sabe, que isso não pode ser...

— Não pode ser, porquê? — atalhou ele. — Pois não vês que eu fico para sempre... que te hei de ver todos os dias.

Não queres que esteja sempre contigo... como antes... mais do que antes? Dize, não queres?

— Quero tudo quanto quiser — respondeu ela, muito submissa.

Interromperam-se, porque a Henriqueta se aproximava.

Não para os separar — coitada, toda a sua energia se esgotara naquela primeira e infeliz tentativa de intervenção. Vinha unicamente lembrar à Margarida, que eram horas de voltar para casa.

— É por causa da ceia do pai — explicou ela ao Júlio.

— Eu vou com vocês — disse este.

E, despedindo-se da Prazeres, saíram. Subiram a estrada vagarosamente para não cansar a Henriqueta. Estava mais fresco já. O Sol tocava nas colinas fronteiras; e as sombras das faias, alongando-se, cortavam a estrada, perdiam-se para além dos valados sobre os canteiros regados das hortas.

A aragem tinha caído. Nem uma folha bulia. No ar, úmido de repente naquele fundo de vale, espalhava-se o perfume da hortelã brava, viçosa e densa nas margens do ribeiro. Eles subiam, calados. O Júlio sentia-se menos alegre. Trazia junto de si a sua Margarida, reanimada só de o ver, esquecida já do que sofrera nos dias passados, enleada de novo na sua paixão, que a não deixava resistir, nem pensar. E... apesar disso, sentia-se menos alegre, invadido outra vez por um mal-estar... como por um remorso. Pesava-lhe não ter dito... uma coisa.

Mas, subitamente, em uma das voltas da estrada, antes de chegarem à ponte, viram à distância um grande grupo que descia. Vinha a D. Amália, a D. Carolina e as sobrinhas, a D. Plácida, o Moniz, o sobrinho do Cairão — uma ranchada. A retirada era impossível, seria uma derrota vergonhosa — do grupo também os tinham visto. Nem havia meio de o evitar; a estrada apertava-se entre as pitas e os silvados, sem uma saída. Deviam passar ombro a ombro, com os vestidos a roçarem quase maquinalmente, sem raciocinar este movimento, o Júlio deu o braço à Margarida. E a Henriqueta coseu-se também muito com ele, toda trêmula. Seguiram assim; e neste silêncio de observação sentia-se uma crise, uma catástrofe que se aproximava. Vagamente, o sobrinho do Cairão teve medo, e foi-se deixando ficar para trás. Mas a D. Plácida, que logo de manhã tinha recebido umas confidências talvez exageradas, colocou-se resolutamente ao lado da D. Amália.

Quando iam quase a cruzar-se, o Júlio tirou o chapéu, cumprimentando respeitosamente as senhoras. Então, a mulher do comendador não pôde conter-se; direita, as ventas abertas, os olhos verdes duros, disse numa tranquilidade afetada:

— Ah! O Sr. Azevedo por aqui! Sentimos muito incomodá-lo... a culpa não é nossa. Em... certas companhias é melhor andar de noite, ou por sítios escusos.

O Júlio tinha variadíssimos defeitos; mas não era cobarde. Ao ouvir aquela injúria clara, lançada assim às faces da sua Margarida, tomou instantaneamente a resolução, diante da qual hesitava havia dias. Encaixou o monóculo na órbita; e, curvado, muito amável, com o chapéu ainda na mão, disse para o grupo:

— Minhas senhoras, eu peço-lhes licença para lhes apresentar a minha noiva, que justamente acaba de me dar a honra de consentir no nosso casamento.

Nesse instante ele sentiu os dois braços da rapariga, que se enlaçavam no seu para o resto da vida. Do outro lado, sem ninguém reparar, a corcunda pegou-lhe na mão, e beijou-lha.

o efeito desta cena foi deplorável. Naquela mesma tarde, e sobretudo no dia seguinte, ninguém se ocupava de outra coisa na vila.

Logo de manhãzinha, a Bárbara, que amassava, o lenço vermelho atado nos cabelos pretos e os belos braços nus, declarou peremptoriamente à comadre Rita, quando esta veio buscar o pão, que não ficava nem mais uma hora na casa:

— Era o que me faltava... era servir uma lesma que não é mais do que eu!

E entre os amigos políticos do Azevedo havia também uma grande emoção. Quando o Francisco Dias, com os seus colarinhos altos e bem lavados, o estômago conchegado na cinta larga, veio um bocado às notícias antes de sair para o monte, encontrou a loja do Loureiro já muito animada. Sentado na cadeira do costume, à parte de fora do balcão, o velho Peres escutava com um sorriso; e os comentários cruzavam-se em volta dele, desfavoráveis mas confusos. Todos tinham admitido que o Azevedo quisesse “arranjar os seus negócios com a rapariga”; mas aquilo desnorteava-os. Não percebendo, condenavam — ouvia-se esta frase repetida: “É uma loucura, uma perfeita loucura!” E consultavam o Galrão, que, tocado pela esposa, tinha vindo sondar a opinião pública. O Galrão, porém, respondia evasivamente, sem se querer comprometer, não conhecendo ainda o modo de pensar do Lopes:

— Decerto... decerto! Eu sempre julguei que o Azevedo tinha outras ideias... Sim, outras intenções... Mas casar-se, senhores!... casar-se!

Pela volta do meio-dia, o C astro caiu ali como uma bomba. Chegava naquele instante da Ferraria, e acabava de receber a notícia. Estava fumando:

— Então, que me dizem a isto? Que disparate! Uma destas nas vésperas de uma eleição! Isto dá cabo de um homem... é uma vergonha!

A palavra soou mal a o Francisco Dias, que protestou timidamente:

— Lá uma vergonha, também não sei porquê? ninguém tem nada que dizer à rapariga...

— Muito bonita é ela apesar de trigueirinha! — apoiou o João Gualberto, já meio voltado na sua benevolência habitual.

Nigra sum, sed formosa — explicou do seu canto o velho Peres, que se conservava muito superior àquelas coisas. Mas o Castro saltou-lhes, irritado sobretudo com o João Gualberto:

— Que diabo de asneira! Que importa lá se é bonita ou feia? É uma costureirinha ordinária, sem um vintém, sem situação, sem nome, sem família, sem coisa nenhuma! Olha que o Azevedo fica numa boa posição! Arranjamos um fresco deputado... não tenha dúvida!

Justamente o Moniz entrava, de braço dado com o Mena; e a sua chegada criou uma diversão. Todos quiseram ouvir o Moniz, que tinha presenciado “a coisa”. E, no silêncio da roda, ele contou a coisa pelos miúdos, principiando pelo princípio, como os tinham visto de longe, como se encontraram cara a cara, como a D. Amália disse palavras muito sérias...

— Ela lá teria as suas razões para estar escamada — observou maliciosamente o Mena.

Mas a insinuação caiu; e o Moniz pôde completar a sua narrativa, demoradamente, fazendo estilo, referindo mesmo o que disseram depois as senhoras, que “ficaram vexadas”.

— O que se podia ver — disse ele ao terminar — era o ar satisfeito e insolente do Azevedo. O rapaz está doido!...

— Qual doido! — interrompeu o Mena. — O que ele é, o tal cavalheiro das donzelas, é um papalvo de marca, a quem a pequena meteu gato por lebre...

Isto fez sair do seu sério o Francisco Dias, que havia pedaço já que estava embuchado, e demais a mais embirrava com o Mena:

— Olhem! Sabem que mais, cá quanto a mim o Azevedo andou como um homem de bem... e aqui o siôr Mena há de andar toda a sua vida como um pulha. E com esta vou-me até ao monte, que tenho lá as parelhas a debulhar favas.

O Mena esperou que ele se afastasse, e, quando o apanhou já longe, desafogou energicamente:

— Arre, grandessíssimo bruto!

Os outros sossegaram-no: “... O Dias era assim, muito arrebatado!... muito arrebatado! sobretudo se lhe tocavam lá em pessoa de quem fosse amigo... Era melhor não fazer caso.” E calaram-se respeitosamente, vendo chegar o comendador. Vinha magoado, mas digno. Recebeu os apertos-de-mão como se estivesse de nojo.

— É uma ocorrência desagradável, não tem dúvida nenhuma! — disse ele para a roda. — Mas francamente a culpa é toda nossa, em nos metermos com estes escritorzinhos modernos, que não têm a noção clara das coisas, que desconhecem as distinções sociais sobre que, em última análise, assentam todos os princípios de ordem. E o pior é, que isto altera os nossos planos políticos. A Sra. D. Amália já me disse esta manhã, e eu concordo plenamente com ela, que nós em vista deste escândalo não o podemos apoiar.


CAPÍTULO 15

Três dias depois, o ministro do Reino recebia do governador civil do distrito o seguinte telegrama:

“Dissidências entre chefes oposição. Comendador Lopes abandona urna. Eleição segura para governo.”

---
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...