7/01/2019

A Glória (Conto), de Henrique de Vasconcelos



A Glória
(A Carlos Malheiro Dias)
Qu'est-ce que ça fait que je sois une
grande artiste, si je ne suis pas heureuse?
Anatole France — Histoire Comique.
Gonçalo Freire, o escritor que um romance intenso tornara célebre, estava triste e desanimado no seu gabinete de trabalho.
Os candelabros Luís XV brilhavam nas múltiplas velas brancas, faziam saltar faíscas dos cobres dourados, das faianças onde corriam idílios em jardins frondosos. O seu studio era sempre luminoso, quer de manhã, com as largas janelas abertas sobre o rio, quer de noite com as resplandecências das luzes. Dizia que assim a imagem surgia mais precisa, mais clara, mais latina.
Gonçalo não gostava do nevoeiro que os escritores do Norte deixam entre os seus períodos. Amava o sol e os céus macios, o mar incendiado, as praias do Algarve de areia dourada, os rios transparentes, onde, à tarde somente, boia um fumo tênue.
Esse romance, "A Face do Homem" revelava esse amor da clareza e do equilíbrio. Pondo de parte os intuitos sociais que pervertiam a literatura moderna, ligara quadros de uma imarcescível beleza por um enredo forte, interessante e comovido.
Pessimista à feição de Nietzsche, descrevera a miséria da face humana, depois de arrancada a mascara; pusera o homem diante de si, num espelho, e o homem sentira-se asqueroso. Mas, crendo no culto dionisíaco, esperava pela Arte cobrir a fealdade da vida. E, perto do homem, a mulher, florida pelo amor, representava o Sonho, a Ilusão que cobre com um véu azul, a distância, os montes escarpados.
O público gostara. Seis edições sucessivas se tinham esgotado, entre aclamações, em dois meses. Os jornais tinham publicado o seu retrato com artigos encomiásticos, comparando-o a Camilo, pela riqueza e propriedade do vocabulário, a Eça pela ironia, a Fialho pelo vigor do descritivo, sendo superior a todos pelo interesse e pela suprema Beleza do seu ideal de latino.
Era um d'Anunzio com mais síntese.
Todas as revistas e jornais solicitavam a preciosa colaboração; o Suíço chamara-lhe plagiário e idiota, apontara-lhe seis erros de concordância, descobrira que em Coimbra roubara versos a Antero do Quental, num poemeto que correra impresso, Sunt lacrimai rerum, em que Gonçalo Freire acreditava no Inconsciente, segundo Hartman e na Vontade, segundo Schopenhauer.
Quase todos os dias o editor lhe mandava molhos de cartas de admiradoras, umas apenas a dizer a palavra quente da sua admiração, outras pedindo autógrafos e uma ou outra marcando, misteriosa, uma entrevista, num coupé, em sítio escuso.
Nessa noite, ao entrar em casa depois de uma bridge party, fora sentar-se, a querer trabalhar numa novela, de que esboçara já o plano. O criado levou-lhe a correspondência que Gonçalo abriu, aborrecido. Uma carta de um editor que lhe pedia um livro para lançar a sua livraria; uma atriz nova e elegante, que lhe lembrava a vaga promessa de uma peça, duas amorosas a pedir-lhe entrevistas e um escritor espanhol que solicitava autorização para traduzir "A Face do Homem". A lápis azul, no sumario do Mercure de France, chamavam-lhe a atenção para um longo artigo de Filéas Lebesgue, em que o critico entoava um hino em seu louvor, enaltecendo a harmoniosa beleza do romance, "mais sutil, como psicologia do que Bourget, mais moderno que Jean Lorrain, e tão puro de estilo como Anatole France". Recomendava-o a Herelle, como sendo a obra de um Anunzio mais intenso.
Era a glória, vinda do anônimo, não a celebridade feita pelos amigos.
Moço ainda, trinta anos, rico, representante de uma casa antiquíssima com o brasão registrado muito antes de D. João III, parecia um daqueles príncipes que as fadas assistem no batismo, dando-lhes todas as venturas.
Mas, triste, Gonçalo foi à janela e rasgou cada uma daquelas cartas, lançando ao vento os pedaços de papel, que baixavam, pareciam hesitar e sumiam-se no escuro.
Na noite sem lua pareciam nascer no espaço as luzes dos navios, que punham na água um reflexo de estrela. Encostado ao parapeito, Gonçalo muito tempo olhou para a escuridão que enchia o rio. Um ou outro ruído de carro chegava até ele, sem o despertar; de quando em quando na rua, ao longe, brilhava por um instante um elétrico, como um meteoro.
E Gonçalo pôs-se a pensar no amor que dentro de si trazia, sem esperanças, um amor que tivera uma demorada cristalização. Essa mulher surgia, luminosa e florida, diante dele, no escuro. Via o seu corpo magro e esbelto, a florescência clara do rosto um pouco duro, o olhar indiferente. Era sempre assim. E, ensimesmando-se, a figura aparecia-lhe, como uma obsessão, para acentuar o alheamento, atormentá-lo mais.
Muitas vezes, quando compunha, largava a pena, porque a mulher vinha para defronte dele e não havia maneira de fechar-se no seu pensamento, continuar o período interrompido pela visita.
E punha-se a recordar de como nascera aquele amor. Vira-a muitas vezes nas festas, nas ruas, nos teatros, indiferentemente. Uma mulher elegante e nada mais, feita talvez pelas costureiras que dispõem de espartilhos, de faixas que apertam os quadris, de bouffants que disfarçam chatezas de peito, de tecidos leves, que dão a aparência de ligeireza aos corpos.
Não a conhecia. Nunca fora forçoso conhecê-la e como não o interessava, não se aproximou. Era a Maria do Amparo. Quando ela passava pelo Turf, alguém dizia, ou o próprio Gonçalo:
— A Amparo vai hoje bem.
— É uma mulher interessante.
— Veste-se bem, principalmente.
E tanto tempo a vê-la, outras o chamaram, trouxe o seu coração envolvido em outros amores risonhos, quase sem se prender. E a Maria do Amparo continuava a aparecer em toda a parte, elegante, um pouco preciosa, viva, um sorriso na boca fina que mordia para avivar o traço róseo dos lábios.
Uma noite, em São Carlos, numa visita a um camarote, Gonçalo encontrou-a. Amparo falou-lhe nos artigos que Gonçalo publicara num jornal, crônicas vivas sobre o Culto da Beleza, a beleza na cidade, nos monumentos, nos jardins e nas praças, beleza no lar cheio de flores, com moveis elegantes e cômodos, beleza na mulher, artificialmente retificada, por maquilagens hábeis e vestidos sabiamente confeccionados por mãos peritas. Atraiu-o a conversa. Amparo tocou com inteligência e tato nos pontos mais originais, mostrou compreender e sentir a Beleza, rodeou-o de frases amáveis, em que havia, ora no sentido, ora na entoação, alguma coisa de carinhoso, pós em campo toda a sedução de mulher elegante, chamando-o a si, lançando-lhe a perturbante luz dos seus olhos claros. A conversa, apesar de curta, um entreato e o começo de um ato, acabara num flirt.
Gonçalo procurou vê-la. Esperou-a atento e ansioso no Chiado, frequentou as casas onde poderia encontrá-la. E as tardes de recepções, os raouts, as sauteries, e mesmo as empertigadas recepções diplomáticas, eram leves flirtations, que o deixavam absorto, andando pelas ruas sem atender a nada, sorrindo-se às vezes de alguma palavra dita por ela, de um gesto mais espontâneo.
Todos os elementos de sedução foram postos em pratica por Amparo. E na alma de Gonçalo começara a cristalização; a rede ia-o apertando, avassalava-o a mulher deliciosa, como os antigos retiários os seus adversários nos circos romanos.
Gonçalo já não pensava em mais nada. Logo depois do almoço, em vez de sentar-se à mesa, a trabalhar, ia para a rua sem destino, com a vaga esperança de a encontrar, de a ver na carruagem. E em todas as festas se aborrecia até chegar a Amparo. No Grêmio pedia todos os jornais, sem poder ler nenhum, porque se alheava, recordava os momentos felizes, idealizava impossíveis sonhos, uma fuga para algum país onde ninguém o conhecesse, e Amparo vivesse só para ele, esquecida do hediondo marido, de todas as carícias, de toda a vida interior. Se por acaso lhe passava pela mente a ideia justa de que Amparo nunca deixaria a vida mundana, a "consideração", a "situação", logo Gonçalo a sacudia por importuna, e enlevava-se no sonho.
Era uma vida feliz, apesar do pouco que ela dava — olhares, comovidas palavras, promessas num futuro remoto e impreciso, e, um ou outro beijo nas mãos que tinha macias, pálidas, mãos entre sensuais e místicas da Gioconda, sem a aristocracia das mãos de Velásquez ou Van Dick, sem a luxúria que rósea os dedos das figuras do pintor de Verona.
De repente, porém, começou a esquivar-se a Amparo. Houve palavras dúbias, falou de consciência e de dever; prometeu um amor eterno, mas ideal, sem pecado, um amor que lhes cobrissem a vida com uma gaze leve, como um zainfe. E mais e mais se foi esquivando, enquanto em Gonçalo o amor se tornava mais forte, enchia-lhe o peito de desespero, amachucava-lhe todas as energias e dava-lhe a sensação de ter, dentro de si a alma, como o chapéu alto de um clown.
E diante da noite, rasgando as cartas de amor das outras e as aclamações do público, Gonçalo, a chorar, repetia a frase da heroína da Histoire Comique:
— Que importa que eu seja um grande artista, se não sou feliz?

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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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