7/01/2019

A Festa de Maio (Conto), de Henrique de Vasconcelos



(A M. Teixeira Gomes)

— Violante! Violante! gritou o marquês para o jardim.
André, no cimo da escada, de onde ajeitava ramos no entablamento, conseguiu desenroscar-se dos molhos de madressilvas que o coroavam, o envolviam, e voltou-se. Ao ver o pai sorriu-se.
— Admira-se?
— A estas horas, já-levantado, e em casa?
André abriu na boca pálida um sorriso exangue; mesmo assim o sorriso brilhou nos olhos negros, fez viver toda aquela adolescência, que parecia finar-se lentamente:
— Não me deitei.
— Ouves, Violante? Não se deitou!
A marquesa apareceu à porta, numa blusa clara, tremente nas rendas amareladas, ainda aberto o guarda-sol lilás, por onde se filtrava o sol, que estranhamente lhe coloria o cabelo.
— Ó André! Que tolice!
— Prometi vir ajudar-te, e mesmo que não prometesse, no dia da tua festa, eu não deixaria de vir arranjar a capela. Não está-linda? Digam...
— Lindíssima.
A pequena capela, em estilo da Renascença italiana, branca nos seus mármores puros, sóbria de ornatos, sorria nos festões de madressilva, nas grinaldas de rosas, nos vasos trabalhados de que escorriam glicínias roxas, nas peanhas onde santos olhavam, suaves, os grandes lírios abertos, em toda a florida vegetação que manchava a nitidez do mármore pálido, correndo sobre os frisos, despenhando-se pelas janelas largas, envolvendo-se às colunas, vindo morrer no lajedo claro do chão.
Toda aquela arquitetura, feminina, sensual, — até na figura do Batista o escultor pusera um quebranto — brilhava e vivia uma vida lasciva e fina, ornatos delicados, sem exuberâncias, curvas que lembravam a doçura cálida de corpos nus, no tom ambarino do mármore velho.
André desceu. A marquesa trazia nas mãos, ainda molhadas da rega, um molho de grandes orquídeas de um azul doente, listrado de esverdinhadas veias como feridas a apodrecer.
— E estas orquídeas, onde as hei de por?
— Aqui não! Para o mês de Maria, para a festa de maio, orquídeas não. Ponha-as no gabinete do papá, junto das estampas de Goia... Aqui não!
— Tens razão, anuiu o marquês. Antes tragam maias...
— Vou eu buscá-las, lembraram André e a marquesa.
— Não.
— Não. Vou eu, Violante! insistiu André.
— Vamos ambos...
— Querem que eu também vá? ofereceu sem entusiasmo o marquês.
— Não. Deixe-se estar; vamos nós.
Ao sair da capela, passando os pinheiros mansos, em circulo, como a formar um adro, descia uma escada balaustrada, numa curva larga, ladeada de roseiras. Depois dois caminhos direitos, onde branquejavam estatuas, cantavam repuxos esguios que no alto se abriam, como lírios de cristal perpetuamente a florir e a quebrar num ruído claro.
— Onde há maias? perguntou André.
— Não sabes? É ali no fim, uma grande encosta, por baixo do tanque dos tristões... Não conheces a quinta!
— Como queres que a conheça? Não venho cá nunca!
— Hei de mostrar-te a quinta, agora... Hás de gostar. Vais-lhe tomar gosto. Olha, é aqui...
No fundo verde abriam-se, sorriam, na manhã clara, como pequenas estrelas, as maias de ouro. Desde o caminho apertado entre fitas de mármores que as roseiras invadiam, marinhando pelas estatuas dos deuses e das graças, luziam maias.
A fonte despejava, pelas buzinas brancas de três tristões, cujas caudas se enroscavam, fitas d'água.
Tudo cantava, tudo era alegre, na manhã radiosa. A encosta descia, verde da relva, das árvores copadas, mosqueada pela brancura dos mármores, brilhos de flores, sobretudo rosas-chá, enormes e delicadas, flores de cera e flores de carne, sensuais e finas, como um beijo em que os lábios mal se tocam, na pressa, mas em que as almas se confundem, numa vertigem. Embaixo continuava a descida rápida da colina, viam-se tetos angulosos de casas, faíscas que o sol levantava das janelas, linhas tortuosas de ruas, árvores de praças, o Rocio, como um lago de fogo a brilhar nas pedras claras, a Avenida numa chapada verde; vivamente um monte subia em apertadas casarias, alastrava-se por todos os lados a cidade, perdiam-se na perspectiva os telhados irregulares, até os montes violácios da Outra Banda, que se esbatiam no céu claro, no céu risonho e róseo da manhã de primavera. No rio embandeiravam-se navios ligeiros e airosos. Velas de faluas passavam, largas, pandas, como monstruosas gaivotas num voo sereno. E do rio saia uma grande alegria, como um fumo: fazia tremular as bandeiras, dourava mais o sol, percorria toda a cidade, extraia das ruas acordadas um ruído confuso, chiar de carros, pregões, cóleras, risadas, que se misturavam, fundiam-se, e lá cima chegavam numa voz única como um rumor de vaga.
— Vamos a ver quem apanha mais! E a marquesa deixando a sombrinha, desceu por entre as maias, afagando-as com as mãos brancas. — Que lindas são! Como sorriem para mim... Tenho pena de cortá-las.
— Vê se cais... Eu dou-te o braço. E André alcançou-a.
— Não. Não. Vamos apanhá-las! Vamos a ver quem apanha mais! Vamos a ver!
Febrilmente, começaram a apanhá-las, a cortar grandes braçadas. Às vezes as suas mãos encontravam-se, apertavam-as e riam-se.
— Não são maias... são os meus dedos.
E continuavam, já corados, a marquesa curvada, a cabeça de um louro quente quase entre as maias.
— Estou cansada. Estou cansada!
— Que lindo quadro. Todo de flores! Espera, vou enfeitar-te. E André coroou-a de maias, toda a sua cabeça ficou florida. E a marquesa, risonha e corada, protestava a rir-se:
— Olha que me despenteias!
— Que importa? Que importa? Estás melhor assim... Agora este ramo para o peito... Mais estas... Um grande ramo... Como estás linda; ouro e lilás! E o teu cabelo é de ouro. O papá vai ficar encantado quando te vir assim...
Subiram, ainda a rir-se. André deu-lhe o braço e foram, quase a correr. Ao passar por um repuxo:
— Vamos molhar as flores, ficam mais bonitas, como se tivesse acabado de cair o rocio.
— Pois sim, pois sim.
O cristal dos repuxos altos caiu sobre as grandes braçadas de maias.
— Vamos lá, vamos lá, que se faz tarde para o almoço!
No altar da Virgem estavam apenas largas rosas brancas, flores de um aroma sutil e angélico.
— Onde por as maias?
— No chão, junto ao altar. São as primícias da primavera oferecidas à Virgem.
— Pagão! censurou a marquesa.
— Não importa. Ficam bem. Aqui no chão, como um monte de estrelas, aos pés da Virgem:
Para que fosses mais formosa Deus deu-te a lua por chapins e as estrelas por caminho.
A sineta tocou para o almoço.
Rodearam a casa e entraram pela estufa, cheia de begônias e de cravos.
Enquanto André se vestia, o marquês perguntou se Violante se não admirava do seu procedimento.
— Há quantos anos não fica ele em casa? Tresnoitado, entrando muitas vezes quando eu já rodo pelo jardim, escondendo-me dele, para fingir ignorar os desatinos, ele dormia e almoçava aqui, fora de horas, escondido da Felícia, que resmunga contra ele coisas terríveis, chama-lhe perdido, sustenta que está possesso...
— Uma paixoneta, que trata de curar... Disse-me também, que agora ia começar vida nova, talvez fosse para a Quinta dos Limoeiros, para se desafeiçoar... Isto passa-lhe... Para a semana lá o teremos na mesma vida; teatros, atrizes, ceias...
— E se o pudesses reter em casa! Vê se o divertes... Fá-lo sair contigo. Agora que vou a Paris podias conseguir que te acompanhasse a visitas, bailes, soirées... Já o quis interessar com as estampas, mas perguntou-me se eu julgava que havia de passar os dias a ver bonecos...
O almoço foi alegre. Violante e André falaram no que era preciso fazer, nas passadeiras a por na igreja, nas cadeiras, na disposição dos bancos no adro, à sombra dos velhos pinheiros, até sob o arco dos limoeiros por cadeiras, que convidassem os flirts a recolherem-se na discreta arcada. André prontificou-se a tudo fazer; saiu para o jardim, iluminado pelo sol, cantante nas águas abundantes dos tanques e cascatas, misterioso nas sombras que o arvoredo formava, rico de cor, verdes diversos, vermelhos, azuis, lilases das flores, mosto fresco das olaias floridas; mas, sob a copa larga e tremente de um choupo do Canadá, deitou-se e adormeceu profundamente.
O jardim antigo, desenhado por um artista italiano, não tinha as placas relvosas dos parques ingleses e o seu frio alinhamento. Cresciam por toda a parte altas e poderosas árvores, que apertavam a arquitetura renascença do palácio; por toda a parte cantavam em fontes, em cascatas, em repuxos, águas claras.
Havia maciços de roseiras que cresciam livremente e se enrolavam aos mármores, aos soclos, iam florescer e perfumar nos colos brancos dos bustos, entre braços finos dos grupos mitológicos, rondas de estações, danças das Horas, cheias de movimento e de beleza. Escadas brancas de balaustradas ligavam as depressões de terreno; e por toda a parte uma grande alegria de flores e de árvores viçosas, pinheiros, carvalhos, arbustos de folhas variados, jasmineiros trepadeiros, que sorriam, trementes, nos minúsculos jasmins, entre a folhagem verde.
Por toda a parte uma exuberância de flores, que nasciam em canteiros, amores perfeitos de veludos quentes, pequeninos miosótis, quase brancos no seu azul virginal; outras que subiam pelas árvores; estrelavam-se clematites, umas roxas, outras brancas, enroscavam-se aos troncos, iam florir na copa larga dos castanheiros. Em pequenas sebes de cana os craveiros inclinavam-se, cravos vermelhos de um perfume que entontece, cravos brancos, mosqueados de violeta, cravos estranhos como nodoas nas epidermes.
Tudo sorria, tudo gritava, na confusão da manhã clara; estendia-se pelo céu o sol, batia nos flocos de nuvens que se douravam, extraindo de toda a terra uma alegria imensa, que subia no fumo, que cantava na viração leve arrastando-se pelas árvores altas, manifestava-se nas folhagens claras, envolvia tudo.
Em grandes placas floresciam as maias e, no inverno, violetas de Parma, de um lilás moribundo. Por toda a parte flores, estendendo-se pela terra, ou subindo e perfumando. E as águas cantavam, cristalinas, corriam, iam beijar nos regos abertos folhas viridentes. Era a Quinta Alegre, o jardim mágico. Nos ornatos das janelas e das portas, nos baixos relevos e nas pinturas das salas, reproduziam-se em linhas puras os motivos de volúpia e de beleza. Até na capela havia uma exuberância de vida. Viam-se figuras nuas, como nas Logias do Vaticano. Os monstros não tinham, como nos ornamentos góticos, uma aparência terrível: eram elegantes, de uma aparência risonha e as retorcidas caudas terminavam, estilizadas, em caules de flores. A vida era triunfante nos colos sensuais das mulheres, nos cachos de frutos, romãs abertas de que saia um riso vermelho, laranjas douradas, cepas que subiam espalhando-se em ramos com grossas uvas, como a de Corinto, figuras aladas, sensuais, antes amores contentes, do que anjos místicos e salvadores.
Havia uma volúpia fina, uma delicada sensualidade cada um dos ornatos, como em cada um dos caminhos da Quinta Alegre. A mesma latada verde clara, em que se via a poeira dos cachos que cresciam, se reproduzia e multiplicava nos mármores das salas e da capela; e os corpos alvos das ninfas, das graças, hamadríadas contentes, dos faunos lascivos levantavam-se e sorriam no mármore das estatuas.
Era ali que todo o ano viviam os marqueses de Runa, salvo um mês na Bretanha, setembro, em alguma praia tranquila e ensolada, de onde voltavam, apressados, logo aos primeiros frios, apenas uma pequena paragem em Paris, para as necessárias visitas da marquesa a Redfern, Paquin, e pequenas e especialíssimas lojas de outros fornecedores.
O marquês, Cristiano Spinola d'Aciaioli, descendia de duas famílias italianas, os marqueses Spinolas e os marqueses d'Aciaioli, que foram duques d'Atenas, de que vieram ramos para Portugal. No século XVII fora um seu tio, Simão de Vasconcelos Aciaioli casar a Florença com a filha única do marquês d'Aciaioli, para não acabar o nome. E daí os dois ramos conservaram sempre relações íntimas, visitas dos portugueses e italianos, e mesmo o marquês passara parte da sua mocidade em Florença na casa senhorial de seus avós.
Novo, voltara a Portugal e amara com um tranquilo amor sua primeira mulher D. Estevaninha Henriques, descendente do célebre conde D. Henrique Henriques.
Vira-a por uma manhã de sol a atravessar o pátio branco e calado do seu palácio de Sevilha. E a languidez do seu andar, o seu ar triste, naquela casa quase morta — calado e morto é o tanque esbelto e branco e sobre os arcos apenas turistas passam, silenciosos — impressionavam. Os seus olhos habituaram-se a ver nas praças, nas ruas ensombradas pelos toldos, a face branca, onde ardiam os grandes olhos pretos de D. Estevaninha, a risca sensual e fina dos lábios vermelhos, como num traço de sangue, que a faziam mais pálida.
Conhecendo os duques de Medina, fácil lhe foi ajustar o casamento.
Depois de uma luzida boda, aberta de par em par a Puerta del Pardon da Catedral para a passagem dos convidados entre os quais a infanta, que representava a Rainha, vieram para Lisboa esconder o seu amor na Quinta Alegre, cheia de rumores d'águas e de folhagens que gemiam e riam à passagem da brisa.
Mas aquela casa alegre, onde tudo era voluptuoso, de uma volúpia fina, em que todos se tinham habituado a amar a vida em todas as suas manifestações, parecera hostil ao sentimento espanhol da doce Estevaninha, na nudez dos corpos, até no desabrochar das flores de mármore, que pareciam tentar.
Certamente, que junto de si, para a amparar e dirigir, estava sempre, rotundo e oleoso, o cônego D. Benito, que com ela viera de Sevilha, e na capela risonha e branca constantemente ardiam lumes fumarentos de tochas; certamente, que as missas, as novenas, as trezenas, lausperenes — fora dificílimo conseguir do Senhor Patriarca um dia de lausperene, cada mês, mas conseguira-o a proteção decidida da baronesa de Angra — todas as festas e macerações da igreja se sucediam na capela clara; as confissões, as comunhões multiplicavam-se; um cilício de crina fazia, às sextas-feiras, gemer a branca noiva, mas tudo parecia falso, porque a capela tinha sempre o ar de rir e de tentar, nas volutas floridas dos seus capitéis, nas figuras nuas, que mostravam em cada ruga da pele, em cada grão de mármore, um desejo impuro que era uma tentação e um escárnio.
E a marquesa não se sentia feliz. Preferia o seu viver austero na sua casa de Andaluzia, entre paisagens ásperas, crueza de sol pelos desolados campos onde as piteiras aguçam as pontas de suas folhas curvas, e as igrejas espanholas, severas e sem luz; em vão lhe dizia D. Benito que um sátiro confessara Cristo a São Jerônimo, e lhe trouxera flores para enfeitar o altar do verdadeiro Deus; debalde lhe assegurou o frade afeiçoado às sombras quietas da quinta, aos túneis de verdura, onde a pretexto de ler o breviário, nas tardes calmosas de verão, adormecia eclesiasticamente, que as aparências nada eram e que a verdade estava em Deus — D. Estevaninha redobrava de suplícios, os jejuns, as penitências rudes que abalavam o delicado corpo magro e grácil, que palpitava na aproximação do marido, cheia de angustioso terror e de volúpia; e pouco a pouco se definhou, e pela noite fria do Natal, à hora em que na igreja, entre resplendores de círios e uma chuva de flores, se festeja o Nascimento de Cristo, morreu aos gritos, ao dar à luz André.
Para o marquês a morte de D. Estevaninha não foi um desastre dos que abrem no coração um vinco duradouro.
Gostara daquela face triste e habituara-se ao ardor receoso do corpo fino e dourado da andaluza; mas a casa fina, elegante e pagã, ia tomando aspectos sombrios. Na antecâmara, como nos corredores episcopais, murmuravam grupos de padres. E atravessaram a Quinta falando baixo, olhando para as areias dos caminhos, dizendo sempre palavras untuosas, a querer vender o céu. Monsenhores de cintas arroxeadas, bispos imponentes, a cruz de ouro a brilhar no peito, camareiros de São Santidade, frades que batiam as sandálias num ruído surdo, cruzavam-se nas escadas, juntos saíam, sempre a mesma maneira hipócrita de olhar as coisas, sempre os mesmos lábios mentirosos e destilar frases decoradas. O marquês recolhera-se à biblioteca onde dispunha a sua coleção de estampas, por que dia a dia se apaixonara mais. Vinham da Itália e da Alemanha e da França e da Inglaterra em rolos, em caixotes, que os agentes enviavam, às dezenas. Reunira uma preciosa coleção de águas-fortes de Rembrandt e as gravuras de Dürer; tinha desenhos de Vinci, de Rafael, esboços de Ticiano e de Ribera. Tudo o que fosse arte, desde o balbuciar dos primeiros "primitivos", até à exuberância formidável de Rubens, mistérios de sombra de Rembrandt, torcionárias figuras de Ribera, suaves santas carnudas de Murilo, estranhas mascaras de angústia ou de grotesco de Goia, tudo o que fosse arte e não tivesse cor o seduzia, proves avant la lettre, exemplares rotos, em que se visse uma mancha bem posta, ele os guardava, catalogando, apenas se distraindo em passeios pelo parque, grandes voltas, descendo até o extremo da quinta, onde repousava, vendo o múltiplo esguicho que saia das duplas flautas de três aulítridas, num gesto elegante de dança nas transparentes túnicas que tornavam mais atraentes a nudez dos seus corpos.
Com a morte da marquesa, o palácio voltou a ser mais silencioso e mais claro. Parecia que na quinta as aves cantavam mais. Apenas D. Benito ficara, "por amor al niño de la señora marqueza", protestava, mas porque se afeiçoara às sombras frescas, onde dormia.
André foi crescendo livremente entre os criados e D. Benito. Aos três anos andava pela quinta, arrancando flores, quebrando vasos, e interrompendo com gritarias e surpresas as prolongadas sestas do cônego.
André foi crescendo livremente, em correrias doidas, traquinas e imprudentes, subindo às árvores, despindo-se e atirando-se para as bacias de mármore, sempre perseguido pela miss loira e terna, que lhe ensinava inglês.
As feições da mãe reproduziam-se, graciosas, no filho. O pai via, com inquietação o mesmo falar da mãe, os mesmos olhos tristes, a mesma boca fina, apenas, em André, mais exangue. Teve medo que a intelectualidade desequilibrada da devota tivesse continuado no filho a vida de pavores cristãos, e ao cônego e à miss recomendou que o deixassem livre, que o fizessem um animal forte e feliz, com poucas rezas e pouca gramática. Quis que ele aprendesse a ter o Amor da Vida, que aqueles pulmões respirassem sem medo e sem pecado as grandes rosas que desabrochavam lentamente, pétala a pétala nos caminhos da quinta. Que visse no canto das águas um hino de alegria, no chilrear dos pássaros e no balançar dos ramos uma festa da Natureza, que ele próprio tivesse a alma constantemente em festa.
Assim lhe foi ensinado o pensamento dos antigos. Disse-lhe a alegria imortal das fábulas gregas, os deuses que no voo rápido desciam do recurvo Olimpo e vinham à terra violar os corpos núbeis das filhas dos reis; a dança dos sátiros e das faunezas nas clareiras das florestas quietas, as festas da lavoura, as procissões a Ceres no tempo em que os trigais amadurecem, a Dionisos, quando os cachos são cor de rubi e de esmeralda.
Levou-o às suas terras do Douro a ver as vindimas, quando ele tinha sete anos. Pelos montes verdes, onde a vinha ri, rasteira, curvada ao peso dos cachos, bandos de trabalhadores curvados cortam, cantando, os cachos e levantam-se um pouco para os lançar nos cestos; de quando em quando a fileira move-se, forma-se em semicírculo, desdobrando-se como um exército num movimento largo, agrupam-se para debandar outra vez, com ritmo e graça. E as camisas brancas contrastam com os lenços vermelhos, e riem as faces trigueiras, há uma grande alegria, cantam as bocas, e o mesmo movimento regular dos bustos que se levantam, dos braços que deitam, num movimento largo a uva nos balseiros escuros.
Depois das vindimas, os balseiros cheios despejam-se nas dornas, nos lagares. O vinho ferve, com um aroma forte. E os trabalhadores cantam, como no tempo da Hellada, glorificando a Terra e glorificando os Deuses.
Habituou-o a ver coisas belas, a reparar nas minúcias das plantas, na finura dos sarmentos, na delicadeza dos coloridos das flores, quis que ele amasse as paisagens quietas. E com o pai, André ia contente; não lhe ensinava rezas, nem o obrigava a saber lições.
O cônego e a miss, por um momento acordados, esquecendo as rivalidades das Igrejas Católica e Reformada, que os separavam e os traziam numa luta constante, censuravam o marquês por aquela educação original, que seria muito bem cabida num gentio, mas não num cavaleiro português. E o cônego desolava-se:
— É para admirar que a alma da senhora marquesa não tenha ainda aparecido... Que se ela vivesse, isto era tamanha mortificação, que morreria de desgosto.
E miss Lucy, fazendo com a linda boca vermelha um gesto de desdém, terminava num tom cortante:
— Improper!
E André ia crescendo. Gostava da miss, porque era linda, tinha uns olhos verdes, cor do mar, e uma pele fina, branca como as gardênias, e o cabelo tão louro, que André lhe perguntava se aquilo era ouro. Mas não gostava do cônego, porque, em o apanhando nas correrias do costume pelo jardim, logo o prendia entre os joelhos e o fazia recitar, durante muito tempo tantos rosários de Avés, padre-nossos, de credos, salve rainhas, atos de contrição que André chorava no fim. E D. Benito alegrava-se, dizia que era o Diabo que fugia do corpo del niño.
André não se aventurava já a puxar pela batina enodoada do cônego, quando ele dormitava no jardim: limitava-se a gritar de longe, e quando D. Benito sobressaltado acordava e voltava para ele a face gorda, André corria a esconder-se no regaço virginal da miss, que se fingia severa:
—Aoh! Naughty boy! Very naughty boy. What did you do to D. Benito?
Mas ria-se das partidas de André e beijava a face pálida, os olhos tristes.
De vez em quando aparecia a baronesa de Angra a visitar o marquês. Mal a pressentia, André ia esconder-se nalgum recanto misterioso do parque, atrás de uma estatua, entre buxos altos. Não era que não achasse agradável estar com a baronesa, pequenina e gentil, com uns lindos olhos frescos e em quem sentia, quando a beijava, um perfume doce; e mesmo os lábios dela eram mais vermelhos ainda do que os da miss, que os tinha tão vermelhos e emanava deles tamanho ardor sensual, que a criança o sentia confusamente.
Mas, passadas as primeiras ternuras, a baronesa fazia-lhe um minucioso exame de doutrina, diante do marquês que enrugava a testa, descontente.
— Diga lá o menino os mandamentos!...
André dizia contrafeito e arrastado.
— E os artigos da fé?... E as virtudes cardeais?... E os Novíssimos do Homem?...
— Mundo... Diabo... Carne...
— Carne, não, interrompia o marquês. Osso! Não é verdade, prima?
André não compreendia, mas gostava, porque a baronesa deixava-o logo e voltando-se para o marquês:
— O primo tem esta criança como um filho de herético. Já conheci um inglês, e era protestante, que ensinava o catecismo aos filhos! Mas o primo que tem papas na família...
— Chegam para salvar o resto. Escusamos nós de pensar nisso, sorria.
— É pena ser seu filho. Tão lindo! Vê aqueles olhos tristes?...
— Gostava mais que fossem alegres!...
— Ora!... O primo não entende nada disto... Que lindos olhos!... Bem... Bem... Tenho de ir à novena.
Ao sair, sempre a mesma frase a propósito da escada onde figuras nuas se perseguiam, num lavor elegante e sóbrio:
— O primo tem a casa cheia de indecências! Acabo por não voltar cá!
André, porém, ia a fazer doze anos; não podia continuar entre o catecismo de D. Benito e o inglês doce da miss. O marquês mandou-o para o colégio. Mas à tarde, quando o cônego o trouxe para casa, André abraçou-se ao pai a chorar e a pedir-lhe para não voltar ali.
A disciplina escolar, os olhos curiosos dos camaradas que o troçavam, o olhar duro dos mestres, o mau cheiro, a falta de ar fizeram-lhe ter medo do colégio. E prometeu ao pai tudo, para não voltar.
— Até aprender as rezas de D. Benito e as da tia Angra!
Com grande escândalo de D. Benito, o marquês anuiu.
— Escusas de aprender rezas. Vou-te arranjar, quando a miss se for embora, uma mestra francesa e professores que virão a casa dar-te lições.
André ficou admirado. Então a miss ia-se embora? Por quê?
— Acaba o seu contrato...
André foi, a correr, perguntar à miss. Cheio de angústia, com uma súplica na voz:
— Então vai deixar-me?
—Yes, yes, my little André... E afagou-lhe os cabelos.
André agarrou-se a miss Lucy a soluçar nervosamente. A miss acariciava-o, queria beijá-lo, chorava também, comovida, lágrimas de prata que se prendiam nos compridos cílios de ouro.
Fora a miss, até então, a única mulher de que André gostara. A ela fazia as suas confidências, contava-lhe as proezas de brigas terríveis com os amigos, as diabruras feitas ao cônego. E a miss tinha sempre um sorriso e um afago para a criança, nunca lhe ensinara orações, não o castigava por não saber a lição, falta que se repetia a miúdo; apenas lhe dera uma bíblia com gravuras recomendando-lhe a leitura — sem resultado.
À noite contava-lhe lendas poéticas da Inglaterra, castelãs brancas e tristes, almas de mortos que vagueiam e a voz dorida dos pajens soluçando de amor...
Muitas vezes, quando era mais mocinho, fora a miss, no inverno, aconchegar-lhe a roupa no pequenino leito. Ao adormecer, a sensação branda das mãos delgadas de Lucy na sua face. E cantava como uma música, a voz que dizia, ao fechar mansamente a porta:
— Good night, my little André.
Mas a miss partiu em lágrimas dolorosas. André foi acompanhá-la ao vapor com o velho "footman". Já ia longe o navio e ainda André acenava, os olhos molhados, o soluço a contrair a garganta; a miss também agitava o lenço, chorando...
Tempo depois apareceu em casa, de manhã cedo, quando André andava a regar os seus canteiros, a professora francesa que chegara de Paris. O seu andar era ligeiro e miúdo como o dum pássaro e evolavam-se dela uma gracilidade suave, desde os cabelos pálidos até a curva rápida da cinta delgada. Tinha nos pequenos olhos cinzentos uma malícia e um riso. André, que se voltara, ficou boquiaberto. Certamente que a miss era linda como uma santa e doces as suas mãos e a tia Angra tinha os lábios vermelhos e um perfume delicioso; mas nunca vira criatura assim airosa, alta e delgada, que balançava o seu corpo quando andava, como se fosse uma flor, como um bloco de gracilidade a deslocar-se.
Ao saber, porém, que era a mestra francesa, não a quis ver mais; nem a cumprimentou. Estava persuadido de que era culpada da partida da miss e guardava-lhe no peito, antes de a conhecer, um grande rancor. Fugiu, a correr, para o fundo da quinta e ali ficou a chorar com saudades da miss.
Ao almoço André foi repreendido. Ficou calado, os olhos baixos sem explicar o procedimento. O marquês disse-lhe que ia ter outros mestres, pois não podia ficar a saber apenas o latim, as vagas e errôneas noções de coisas que lhe dera D. Benito e as poéticas baladas de miss Lucy.
A princípio a vida foi dura para André entre os professores indiferentes que tomavam as lições sonoleando, e mademoiselle Renée, hostil, que, pensava ele, tinha causado a partida da miss, linda como uma dessas santas serenas e indulgentes, que têm sempre, nos dedos em fuso, o gesto da benção.
André olhava para Renée, disfarçadamente; admirava a graça do seu corpo de que saia um perfume tênue, as mãos brancas, as unhas cuidadosamente tratadas, e, quando ela se abaixava, o pálido reflexo da sua nuca dourada. O perfume era sutil e perturbante. Respondia com maneiras bruscas às perguntas feitas numa voz macia e quente, falava-lhe muitas vezes inglês, fingindo ignorar os termos franceses, para lhe ser desagradável. Mas Renée Viardot tudo suportava com paciência, lançava-lhe olhares enternecidos, queria afagá-lo até, beijá-lo num ímpeto em que brilhavam os seus olhos claros; mas André fugia logo, apesar dos quatorze anos, como uma criança indócil.
No verão davam as lições na quinta, embaixo, junto aos tritões, numa rotunda assombreada. Numa tarde quieta e quente, como estivessem juntos e Renée tivesse ao colo um livro que interessava André e de que lhe explicava uma passagem, ele inclinou-se mais sobre o seu braço, quase a tocar-lhe na musselina transparente da blusa, pode sentir o perfume brando e sensual e, interrompendo mademoiselle, perguntou-lhe bruscamente:
— Que perfume usa?
Nos seus olhos negros havia um quebranto e na face pálida duas rosas vivas despertaram.
Renée agarrou-lhe na cabeça e mergulhando-lha na musselina da blusa:
— Est-ce que tu aimes mon parfum? Dis!
A impressão foi demasiadamente violenta. André fugiu, a tremer; foi sentar-se sobre o arco verde e dourado dos limoeiros, a tremer, os olhos parados, pensando na sensação deliciosa e rude que tivera.
O aroma das rosas que lentamente se desfolhavam, o perfume dos lilases brancos e dos lilases roxos que punham nos lilaseiros uma espuma branca e uma espuma roxa, mesmo o cheiro acre dos limões maduros não conseguiram vencer o aroma sutil e sensual do peito farto de mademoiselle.
Dias seguidos, André pretextou enxaquecas, fugiu de Renée, espreitando-a de longe com receio e com desejo de se aproximar dela, outra vez mergulhar a cara na frescura da musselina e muito tempo sorver o inebriante aroma. Um dia, na estufa aberta, examinava langorosamente os cravos que iam já a murchar. Havia-os de toda a cor. Todos os vermelhos, desde a púrpura sombria, até às descolorações das rosas anêmicas; gritavam alguns cor de vinho, surgiam róseos e triunfantes, até que desmaiavam rosados puros de gerânios, como bocas novas que querem beijar.
E aos vermelhos, quer heroicos, quer tênues, uniam-se outras cores, outras neles se fundiam ou se embutiam, perpassavam em alguns laivos fortes de violetas, noutros espraiava-se um branco que hesitava em ser rosa; aqui um, desesperado, as pétalas revoltas, como em arrepelos, era de um violeta ardido, além outro era todo branco, de uma quase irreal alvura, como se anjos os houvessem beijado nas horas suaves em que do céu cai o rocio... Outro, também branco, beijos de abelhas o tinham mordido, nele gotejava um sangue avermelhado; mas os vermelhos combatiam, aqui vinho, além quase roxo, havia como uma luta de que ressaltavam gotejos, que pareciam cristalizar em corais; em certos, o vermelho do fundo degradava-se, triunfava fortalecido, até que nas pontas recurvas se franjava de roxo. Havia retalhos de túnica do Senhor dos Passos, carnes a apodrecer, pedaços de peles virginais, estriados, franzidos, sempre frisados, raiados de cores diversas: aqueles eram "modern style" em cores estranhas que se reuniam, certos cremes onde se dilui o vermelho, tons sem brilho, onde a luz morre, cores de tijolo, esverdeados longínquos que pareciam dormir sob os róseos.
Mas todos tinham frescura, todos viviam uma vida impertinente que se afirmava no odor sensual, perturbante e voluptuoso, todos eram de uma ardente mocidade, quer saíssem dos tubos, entre folhas de musgo, quer balouçassem em hastes longas de craveiros, como que ejaculados, tal a sua soberba. E mesmo os que eram enormes e faziam vergar a haste, como um corpo cansado, na seda fina das pétalas tinham sempre sorrisos, um sorriso que excitava.
Eram todos sensuais. Faziam lembrar croupes fortes de espanholas de olhos languidos e cabeleiras negras mordidas por pentes de ouro.
O langor das flores, junto à puberdade que nascia e se afirmava e entontecia, como as grandes olaias de marfíneo cálice, pelos jardins calados nas noites de agosto, perturbavam, embriagavam André, tal um copo de capitoso vinho que se bebe de um trago numa convalescença.
Pé ante pé, Renée entrou e, curvando o corpo numa atitude provocante, agarrou-lhe na mão e segredou-lhe:
— Quer saber o meu perfume?
A boca vermelha e seca ria-se, contrafeita.
— Há dias, não tive tempo para lhe dizer...
Aproximou-se de André, apertou-lhe as mãos, deitava-lhe, ao falar, um hálito perfumado e quente.
— Quer saber? — insistiu.
André corou e quis fugir; mas mademoiselle agarrou-o mais, tomou-lhe a outra mão e apertando-lhas, numa carícia sábia, palma com palma:
— Não faço segredo: é uma mistura de resedá e jasmim do cabo. Quer ver?
Sem que lhe desse tempo para responder, pôs-se nos bicos dos pés, mãos nas mãos, olhos nos olhos, e aproximou-lhe da face o colo tremente. Largando-lhe as mãos deitou para trás a cabeça pálida de adolescente e reavivou com um longo beijo a flor exangue dos seus lábios virgens.
André beijou-a também, os olhos fechados, os corpos unidos, arcobotados um contra o outro.
Quando terminou o demorado abraço, André olhou para ela a medo. E por sua vez agarrou na cabecita linda e beijou-lhe a boca longamente, sofregamente...
A noite, para André, foi toda de revoltas no leito, olhos abertos, lábios em febre, franzidos, a procurar outros lábios que não vinham, a desejar beijos, como se eles adejassem esparsos pelo ar e pudessem pousar na sua boca. Comparava os beijos suaves da miss com os beijos de fogo que lhe dera Renée. E como era doce dormir depois de sentir as mãos alvas de Lucy a afagar-lhe os cabelos num sono tranquilo e doce! e como lhe era difícil adormecer, a revirar-se na cama, apagava e acendia a luz, sempre a lembrar-se da carícia estranha e inédita, do perfume estonteante, do calor dos lábios secos, da macieza do cabelo louro, como se fosse de seda, de todo o corpo fino e flexível que se colara ao seu, e nele deixara como cauterizadas placas de feridas, era bom e era terrível. E toda a noite passou assim, até que de madrugada adormeceu murmurando em segredo o nome de Renée.
Era a puberdade que aparecia subitamente, irrompendo de um jato, como um poço artesiano de repente aberto.
Longo tempo durou esse noivado vermelho.
Certa tarde, D. Benito que ainda se arrastava pelo palácio, achacoso e velho, fazendo do dia uma comprida sesta, surpreendeu-os a beijarem-se.
Clamando contra as iniquidades da terra, foi-se encontrar com o marquês, que à sombra de uma tília meditava Marco Aurélio, e contou-lhe, vermelho, esquecido do reumatismo que lhe tolhia as pernas, entremelando a língua numa algaravia inconcebível, a abominação das abominações.
O marquês, que pousara sobre o banco de mármore o livro antigo, mostrou-lhe uma haste toda coberta de goivos brancos:
— Vê esta planta, D. Benito? É algum pecado que na época própria se cubra de flores? Repare para elas. Com que voluptuosidade mergulham-se na atmosfera! Riem numa alegria clara e vívida por terem nascido. Da raiz sobe, triunfante, a seiva para as alimentar. Perfumam hoje, morrerão amanhã, sem pecado, felizes por terem integralmente vivido. O seu pólen voará para fecundar outras flores, D. Benito. Deixe que a vida se manifeste, deixe que todos sejam felizes!
O cônego arriscou uma apoplexia ao ouvir a blasfêmia do fidalgo. Teve forças para ir para casa embrulhar as escassas roupas e na mesma noite partiu para Sevilha — queria morrer entre gente cristã, dizia. Não se despediu de André, nem de mademoiselle, apenas um comprimento seco ao marquês.
Fingiu este ignorar o que entre o filho e a mestra se passava. Continuavam no seu idílio. Mas os anos passavam, André fez os seus estudos e o marquês mandou-o para Florença.
Renée regressou a França. Partiram juntos, por mar, para Barcelona.
Foi entre beijos, que sulcaram o Mediterrâneo calmo e transparente, aqui azul-ferrete, além verde-claro, logo ensolado e dourado, sempre transparente. E de noite iam ver, sós, as mãos nas cintas, muitas vezes os braços se uniam — a fosforescência que se levantava na proa, brilhante, numa espuma fina, como uma poeira de mica.
Como dois amorosos que acabam de dar o primeiro beijo, e logo, na ânsia, querem contar mais de mil, mal viram Cadiz branca e pequena, a luzir no recurvo golfo azul; em Málaga não repararam no ar dolente das flamencas, que cantam cheias de volúpia, e mesmo no Paseo sacodem as ancas, como num convite para uma volúpia triste, e os seus vinhedos claros; apenas na catedral feia e banal, se extasiaram diante de um quadro, imagem de uma santa. Qual? Não o souberam e chamaram-lhe Nossa Senhora do Desejo insatisfeito. Numa pequena tela um busto de mulher trigueira, andaluza, forte, pele dourada, olha para o céu. Os olhos têm a expressão dolorosa de quem muito deseja. E o vermelho dos lábios carnudos, as narinas dilatadas, dizem o que há de sensual naquela expressão ardente. O colo é aberto. E as mãos, ao tapá-lo com um lenço vermelho, ainda mais aquecem o tom quente do colo dourado.
Indiferentes, viram Valência entre vergéis, clara e voluptuosa na planície fértil e o Grau rumoroso, onde mourejam descarregadores nas docas e operários nas fabricas. E Barcelona que se alastra em renques de árvores nas ruas largas, com seus palácios, suas avenidas, as Ramblas onde se apertam catalães silenciosos, os mercados de flores cheios de gardênias, de jasmins e rosas, pareceu-lhes triste, porque ali se deviam separar.
Em vão subiram ao Tibidabo; donde se vê toda a Barcelona estendida, como um tapete, cortada de ruas; correm, ora direitas, ora em sinuosidades, linhas claras de plátanos. Estendem-se as casas até junto ao mar azul, de onde em onde raras torres se levantam e entre elas sobressai o vulto gótico e afilado de Santa Maria de la Mar.
A ligeira neblina que se levanta do porto e envolve a estatua de Colombo, negra sobre a pedra branca da doca, parecia que envolvia tudo, que dava às coisas a tristeza que estava neles. E Renée chorava, abraçava-se muito a André, obrigava-o a prometer-lhe longas e amiudadas cartas e uma viagem a Paris, quando voltasse, no ano seguinte, de Florença.
E assim, por uma tarde triste, conseguiu André levá-la, pelo passeio da Aduana fora, entre as palmeiras, à estação.
E os beijos cantaram, demorados e angustiosos, nas bocas dos amantes, até que uma voz rouca gritou: — Viajeros, al tren! — e o comboio silvou e partiu. André ficou a ver o lenço de Renée e o comboio que se perdeu numa curva, fumegando.
Dolorosa foi, para André, essa noite.
Pareceu-lhe vazia e silenciosa a pequena alcova onde durante uma semana tinham dormido. Perseguia-o a lembrança do perfume, a macieza e a cor do cabelo de um louro pálido como um sol convalescente, a frescura da pele fina, todo o encanto e todo o Amor da deliciosa Renée que o iniciara e que o amara e de quem sentia ainda as lágrimas amargas que se misturavam aos beijos tristes que ela lhe dera nos curtos dias da despedida. E André chorou.
Na manhã seguinte partiu para Genova num liner da Ligúria. Com ele regressavam à Itália cantoras do Liceu. Notou uma comprimária delgada de cabelos e olhos pretos, que trazia do mercado da Rambla um grande molho de flores. Olhou para ela com desejo e nesse desejo se surpreendeu, quase esquecido de Renée. Facilmente feito o conhecimento, os dois dias de viagem foram rápidos em inconsequentes flirts, alegrias de dança na tolda e leves concertos no salão. Em Genova se separaram e André partiu para Florença ligeiro e esquecido, com um certo prazer de se ter separado de Renée, que, agora o sentia, começava a pesar-lhe.
Em Itália a vida foi-lhe fácil entre monumentos e mulheres, em cujos olhos boia uma grande alegria de viver.
Teve paixões e conquistas; quis realizar quadros dos mestres florentinos que diariamente via no Pitti e nos Uffizi; procurou por toda a parte os tipos ambíguos, perturbantes no seu enigma, entre éfebos e mulheres, adolescentes sempre, ovais perfeitos de rostos brancos, bocas sensuais e vermelhas.
Nos corsos da Itália passeou em cavalos ingleses; em Veneza poetizou, no Grande Canal, pelas noites claras, sentindo umidade e paixão, até que aos dezoito anos voltou a Lisboa sempre a mesma palor na face, os mesmos olhos tristes e boca exangue.
O marquês aprestava o seu casamento com Violante Cerquedo, filha dos condes de Cerquedo.
Só no palácio, sem os risos do filho, procurou distrações na vida mundana. Novo ainda, pusera-se a amar Violante, graciosa e inteligente, cujos vinte anos cantavam triunfantes, como uma primavera florida. Seduziu Violante a inteligência do marquês, a sua figura aristocrática e a maneira amorosa como a olhava, como se fosse uma obra de arte.
Pouco tempo depois do regresso de André, por um inverno chuvoso e frio, a capela do palácio encheu-se de lumes e casaram.
André não deixou os costumes que trouxera de Itália. Paixonetas diversas amorteciam-lhe o coração, até que um dia, perseguindo Marta, uma atriz loura e chique, que lhe fugia um pouco, a tornar-se difícil e desejada, julgou ter "a verdadeira paixão da sua vida", como confessara, depois de uma ceia fausta e turbulenta, a Jacintho Roquette, seu irmão em letras e seu confidente.
André lançara-se, à volta de Itália, doidamente na literatura. Frequentava redações e jornais, teatros e cafés onde se reuniam jovens escritores cheios de esperanças e de imprecações, revolvendo as ideias e os livros sem cerimônia, com o ar de quem, do alto de uma montanha inacessível à plebe, residência olímpica de escolhidos, considerou já os homens e as coisas.
Instintivamente fugira deles, da sua imperturbável confiança, do azedume que deles suava quando se lembravam de um êxito. Ligou-se ainda mais com Jacintho Roquette, caustico e risonho, com um real talento que desperdiçava em cavaqueiras de café e em artigos feitos a trouxe-mouxe para jornais e revistas, sempre a luzirem, através da luneta, os olhos azuis, que dir-se-iam infantis, no fundo uma grande bondade e um caráter firme.
As primeiras impressões de André tinham tido um certo êxito pelo seu paganismo, uma maneira leve de escrever, lembrando a finura que têm os mestres florentinos nas suas medalhas nítidas.
Dissera recantos de paisagens, brilhos de mares azuis, figurinhas que tinham passado, sutis, pela sua vista, desaparecendo logo, na rapidez das viagens, no imprevisto das caminhadas pelos campos serenos da Toscana.
Ser delicado e cético, saboreou a ironia viva e o ceticismo escárnica de Jacintho Roquette e juntos andavam pelos teatros, vendo retalhos de peças e demorando-se pelos camarins em flirts com atrizes, ceias pacatas, que as companheiras não suportavam, by their own respectability, orgias triunfais, até que se apaixonou por Marta, essa atriz magricela, que guerreava a velhice com pastas de cosméticos e massagens, a única mesmo que conhecia e usava os processos parisienses para a guerra da galanteria.
Marta tinha uma vida irregular, tecida em mentiras, mistérios, certos hiatos de treva, na sua vida, até para os mais íntimos.
Nunca um só amante, nunca num trimestre inteiro o seu leito conheceu o mesmo corpo, antes variavam, mudavam, com sinceros beguins, às vezes o seu coração e o seu corpo pareciam uma estalagem de entroncamento, como um vertiginoso vai-vem de passageiros.
André, numa noite feliz, em que uma joia brilhou ante os olhos de Marta, teve a ventura de a acompanhar a casa num trem que se desarticulava, guiado por um batedor experimentado.
E de manhã, ao almoço, satisfez, contente uma pequena conta de chapéus.
Reconhecida a uma generosidade tal, Marta, durante três dias, foi fiel a André. Mas ao quarto dia, pretextando enxaqueca, recusou-lhe o leito de pau santo e os braços brancos, férteis em carícias.
As enxaquecas repetiram-se e André entrou a desconfiar, a carpir-se tristemente da infidelidade de Marta, a Jacintho Roquette que chasqueava:
— Ela recebe-os ambos ao mesmo tempo? Não. Que te importa então? Os beijos que ela te dá têm o mesmo sabor? Têm. Que te importa o resto? Encontras um perfume estranho no seu corpo? Mas é uma coquetterie o querer variar de perfume. Então?
As razões aduzidas não convenciam André e, lentamente, o que fora talvez um capricho, o desejo infantil de possuir a mulher da moda que era chique possuir, foi-se transformando em obsessão, em ideia fixa, tinha a necessidade de estar com ela constantemente, rondar-lhe o camarim, espreitava-a entre os bastidores à espera da deixa, ia ao meio-dia esperá-la à porta do teatro, quando entrava para o ensaio, e, nas noites de enxaqueca, desolado, nervoso, ia com o Roquette dizer mal dela, pôr-lhe a nu todos os defeitos, inventando alguns, mas tendo sempre um secreto desejo de a possuir, mesmo nas passagens mais verrinosas surgia a imagem de Marta, nua, a boca pequena espremida num beijo, a oferecer-se-lhe.
E André redobrava de violência, dizia a vida postiça e infame da amante, a teia de mentiras que urdia, as suas baixezas, com um prazer cruel enumerava o rol comprido dos amantes, e terminava quase a soluçar:
— Cest une catin; il faut la tuer; "morte la catin, mort le chagrin."
— Mais uma filípica! concluiu, rindo-se, o Roquette. Vou-te apresentar hoje uma das minhas amigas, a Princesa das Botas Cambadas. Curar-te-ei pela homeopatia: dentada de cabra, com pelo de cabra se cura.
Mas Miguel sentia-se frio e aborrecido, e triste, diante das princesas do Roquette, até que um dia, sem dizer nada, decidiu-se a recolher-se à Quinta Alegre, onde havia cinco anos não se demorava, pois depois da sua viagem, tivera uma vida de estroina, que o fazia fugir de casa após o almoço tardio, para só recolher a altas horas ou noite, até madrugada clara.
Fizera de Violante sua confidente, e a ela contou, polidas as asperezas, o mal de amor de que sofria, e o desejo de o curar.
— Vou ser teu médico. Deste-te mal com as mulheres... Experimenta as flores. São mais lindas e fazem sofrer menos. Dirigirás o jardim. Manda fazer as obras que quiseres. Precisamente tens aqui no "Studio" um artigo sobre a arquitetura dos jardins. Faze modificações à tua vontade. O teu pai concorda; eu ajudo-te, travamos relações, porque, para dizer a verdade, mal nos conhecemos. Desde que foste para Florença que não falo contigo, senão à pressa, quando te preparas para sair. Ainda te vejo menos do que quando eu era uma menina grave e te batia em casa da tia Taleiros, pelas tuas partidas. Olha, amanhã começa o mês de Maria... Enfeita a capela. Tens às tuas ordens o jardineiro e o jardim todo. Tens invenção e gosto... olha que eu exijo gênio!...
— Oh! Gênio... sabes?...
— Bom; contento-me com talento.
— Vá-lá, prometo...
Apanhando um grande ramo de lilases brancos, pôs-lho na cabeça, como um diadema:
— Está enfeitada a Santa!



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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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