A Márcia
(A
Silva Graça)
Aquela velha encarquilhada e ignóbil que encontrei na estrada de
Cascais, pelo crepúsculo suave, tinha uma história.
Estava bêbeda. A boca onde dois únicos dentes se mostravam, careados, no
gargalhar, a boca de beiços finos e roxos, sabendo a álcool e a podridão, tinha
gritado dores, tinha também beijado.
Contou-me tudo, como num vômito. Caiu-lhe de um jato toda a sua história
e toda a sua alma; e pareceu-me que o crepúsculo que fazia de perola o
horizonte longínquo e trazia a calma à ligeira inquietação do Mar, se enchia de
gangrenas, extravasava lodo, manchava o céu puríssimo em que nem um farrapo de
nuvem a esgarçar-se perturbava o estranho sossego.
No mar azulado, pairavam, sem velas, as faluas da pesca. Ao longe
esfumavam-se as montanhas que correm para o Espichel, mais acentuadas na
poeira de cinza e de perola do horizonte. A baixo da estrada corre a fita de
ouro fosco do areal, que nas angras se alastra, para desaparecer nos cachopos violáceos.
É toda debruada de ouro a larga curva da Cidadela ao Hospital de Parede. As
pequenas ondas, na tarde quieta, vinham franjar de renda branca a seda do
areal.
Eu seguia do Estoril para Cascais. Queria ver ainda o mar, fixar em
imagens sutis a palpitação dos últimos brilhos solares na água, conhecer como
vivem e estremecem, sob a água azul, as longas pétalas de luz multicor e fina
em que desabrocha o poente; diluir toda a minha alma na Paz da tarde, que, por
ser tamanha, dava a ilusão de ser eterna. E a velha não me deixava! Ia atrás de
mim a gargalhar, desfiando, por entre os lábios ressequidos, palavras
desconexas, chamando-me a atenção.
O velho trapo! Na cabeça calva a cuia à banda era grotesca. E no
movimento sacudido da embriaguez e do delirium-tremens, as vestes
esgarçadas pareciam agitar bandeirolas, saia de farrapos, corpo de lona.
E não me deixava! Comigo cruzou a linha férrea, parando para, as mãos
abertas sobre os olhos, espreitar se vinha algum comboio.
Como sombra minha atravessou as ruelas de Cascais, o passeio Maria
Pia. Passamos a villa Arnoso e a villa O'Neil.
A noite caia do céu resignadamente. O mar escurecia.
Por certo que o ar fresco da tarde diminuíra a embriaguez, porque as
palavras formavam serie, embora as dissesse numa toada de cantilena.
Sentei-me nos rochedos da Boca do Inferno. Ouvia-se o confuso lamento do
mar na cova onde se agachava uma sombra mais densa.
A velha não podia suster mais tempo a sua história. Sentou-se ao pé de
mim e contou-ma. Há pessoas que têm a alma pequena. As imagens intensas e
poderosas não podem viver lá dentro. É preciso que as deitem para fora. É por
isso que os bêbedos são em geral loquazes e indiscretos. A capacidade psíquica
conservando-se a mesma e engrandecendo-se as imagens pelo poder ampliatório do
vinho, eles falam, confessam-se, vão sós pela rua a dizer os seus segredos; foi
por isso que a velha me contou a história, como a podia ter contado a um poste
do telegrafo ou a um pedregulho da praia.
— Se me visse quando eu era nova! Ih! Ih! Não tinha esta cara, não, nem
só estes dois dentes — e um deles já abala! Era bonita! Era loira. Tinha os
olhos azuis. Que eles agora, de chorar pelas desgraças e de chorar com
o vinho, já não têm cor. Olhe para eles, não tenha medo!
Não tinham cor os olhos. Dentre as pálpebras vermelhas e sem cílios eram
deslavados e estúpidos.
— E os meus cabelos louros e finos! Tenho só algumas mechas brancas,
porque começaram a cair aos punhados de uma doença que tive. E fiquei assim com
a cabeça... E embranqueceram-se os que ficaram...
Tirou a cuia. Metia nojo essa bola em que luziam chagas. Raras mechas de
cabelo a enfeitavam. A velha tornou a rir-se, o mesmo ih! ih! contrafeito em
que abria a boca pútrida.
— O meu corpo era lindo, delgado e forte. Os seios eram brancos e firmes.
Olhe como ficaram!
Tirou, num sacão, da blusa encardida e rota, os seios murchos que
bambolearam como dois figos a desprender-se de um galho. E depois contou,
atropelando as palavras, a querer acabar a história, para se ver livre dela,
como se se esquecesse, ma transmitisse, com o encargo da sua angústia, e
pudesse, sem esse peso, caminhar mais ligeira, ferindo menos os pés descalços
nas pedras das estradas e nas silvas dos atalhos.
O pai era um pequeno lavrador, que vivia feliz entre as suas vinhas e os
seus milhos.
Um dia casou com a mãe, uma pobre rapariga da cidade, que cozia a dias.
Louçã, fresca, de grandes olhos claros, gostava dos vestidos de seda, dos
brincos de ouro e das rendas. Depois do primeiro ano, tiveram Márcia, que pós
no lar contente um ponto de luz. Em volta dela os carinhos adejaram. E as mãos
hábeis da mãe cansaram-se a arranjar-lhe touquinhas, camisinhas, pequenas
coisas de linhos finos que iam à cidade comprar. Parecia uma filha de gente
rica, tão garrida andava.
E linda, com o seu cabelito louro e os olhos azuis muito largos, sempre
abertos como a querer apreender toda a vida, todo o mundo.
Aos sete anos adoeceu gravemente. O médico ia duas e três vezes a casa,
cada dia. E à noite, depois de ver a pequena, ficava ali, enquanto o pai
sonoleava, a conversar com a mãe. O médico era novo, janota, tinha os bigodes
pretos retorcidos e dizia versos. A mãe caiu-lhe nos braços, uma noite em que
Márcia ficara livre de perigo.
— O que eu vi! Vocemecê não acredita, mas vejo ainda! É como se estivesse
diante deles na minha caminha! Eles punham-se aos beijos e aos abraços,
pensando que eu dormia. Eu não dizia nada, nem sabia o que era. O pai ficava
fora, a dormitar, na sala de mesa. Uma noite ele entrou e apanhou-os abraçados.
Voltou sem fazer bulha para dentro. Trouxe uma foice consigo. E degolou-os
ali, o médico primeiro, a mãezinha depois.
"Agarrou-o pelo cabelo e foi como quem monda erva, só de uma vez. E
atirou para o chão a cabeça, de que escorria sangue. A mãe nem pode gritar. Nem
eu, que sentia um peso aqui, na garganta. Também degolou a mãe e atirou para o
chão com a cabeça. A mãe custou mais. Foi aos sacões que a acabou. Depois pós
as cabeças e os corpos fora a pontapés. A pontapés! E então? Parecia doido! E o
quarto parecia-me todo vermelho, e meu pai, e eu mesma sentia o sangue
escorregar-me pelas mãos. E queria limpá-las e não podia. Parecia que tinha as
mãos atadas e sangue na boca! Depois, meu pai, que pensava que eu dormia, veio
lavar a casa, muito devagar, para não fazer bulha. Depois chamou os criados.
Então todos choraram. Mas meu pai não chorou. Veio para o pé de mim e passou
toda a noite a ver ao candeeiro se tinha sangue nas mãos. Chegava-se muito à
luz para ver as unhas. Depois lavava as mãos e sentava-se, punha-se a olhar muito
para elas, a esfregá-las, e ia lavá-las mais!
A velha calou-se por momentos. Depois prosseguiu:
— É tal e qual! Vejo como se fosse vocemecê! As barbas do pai, que eram
pretas, pareciam encarnadas. E tudo, tudo estava tingido de encarnado!
"O pai foi preso, mas daí a meses saiu livre."
Olhou para mim, e com terror:
— Parece que podia matar!
"Fiquei em casa com a mulher que me servira de ama e melhorei.
Antes Deus me tivesse matado, que não tinha sofrido tanto! Lembro-me de tudo!
De tudo! É por isso que bebo. Quando bebo muito, parece-me que os casos se
deram com outros; parecem coisas que me contaram. E bebo muito, bebo sempre,
mas nada me esquece, senão quando caiu na estrada a dormir!"
E voltou à história dolorosa da sua vida, sempre apressada, a querer acabá-la
quanto antes.
Ficara com o pai, sombrio sempre, que lhe dizia palavras severas de uma
moral cruel e sanguinária. Foi crescendo sem alegria na casa de crime e de
amor. Um dia alguém a possuiu também. Sentiu os beijos que são vermelhos como o
sangue e como sangue embriagam, nas bocas amorosas. Sentiu os abraços que
apertam como uma cadeia de flores venenosas. Não me disse o nome do amante, não
me deu uma única indicação. Tratava-o por "alguém", sem ódio.
Um dia sentiu que uma vida estranha se agitava dentro dela; confusa e
alarmada, disse-o ao amante.
— "Nunca mais apareceu. Escrevia-lhe, mas as minhas cartas ficavam
sem resposta. Até que soube que "alguém" tinha abalado da
terra."
Referiu-me com terror os meses angustiosos que passou a querer esconder
o seu "pecado", como ela dizia. Eram sobressaltos contínuos. Não o
queria confessar a ninguém, não queria confidentes. Mesmo na quaresma fingiu-se
doente e não foi à desobriga. Até do padre tinha medo, não fosse ele dizê-lo ao
pai. Este não via nada, absorvido sempre, ensimesmado, como quem tinha dentro
de si imagens suficientes para não recorrer ao mundo exterior. Vivia do
passado, enlizado na noite vermelha em que matara os amantes que se beijavam.
Uma noite, no quarto escuro, onde não se atreveu a acender um candeeiro,
o filho nasceu entre estertores, ralos que Márcia mordia, para não despertar
ninguém, para que ninguém suspeitasse do seu segredo. E nessa noite, enquanto
as dores do parto lhe rasgavam todas as fibras, estorciam todos os nervos e
punham-lhe nos olhos a figura da morte horrível, outras imagens se levantavam,
nítidas, diante dela: o pai com a foice, os amantes que se abraçavam, e as
cabeças decepadas a rolar no chão, com esguichos de sangue. O quarto era todo
vermelho, outra vez, apesar da noite escura. E Márcia rasgava com os dentes os
lençóis, mordia os travesseiros, e o linho tinha um gosto a sangue dos
próprios lábios, mas dos outros, pensava.
O filho nasceu, num vagido. Márcia beijou-o, para o calar. Apesar de se
sentir desmaiar, pegou nele amorosamente e embalou-o. Mas outro gemido saiu da
massa informe. Parecia-lhe que era estridente, enchia todo o quarto, acordaria,
talvez, a vila, como os sinos quando tocam, ansiosos, a rebate.
As suas mãos magras apertaram a garganta do pequenino ser. Nem um ai. O
filho devia estar morto. Levantou-se, a cambalear. As pernas dobravam-se. Com o
pequeno num braço, de rastos, os olhos cheios de sangue da alucinação, rojou-se
pelo quarto, abriu a porta, desceu as escadas às arrecuas, saiu à rua.
Era uma noite clara, sem lua. As estrelas formigavam no céu. A
via-láctea, no azul escuro e transparente, era uma poeira de mica. As árvores
faziam pastas de sombra na paisagem. Uma fonte doloridamente se lamentava, num
tanque de pedra. Lembrava-se de todos os pormenores. Na abegoaria mugiu uma
vaca. E o cão veio apressado e contente lamber-lhe as mãos. Ninguém sentira.
Mas Márcia pensava ouvir passadas no estalido seco das folhas murchas que caíam
e na brisa pelas ramadas, o mexer de vestes de pessoas a persegui-la.
Em cada canto mais denso de sombra, via olhos a espreitá-la. E, em
camisa, quis correr, sem forças. De onde em onde, sentava-se, forçada, porque
as pernas não podiam mais. Ouvia gritar a morta. E as suas unhas cravavam-se
desvairadamente na garganta do inocente. Chegou ao fundo da quinta, um terreno
de trigo já ceifado. Verão seco, a terra chistosa era dura.
— Foi com as minhas mãos que cavei a terra. Como era dura! Parecia que
eram pedras que eu partia com as mãos. E elas encheram-se de sangue. E eu, no meio
daquele trabalho feroz, ainda ouvia o inocentinho gritar. E apertava-lhe mais a
garganta. E voltava a cavar, queria cavar fundo, para que não dessem com o
corpinho quando lavrassem a terra para semear de novo. E não havia maneira! Não
tinha força nem coragem para ir procurar uma enxada, um ferro, qualquer coisa
com que pudesse abrir a terra tão dura, que me fazia doer tanto as mãos. Sentia
que rasgava os dedos. E tinha medo de que amanhecesse. Olhava para o céu, a ver
se já despontava a claridade. E parecia-me sempre ver o céu mais claro, às
vezes até pensava que havia sol de meio-dia. E voltava a cavar, os olhos
fechados, com raiva, sem saber bem o que fazia!"
Conseguiu fazer uma cova. Grande? Pequena? Não sabia dizê-lo. Deitou
terra por cima do cadáver ensanguentado, calcou-o com raiva, e então pode
correr, por entre as árvores, a bater nos galhos e nos troncos, a rasgar a
camisa e as carnes, até casa. Ia amanhecendo. Um traço alaranjado corria na
nascente. Meteu-se na cama e dormiu.
Calou-se. Estendeu-se nas pedras, de borco, a olhar fixamente para o
mar. Era já noite. As estrelas palpitavam no céu transparente. O mar enchera-se
de sombra. Os barcos tinham recolhido já. Ouvia-se apenas o quebrar das vagas
na Boca do Inferno.
Márcia levantou-se e estendeu-me a mão, suplicante:
— Dá-me um tostão para aguardente?!
Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba
Mendes (2019)
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