7/04/2019

A prenda de Natal (Conto), de Carlos Malheiro Dias



A prenda de Natal

— As argolas, mãe? — perguntou, do catrezinho de bancos, a voz estremunhada da criança, que acordara ao rangido da porta.

— Dorme; rapariga... Não ficas sem a consoada... O teu pai ainda não chegou da feira.

A criança voltou-se no catre, ficou com os olhos abertos, encolhida e emudecida, fitando o fogo da caruma, quase extinto no lar, onde requentava a ceia do Natal.

Acocorada na soleira da porta, a mãe, embrulhada num xale, está à espreita, atenta ao menor rumor que vem da estrada.

Já por duas vezes, com o ramalhar das carvalhas ao vento, ela pensou ouvir tropear ao longe a carruagem.

Não se enxerga um palmo na escuridão da noite de lua nova. Um mar de nuvens cobrira os céus, ao fim da tarde. Nem um luzeiro de estrela trespassa agora aquele negrume denso que enche os espaços e por onde o vento anda à solta, varejando as carvalheiras das bouças e assobiando nas agulhas dos pinhais como uma orquestra de flautas.

— Valha-me Deus! O que retêm lá por fora aquele homem, a estas horas da noite! — murmura a mulher, sucumbida.

— Ó mãe, não haveria argolas na feira e terá o pai ido por elas à vila...

— Dorme, rapariga! Amanhã já tens as argolas nas orelhas... Por amor delas desandou o teu pai, sozinho na égua, por essa serra, que mete medo!

Eram a consoada da filha. A colheita em pão e vinho fora de dar graças a Deus. Não havia a pequena de ficar sem as argolas por mais tempo. Logo ao clarear da manhã, o Manuel da Eira selara a égua, entalara o varapau debaixo da coxa, lembrado da quadrilha de Redemoinhos, e pusera-se a caminho para a feira de Lanhoso, prometendo estar de volta ao amortecer do sol, para consoar.

Ainda a mulher advertira, receosa:

— Mete-te a caminho cedo. Toma tento com a ladroagem de Redemoinhos!

E o Manuel da Eira, destemido, voltara-se no selim:

— Hoje é o dia em que nasceu o Salvador. Os ladrões também são gente cristã!

E picando a égua com a espora, abalara, afoito, pela estrada.

Já ao longe, na igreja da freguesia, os sinos tinham tocado para a missa do galo. Rajadas mais fortes de vento enchiam os céus de um burburinho sibilante e agitavam no alpendre os sarmentos das vides ainda por podar.

Súbito, a criança e a mãe erguem-se no catre e no poial da porta.

Uma voz chama, de entre o negrume da noite:

— Ó Maria da Eira!

Sobre as traves, o vento parece que arrasta as telhas. Na corte, os porcos grunhem. Uma nuvem de cinzas ergue-se e rodopia no lar, sobre a caruma.

Sem pinga de sangue, a mulher grita, numa ansiedade aflita, empurrando a cancela:

— Quem me chama?

E entre o rumor do vento distingue a tropeada da égua, os passos vagarosos de dois homens.

— Traga a candeia... — diz a voz, na estrada.

A criança está já fora do catre, à espera das argolas, esfregando nas costas da mão os olhos piscos de sono.

Tropeçando na saia, a mulher desengancha a candeia da parede, e à luz mortiça, saindo ao terreiro, vê o seu homem, trazido a braços, como morto. Atrás do grupo fúnebre avança a égua trôpega.

Os homens param. O da frente, encarando com o desatino da mulher, resmoneia, esbaforido:

— Tome conta na luz! Não vamos agora aqui ficar neste negrume! O seu homem vem vivo.

Só então ela parece acordar do seu doloroso espanto e soluça, erguendo para o céu ventoso os braços, deixando fugir o xale.

— Nossa Senhora! Divino amor de Deus, que estou desgraçada!

— Cale-se, mulher! Derreados vimos nós com este peso! Demos com ele numa vala, caído ao pé da égua. Foi pancada que lhe atiraram à falsa fé para o roubar.

Em altos gritos, ela empurra a porta, ajuda a deitar o seu homem no catre. A criança soluça, refugiada a um canto, sufocada pelo medo, e enquanto a mulher rasga, com a violência do terror, uma camisa de linho para ligaduras, os dois homens lavam as mãos ensanguentadas num alguidar e atiçam o lume da lareira com um graveto de tojo.

Debalde a mulher agora esparge de vinagre o rosto desfigurado do ferido. Com o braço pendente e as unhas cravadas na palma da mão direita, enlameado e lívido, o Manuel da Eira parece morto, estendido no catre.

— Ele já não tem vida! — clama, num alarido de lágrimas, a viúva, desanimando de abrir aquela mão crispada de defunto.

Os homens deixam de atiçar o braseiro, amparam-na e erguem-na do chão, onde ela se deixou cair desanimada, arrancando os cabelos, com um escarcéu de gritos e soluços.

— Os mortos não fecham as mãos. Isto é coisa que ele tem escondida.

Então, novamente, reconfortada por uma última esperança, ela se esforça, mais do que em estancar o sangue das feridas, em abrir o punho obstinadamente fechado do seu homem.

Mas desfalece depressa e de novo abate, com a voz estrangulada de soluços maiores.

Por sua vez, os dois homens tentam, inutilmente, desunir da palma sangrenta os dedos inflexíveis.

— Pai, abre a mão! — geme também a criança, aterrada e aflita.

As suas mãozinhas molhadas de lágrimas imaginam ter a força, que aos outros falta, para despegar aquela garra.

— Abre a mão, pai!

E de repente, obedecendo à vozita implorante, a mão abre-se e duas argolas de ouro, pequeninas, aparecem, reluzem e tilintam no soalho. 

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