7/06/2019

Atribulações de Mr. Gilaz em Goa (Conto), de José da Silva Coelho


Atribulações de Mr. Gilaz em Goa

Mr. Gilaz, pelo nome de batismo Gelásio de Faria, era filho único de Bonifácio de Faria, de Pomburpá, que foi músico reformado da extinta Banda de Artilharia de Nova-Goa.

Seu pai queria destiná-lo à carreira eclesiástica e, por isso, o mandara a Rachol para estudar no Seminário o primeiro ano de latim. Mas o Gelasinho, três meses depois de declinar o hora horae em todagoverno xaves as pousadas de Rachol, encalhou no quicumque e, desistindo de ser padre – por falta de vocação –, dizia ele – regressou a Pomburpá, onde começou a estudar o inglês com seu tio Vicentinho de Faria, que fora despenseiro a bordo dos vapores da P&O.

Anos depois, falecido o pai, o Gelasinho, feito já um rapagão danado e forte, foi para Bombaim tentar fortuna, e empregou-se como ajudante do praticante de farmácia, – assistant physician, escrevia ele para Pomburpá – na ambulância do Dr. Pais, em Cavel.

Passaram anos e o nosso Gelasinho, promovido a praticante por morte de quem o era, transformou-se em Mr. Gilaz e tornou-se um hábil preparador e vendedor de mixtures.

Dirigia-se sempre em inglês aos cozinheiros que iam à sua botica comprar drogas para as suas febres palustres e tratava-os por Mr., inglesando os seus nomes:

Halloo! Mr. John! What do you want?

A bottle of the misture for six days fever.

For your wife?

E satisfazia-lhes o pedido.

Ora, como Mr. Gilaz tivesse feito algumas economias, pensou em voltar para Goa com licença de alguns meses, e arranjou quem o substituísse na farmácia.

Pensou também em introduzir na sua freguesia de Pomburpá o sistema de tratamento por mixture de todas as febres e meteu na sua mala de coiro, comprada no Chôr-bazar, uns frasquinhos de quinino e outros de que conhecia o uso, e, surrupiando um estetoscópio velho, que enferrujava abandonado na farmácia, abalou para Goa.

***

Às 8 horas da manhã atracou o “Indravati” ao cais da Alfândega, em Pangim;9 e o nosso Mr. Gilaz, que desembarcava com a sua mala de coiro e um solodo enorme, foi bruscamente detido por um empregado que lhe exigiu o pagamento da taxa de entrada, antes de pôr os pés em terra.

Mr. Gilaz não se desconcertou com a indelicadeza nacional e, puxando pela bolsa, pagou os anás da taxa de entrada, dizendo ao empregado com todo o garbo:

All right! Get out.

E supunha imitar os ingleses quando dão gorjeta aos criados.

Mas, quando desceu ao barracão da Alfândega, é que foi o bom e o bonito.

Os empregados obrigaram-no a uma porção de formalidades: desmancharam a mala, revistaram a roupa, destaparam os frasquinhos de quinino e outros, cheiraram-nos, abriram o solodo, e, como lá, entre outras coisas, encontrassem um pequeno fardo de bombilins, houve dúvida sobre se por aquilo seria devido o “Bilhete de despacho de importação” ou a “Guia de despacho de mercadorias” e depois de várias idas e voltas, ordens e contraordens obrigaram-no a esperar mais de uma hora, enquanto se fazia a conta dos direitos, vinte por cento de adicionais, ditos municipais, selos etc., etc., e preenchimento de várias fórmulas e formalidades.

Por fim, fora da Alfândega, Mr. Gilaz meteu-se num trem com a sua bagagem e foi à Navegação Fluvial, onde lhe disseram que não haveria nesse dia lancha para Aldoná.

Quis então fretar uma tona. Os marinheiros, porém, exigiam-lhe vinte rupias para ir a Pomburpá, alegando que a Capitania com as suas licenças, registros, bilhetes, selos e emolumentos, lhes levava coiro e cabelo; e exibiam o seu toutiço lustroso e rapado.

Depois de muito regateio ajustou-se a tona por dez rupias; e, agora, era o cocheiro que lhe exigia cinco rupias pela corrida, demora e malas, alegando que lhe tinham aumentado as licenças e os selos; e mostrava-se insolente e malcriado.

Mr. Gilaz tinha bons músculos.

Perdendo a cabeça, sacou a mala do trem, tirou com cuidado o solodo, entregou-o aos marinheiros, e, arregaçando as mangas do casaco, gritou ao cocheiro imitando os condestáveis de polícia:

God d…… bloody fool...... bloody fool, Five rupees for a run?! Perante este argumento de força, o cocheiro, atônito, contentou-se com uma rupia; e Mr. Gilaz, metendo-se na tona, pôde finalmente, seguir a Pomburpá.

***

Mr. Gilaz tinha em Pomburpá um primo, Elizabet, filho do seu tio Vicentinho de Faria, finado despenseiro da P. & O.

Elizabet, fora escrivão suplente das execuções fiscais em Mapuçá; mas tivera de pedir a sua exoneração, porque sendo fraco do físico, levava sovas valentes de cada vez que se atrevia a fazer alguma penhora. Mas como supunha que era jurisperito com a prática adquirida na repartição de fazenda de Mapuçá – fazia solicitações nos cartórios e repartições e dava consultas.

Ultimamente comprara um exemplar do suplemento ao nº II do Boletim Oficial, que trazia a nova Lei do selo e andava a estudá-la com todo o entusiasmo.

Quando o Elizabet soube da chegada do seu primo Gelasinho, dobrou cuidadosamente o suplemento, meteu-o na algibeira e correu à casa do Gelásio para lhe fazer uma visita.

O antigo Gelasinho, hoje Mr. Gilaz, que estava a pôr em ordem as suas coisas, vendo entrar o Elizabet, gritou-lhe de braços abertos:

Halloo! Mr. Lisbette! My cousin Lisbette!

E deu-lhe um abraço que lhe ia pondo os ossos num feixe.

Passados os primeiros momentos de entusiasmo, Elizabet perguntou ao seu primo Gelasinho, porque trazia ele o estetoscópio que tinha na mão; e como Mr. Gilaz lhe informasse, com toda a basófia, que era para a clínica que ele pretendia fazer durante a sua demora em Pomburpá, o Elizabet notou-lhe que teria de pagar uma licença e selos fortes; e, desdobrando o Suplemento do Boletim, que tirou da algibeira, citou-lhe a verba 67 dos diplomas, lendo:

“– X: licença para exercício de qualquer profissão científica adquirida em qualquer Universidade ou academia estrangeira, 30$000 ou 85 rupias e 2 tangas e seis réis.”

Perante tal soma, Mr. Gilaz meteu, mansamente, o estetoscópio na algibeira e explicou: o que ele queria não era bem exercer a clínica, mas vender as suas mixtures e provar a sua eficácia no tratamento das febres.

E abrindo a mala, mostrou-lhe os frascos que trazia.

– Também está previsto e precisa de licença e tens de pagar o respectivo selo – respondia-lhe Elizabet que, virando a página, citou a IIª licença da verba 84 lendo:

“Licença para venda de águas minerais ou medicinais...........................”

Mr. Gilaz, já mal humorado, fechando a mala, replicou-lhe que, nesse caso, aconselharia aos que sofressem de febres irem a Bombaim, à sua farmácia, tomar as mixtures.

E logo o nosso Elizabet treplicou-lhe que ainda isso estava previsto; e, virando a outra página, citou-lhe a licença 14ª, lendo em voz alta:

– Licença para agência de emigração etc. etc. 200$000 réis ou Rps. 06: 11”.

Mr. Gilaz, arreliado, perguntou-lhe quem diabo fizera uma lei prejudicial à saúde pública, ao que o Elizabet lhe retorquiu escandalizado:

– Prejudicial!! Ora essa!

Era até um trabalho de valor; e pena seria se se não publicasse, dissera-o um vogal do Conselho Legislativo! Estava lá tudo previsto!

Nisto, um cão velho e lazarento, que havia em casa, começou a coçar-se vindo para o meio da gente; e o Elizabet, desejoso de mostrar a sua erudição na lei do selo, continuou entusiasmado:

– Olhe! Até esse cão está cá previsto! E lia a 35ª licença:

– “Licença para ter um ou mais cães; sendo para cão de guarda”.

– Mas isso não é um cão de guarda berrou Mr. Gilaz, furioso, está velho e não presta para nada: só se sustenta por caridade.

– Então é cão de luxo e paga ainda mais – retrucou-lhe Elizabet, preparando-se para ler.

Mas como Mr. Gilaz, sentindo a paciência a esgotar-se-lhe, o convidasse a meter a lei na algibeira e a sentar-se, pedindo-lhe para jantar consigo, ser seu hóspede, o Elizabet, ainda na sua, teimoso, com a lei na mão, com uma profunda mesura, disse-lhe:

– Obrigado. Mas precisa primeiro de obter a licença 7ª para hotel ou hospedaria, pagando 1$750 réis ou cinco rupias de selo.

E pôs-lhe o artigo debaixo dos olhos.

Mr. Gilaz, com a paciência já de todo esgotada, rachadíssimo, não compreendendo que pudesse haver lei que fizesse da sua casa hospedaria ou hotel só por convidar um primo a ser seu hóspede, quis ainda ler o artigo; mas a vista turbou-se-lhe e falhando a licença 7ª leu a 8ª:

– “Licença para estalagem casa de pasto ou casa de guarda para cavalgaduras..................”

Então, não podendo mais conter-se, rubro de vergonha e indignação, arregaçou as mangas do casaco, segurou o Elizabet pelos ombros, e, enquanto o ia empurrando fora da porta, berrou-lhe ao ouvido:

– Minha casa será hotel, hospedaria, estalagem; mas casa de pasto ou guarda para cavalgaduras, é que nunca há de ser. E você, sua grande cavalgadura e mais a sua maldita lei do selo, vão já daqui para rua.

E, expulsando-o, fechou violentamente a porta, que fez um grande estrondo; mas, enquanto os seus ecos se repercutiam pela casa dentro, ouviu-se ainda a voz de Elizabet que dizia de fora:

“Licença 37ª B. para fogos de estalo 1$5000 réis ou Rps. 4: 04: 07”.

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(José Francisco da Silva Coelho - Goa: 1889-1944)
Texto-base:
Da tese de: João Figueiredo Alves da Cunha, sob o título: "Entre melindres e espertezas: personagens malandras, nos contos de Lima Barreto e José da Silva Coelho". Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2016.

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