Atribulações de Mr. Gilaz em Goa
Mr.
Gilaz, pelo nome de batismo Gelásio de Faria, era filho único de Bonifácio de
Faria, de Pomburpá, que foi músico reformado da extinta Banda de Artilharia de
Nova-Goa.
Seu pai
queria destiná-lo à carreira eclesiástica e, por isso, o mandara a Rachol para
estudar no Seminário o primeiro ano de latim. Mas o Gelasinho, três meses
depois de declinar o hora horae em
todagoverno xaves as pousadas de
Rachol, encalhou no quicumque e,
desistindo de ser padre – por falta de vocação –, dizia ele – regressou a
Pomburpá, onde começou a estudar o inglês com seu tio Vicentinho de Faria, que
fora despenseiro a bordo dos vapores da P&O.
Anos
depois, falecido o pai, o Gelasinho, feito já um rapagão danado e forte, foi para Bombaim tentar fortuna, e
empregou-se como ajudante do praticante de farmácia, – assistant physician, escrevia ele para Pomburpá – na ambulância do
Dr. Pais, em Cavel.
Passaram
anos e o nosso Gelasinho, promovido a praticante por morte de quem o era,
transformou-se em Mr. Gilaz e tornou-se um hábil preparador e vendedor de mixtures.
Dirigia-se
sempre em inglês aos cozinheiros que iam à sua botica comprar drogas para as
suas febres palustres e tratava-os por Mr., inglesando os seus nomes:
– Halloo!
Mr. John! What do you want?
– A bottle
of the misture for six days fever.
– For your wife?
E
satisfazia-lhes o pedido.
Ora,
como Mr. Gilaz tivesse feito algumas economias, pensou em voltar para Goa com
licença de alguns meses, e arranjou quem o substituísse na farmácia.
Pensou
também em introduzir na sua freguesia de Pomburpá o sistema de tratamento por mixture de todas as febres e meteu na
sua mala de coiro, comprada no Chôr-bazar,
uns frasquinhos de quinino e outros de que conhecia o uso, e, surrupiando um
estetoscópio velho, que enferrujava abandonado na farmácia, abalou para Goa.
***
Às 8
horas da manhã atracou o “Indravati” ao cais da Alfândega, em Pangim;9
e o nosso Mr. Gilaz, que desembarcava com a sua mala de coiro e um solodo enorme, foi bruscamente detido
por um empregado que lhe exigiu o pagamento
da taxa de entrada, antes de pôr os
pés em terra.
Mr.
Gilaz não se desconcertou com a indelicadeza nacional e, puxando pela bolsa,
pagou os anás da taxa de entrada, dizendo ao empregado com todo o garbo:
– All right! Get out.
E
supunha imitar os ingleses quando dão gorjeta aos criados.
Mas,
quando desceu ao barracão da Alfândega, é que foi o bom e o bonito.
Os
empregados obrigaram-no a uma porção de formalidades: desmancharam a mala,
revistaram a roupa, destaparam os frasquinhos de quinino e outros,
cheiraram-nos, abriram o solodo, e,
como lá, entre outras coisas, encontrassem um pequeno fardo de bombilins, houve dúvida sobre se por
aquilo seria devido o “Bilhete de despacho de importação” ou a “Guia de
despacho de mercadorias” e depois de várias idas e voltas, ordens e
contraordens obrigaram-no a esperar mais de uma hora, enquanto se fazia a conta
dos direitos, vinte por cento de adicionais, ditos municipais, selos etc.,
etc., e preenchimento de várias fórmulas e formalidades.
Por fim,
fora da Alfândega, Mr. Gilaz meteu-se num trem com a sua bagagem e foi à
Navegação Fluvial, onde lhe disseram que não haveria nesse dia lancha para
Aldoná.
Quis
então fretar uma tona. Os marinheiros, porém, exigiam-lhe vinte rupias para ir
a Pomburpá, alegando que a Capitania com as suas licenças, registros, bilhetes,
selos e emolumentos, lhes levava coiro e cabelo; e exibiam o seu toutiço
lustroso e rapado.
Depois
de muito regateio ajustou-se a tona por dez rupias; e, agora, era o cocheiro
que lhe exigia cinco rupias pela corrida, demora e malas, alegando que lhe
tinham aumentado as licenças e os selos; e mostrava-se insolente e malcriado.
Mr.
Gilaz tinha bons músculos.
Perdendo
a cabeça, sacou a mala do trem, tirou com cuidado o solodo, entregou-o aos marinheiros, e, arregaçando as mangas do
casaco, gritou ao cocheiro imitando os condestáveis de polícia:
– God d……
bloody fool...... bloody fool, Five
rupees for a run?! Perante este argumento de força, o cocheiro,
atônito, contentou-se com uma rupia; e Mr. Gilaz, metendo-se na tona, pôde
finalmente, seguir a Pomburpá.
***
Mr.
Gilaz tinha em Pomburpá um primo, Elizabet, filho do seu tio Vicentinho de
Faria, finado despenseiro da P. & O.
Elizabet,
fora escrivão suplente das execuções fiscais em Mapuçá; mas tivera de pedir a
sua exoneração, porque sendo fraco do físico, levava sovas valentes de cada vez
que se atrevia a fazer alguma penhora. Mas como supunha que era jurisperito com
a prática adquirida na repartição de fazenda de Mapuçá – fazia solicitações nos cartórios e repartições e dava consultas.
Ultimamente
comprara um exemplar do suplemento ao nº II do Boletim Oficial, que trazia a nova Lei do selo e andava a estudá-la com todo o
entusiasmo.
Quando o
Elizabet soube da chegada do seu primo Gelasinho, dobrou cuidadosamente o
suplemento, meteu-o na algibeira e correu à casa do Gelásio para lhe fazer uma
visita.
O antigo
Gelasinho, hoje Mr. Gilaz, que estava a pôr em ordem as suas coisas, vendo
entrar o Elizabet, gritou-lhe de braços abertos:
– Halloo!
Mr. Lisbette! My cousin Lisbette!
E
deu-lhe um abraço que lhe ia pondo os ossos num feixe.
Passados
os primeiros momentos de entusiasmo, Elizabet perguntou ao seu primo Gelasinho,
porque trazia ele o estetoscópio que tinha na mão; e como Mr. Gilaz lhe
informasse, com toda a basófia, que era para a clínica que ele pretendia fazer
durante a sua demora em Pomburpá, o Elizabet notou-lhe que teria de pagar uma licença e selos fortes; e, desdobrando o Suplemento do Boletim, que tirou da algibeira,
citou-lhe a verba 67 dos diplomas, lendo:
“– X: licença para exercício de qualquer
profissão científica adquirida em qualquer Universidade ou academia
estrangeira, 30$000 ou 85 rupias e 2 tangas e seis réis.”
Perante
tal soma, Mr. Gilaz meteu, mansamente, o estetoscópio na algibeira e explicou:
o que ele queria não era bem exercer a clínica, mas vender as suas mixtures e provar a sua eficácia no
tratamento das febres.
E
abrindo a mala, mostrou-lhe os frascos que trazia.
– Também
está previsto e precisa de licença e tens de pagar o respectivo selo –
respondia-lhe Elizabet que, virando a página, citou a IIª licença da verba 84
lendo:
“Licença
para venda de águas minerais ou medicinais...........................”
Mr.
Gilaz, já mal humorado, fechando a mala, replicou-lhe que, nesse caso,
aconselharia aos que sofressem de febres irem a Bombaim, à sua farmácia, tomar
as mixtures.
E logo o
nosso Elizabet treplicou-lhe que ainda isso estava previsto; e, virando a outra
página, citou-lhe a licença 14ª, lendo em voz alta:
–
Licença para agência de emigração etc. etc. 200$000 réis ou Rps. 06: 11”.
Mr.
Gilaz, arreliado, perguntou-lhe quem diabo fizera uma lei prejudicial à saúde
pública, ao que o Elizabet lhe retorquiu escandalizado:
–
Prejudicial!! Ora essa!
Era até
um trabalho de valor; e pena seria se se não publicasse, dissera-o um vogal do
Conselho Legislativo! Estava lá tudo previsto!
Nisto,
um cão velho e lazarento, que havia em casa, começou a coçar-se vindo para o
meio da gente; e o Elizabet, desejoso de mostrar a sua erudição na lei do selo,
continuou entusiasmado:
– Olhe!
Até esse cão está cá previsto! E lia a 35ª licença:
–
“Licença para ter um ou mais cães; sendo para cão de guarda”.
– Mas
isso não é um cão de guarda berrou Mr. Gilaz, furioso, está velho e não presta
para nada: só se sustenta por caridade.
– Então
é cão de luxo e paga ainda mais – retrucou-lhe Elizabet, preparando-se para
ler.
Mas como
Mr. Gilaz, sentindo a paciência a esgotar-se-lhe, o convidasse a meter a lei na
algibeira e a sentar-se, pedindo-lhe para jantar consigo, ser seu hóspede, o
Elizabet, ainda na sua, teimoso, com a lei na mão, com uma profunda mesura,
disse-lhe:
–
Obrigado. Mas precisa primeiro de obter a licença 7ª para hotel ou hospedaria,
pagando 1$750 réis ou cinco rupias de selo.
E
pôs-lhe o artigo debaixo dos olhos.
Mr.
Gilaz, com a paciência já de todo esgotada, rachadíssimo, não compreendendo que
pudesse haver lei que fizesse da sua casa hospedaria ou hotel só por convidar
um primo a ser seu hóspede, quis ainda ler o artigo; mas a vista turbou-se-lhe
e falhando a licença 7ª leu a 8ª:
–
“Licença para estalagem casa de pasto ou casa de guarda para
cavalgaduras..................”
Então,
não podendo mais conter-se, rubro de vergonha e indignação, arregaçou as mangas
do casaco, segurou o Elizabet pelos ombros, e, enquanto o ia empurrando fora da
porta, berrou-lhe ao ouvido:
– Minha casa será hotel, hospedaria, estalagem; mas casa de pasto ou guarda para cavalgaduras, é que nunca há de ser. E você, sua grande cavalgadura e mais a sua maldita lei do selo, vão já daqui para rua.
E, expulsando-o,
fechou violentamente a porta, que fez um grande estrondo; mas, enquanto os seus
ecos se repercutiam pela casa dentro, ouviu-se ainda a voz de Elizabet que
dizia de fora:
– “Licença 37ª B. para fogos de estalo 1$5000
réis ou Rps. 4: 04: 07”.
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(José Francisco da Silva Coelho - Goa: 1889-1944)
(José Francisco da Silva Coelho - Goa: 1889-1944)
Texto-base:
Da tese de: João Figueiredo Alves da Cunha, sob o título: "Entre melindres e espertezas: personagens malandras, nos contos de Lima Barreto e José da Silva Coelho". Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2016.
Da tese de: João Figueiredo Alves da Cunha, sob o título: "Entre melindres e espertezas: personagens malandras, nos contos de Lima Barreto e José da Silva Coelho". Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2016.

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