Quando,
de madrugada, a parteira o fez despertar, batendo à porta do seu quarto e
gritando-lhe pelas frinchas que acabava de ter um filho, Cucufato Gomes
levantou-se de um salto e usando uma “cabaia” que lhe servia de robe-de-chambre, correu a ver o seu
morgadinho.
Nascera
robusto, gorducho, vermelho como um pimentão, e, com grande zaragata, chupando
um dedo, mostrava instintos de grande voracidade.
– Parece
um alemão! dizia o pai estudando-lhe a fisionomia, os seus menores gestos, e,
sobretudo, o seu forte peito e as suas rechonchudas bochechas, que lhe
anunciavam um futuro comilão, para largas despesas.
Embora o
Cucufato nunca tivesse visto um alemão – como supunha que seu filho parecia de
marca alemã, no físico e na voracidade, procurou um nome alemão para lhe dar;
e, depois de muito matutar, escolheu o de Gerolsteins, que, anteposto ao seu portuguesíssimo
apelido Gomes, devia produzir efeito e fazer de seu filho alguém num futuro não
muito remoto; e, tendo gostado muito desse nome sonoro de Gerolsteins, aplicou-o ao recém-nascido.
Gerolsteins
Gomes, comilão emérito e incansável, foi comendo, fartando-se, e engordando e
crescendo de tal forma que aos dez anos parecia um rapagão de catorze; mas,
como tendo – como dizia o pai – a cabeça na barriga, até aos dez anos não sabia
conhecer as letras do alfabeto, nem limpar a boca enlambuzada de gorduras, nem
o nariz a escorrer ranho, nem outras partes que a decência obriga a não
enumerar.
Quando
mandavam à escola, ficava ele, horas esquecidas, a olhar nas boticas as piras
de tâmaras e bojés expostas à venda, lambendo os beiços e os dedos com os olhos
esbugalhados, sem pensar na lição.
Mas, aos
doze anos, o pai, vendo que o pequeno fazia muita despesa em casa, sem nenhum
proveito, cortou-lhe a sua ração de pão e carne e deixou-o só à canja e arroz e
caril.
Esta
medida, de grande alcance econômico, deu resultado; pois o pequeno, que, até
então, só dera trabalho ao estômago, vendo este vazio, começou a fazer
trabalhar o cérebro, para obter meios de subsistência; e, usando de muita
astúcia e manha, encetou a luta pela vida.
Ia
sempre visitar os parentes justamente à hora em que eles costumavam ir à mesa
do almoço, para cair no prato;
furtava aos pais “poiçás” para comprar no bazar guloseimas que ia pacatamente
comendo pelas ruas; e, todas as vezes que em casa matavam uma galinha, o que
raras vezes sucedia, ia sorrateiramente à cozinha roer os ossos, de que era
grande apreciador.
Por fim,
depois de roer muito os ossos, alguns fosfatos foram entrando na mioleira do
Geroisteinsinho que, aos catorze anos, consegue passar, tangencialmente, a
instrução primária, com a sua colossal figura metida num fato velho de cotim do pai e as patas, as suas
fenomenais patas, em botas meio-soladas de
um tio, as quais, apertando, o faziam coxear.
Findas
as férias, como, apesar da sua habilidade em escamotear poiçás, o Cucufato não tivesse confiança na inteligência do filho,
não se atreveu a mandá-lo ao liceu e meteu-o num colégio de inglês, onde o
Gerolsteinsinho, só aos dezessete anos, feito já um latagão espadaúdo e forte,
conseguiu passar a terceira classe, sabendo alguma coisa de ler, escrever e
contar, em inglês.
***
Passaram
uns cinco anos.
Numa
manhã de Julho, chuvosa e lamacenta, Gerolsteins, que era clerk na Secretaria do Governo, em Bombaim, e estava a ler O Heraldo, que um amigo lhe emprestara,
deu um berro na cadeira onde estava sentado. Lendo a notícia da abertura da
última lotaria da Santa Casa da Misericórdia, vira o número 13013 premiado com
o primeiro prêmio de trinta mil rupias; e desse número, ele comprara o bilhete
inteiro uns vinte dias antes!
Nunca jogara
na lotaria; tinha mesmo escrúpulos em arriscar em jogos de azar o seu dinheiro,
o seu rico dinheirinho ganho em copiar ofícios e registrar notas de serviço; e,
eis que, logo ao primeiro bilhete que comprava, a fortuna o premiava, com
trinta mil rupias!
Que
felicidade!
Sem
dizer nada a ninguém, levantou-se, mudou o fato e, pela primeira vez na sua
vida metendo-se num automóvel, com o bilhete premiado na algibeira do colete,
mandou seguir para Dobitalao, ao Rego
Furtado. Este, que estava certo de o primeiro prêmio ter saído a um dos
bilhetes vendidos pela sua casa, ficou muito admirado de o Gerolsteins, só tão
tarde, ter dado com a fortuna que lhe caíra em casa, e, mediante a comissão de
um por cento, prontificou-se a pagar-lhe desde já o prêmio, pois o clerk receava que lhe furtassem o
bilhete e preferia dinheiro sonante no Banco, à sua ordem.
Feita a
transação, segurado o dinheiro no Banco, a render juros a seis por cento, e com
algumas centenas de rupias no bolso, o Gerolsteins fez os seus preparativos
para regressar a Goa.
Primeiramente,
comunicou à Secretaria, ao seu chefe, que mandava à fava o tal lugar de copista
de ofícios e notas; em seguida foi ao Araújo e mandou talhar um fato de
casimira nova – porque até então só usara velhos, tingidos, dos antigos fatos do pai ou do tio – um fato completo de fraque, meia dúzia
de fatos brancos e indo ao Crawford
Market, comprou um chapéu de feltro e um par de luvas; finalmente, num sale, adquiriu uma mala de coiro,
envernizada e um par de botas.
Uma
semana depois, tendo trocado na geripurana
os seus trastes velhos por um sobretudo de casimira grossa, embarcou no comboio
em terceira classe, comprando bilhete só até Londa; e telegrafou para Goa
anunciando o seu regresso.
***
A
família do Cucufato, que, apesar do dente devorador do Gerolsteinsinho, tinha
por ele uma certa estima, ao saber, por carta confidencial, da sorte que o
favorecera, tinha feito propalar que o Gerolsteins, promovido a oficial-maior
da Secretaria, ia regressar a Goa com licença; e, logo que soube pelo telegrama
a hora da sua chegada, foi recebê-lo à estação do caminho de ferro.
Então, o
“ex-clerk” Gerolsteins, que desde Londa viera em primeira classe, de luvas
calçadas e envergando, apesar do calor que fazia, o sobretudo da geripurana, foi recebido com música e
muitos foguetes queimados à chegada do comboio.
Feitos
os cumprimentos de estilo, o ex-clerk,
metendo-se num trem com a sua lustrosa mala bem à vista, e fumando um enorme planter recolheu-se ao lar paterno e
expôs à família, os seus projetos do futuro: não pensando em voltar a Bombaim,
queria tentar em Goa o negócio em grande escala, não o de poçorcarismo com botica e
armazéns, mas, o de monopólios com escritório e agências comerciais.
Mas,
para isso, era preciso ter influência política.
Tinha um
vago projeto: arrematar ou monopolizar as indústrias da destilação do espírito
de palmeira e caju e exportá-lo para a África e Europa, com agências em
Lourenço Marques, Moçambique, Marselha e Lisboa, onde tinha conhecimentos; e ia
também tentar a política militando no partido governamental.
E, como
a família, muito escandalizada, evocasse as tradições dos seus, que tinham sido
sempre do partido popular, o Gerolsteins retrucou com ares superiores:
–
Lérias! O pai, com a sua política, só deixara dívidas, ao passo que ele, neste
século de positivismo, com o seu tino oportunista, havia de ganhar dinheiro e
importância. Olá, se havia! Haviam de ver! E movia a cabeça com ar de desafio.
Depois
com os conhecimentos jurídicos adquiridos copiando ofícios e notas na
Secretaria de Bombaim, fazia exame de Direito e seria advogado. Pois que
dúvida! Vira logo em Colém dois despachantes da Alfândega, seus antigos
condiscípulos, muito mais burros do que ele, feitos hoje advogados, embora não exercendo
a profissão; e ele, com trinta mil rupias no Banco, não o havia de ser?!
Dois
anos depois, realizavam-se eleições para o conselho municipal; e Gerolsteins
Gomes, que, estudando o direito processual de ouvido com um escrivão de
direito, seu parente, fizera exame e obtivera carta de advogado para Timor, apresentou a sua candidatura para vogal, alegando os seus serviços ao
país e ao partido, prestados tanto em Goa como lá fora.
O chefe
do partido, conhecendo bem o candidato e certo de fazer dele o que bem
quisesse, aceitou-o logo; e Gerolsteins Gomes, advogado provisionário, feito
conselheiro, tomou assento na Câmara.
Logo na
primeira sessão, apresentou um projeto sobre o melhoramento e conserto das
estradas, principalmente daquela que passava pelo edifício da escola primária.
– As
estradas –, dizia ele, defendendo o projeto, – são caminho do progresso; as
escolas são o cenáculo onde a burguesia
vai beber o elixir da
civilização.
A Câmara não pode discutir esse projeto com frialdade.
E,
macaqueando um oficial do exército metropolitano que conhecera em Bombaim e a
quem servira de cicerone e
intérprete, continuava perorando, carregando nos rr a fingir a língua pesada:
– A
nossa terra, encravada no rincão do Malabar, tem de subir bem alto como um
facho de luz retumbante, iluminando o
mar de cabeças da nossa
burguesia,
mocidade radiante que é o futuro da
nossa terrrra. Repito com rudeza franca:
a Câmara no pode discutir esse assunto com frialdade,
com indiferença.
E,
terminada a sessão, Gerolsteins Gomes, todo ufano, triunfante, com grandes ares
de bazófia e importância, saía da Câmara enquanto alguns colegas, reunidos em
círculo, diziam:
– Este
Gerolsteins Gomes, heins! Que talento! Que orador! E o presidente a dizer que
ele não valia nada!...
---
(José
Francisco da Silva Coelho - Goa: 1889-1944)
Texto-base:
Da tese de: João Figueiredo Alves da Cunha, sob o título: "Entre melindres e espertezas: personagens malandras, nos contos de Lima Barreto e José da Silva Coelho". Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2016.
Da tese de: João Figueiredo Alves da Cunha, sob o título: "Entre melindres e espertezas: personagens malandras, nos contos de Lima Barreto e José da Silva Coelho". Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2016.
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