7/06/2019

O Conselheiro Gerolsteins Gomes (Conto), de José da Silva Coelho



O Conselheiro Gerolsteins Gomes

Quando, de madrugada, a parteira o fez despertar, batendo à porta do seu quarto e gritando-lhe pelas frinchas que acabava de ter um filho, Cucufato Gomes levantou-se de um salto e usando uma “cabaia” que lhe servia de robe-de-chambre, correu a ver o seu morgadinho.

Nascera robusto, gorducho, vermelho como um pimentão, e, com grande zaragata, chupando um dedo, mostrava instintos de grande voracidade.

– Parece um alemão! dizia o pai estudando-lhe a fisionomia, os seus menores gestos, e, sobretudo, o seu forte peito e as suas rechonchudas bochechas, que lhe anunciavam um futuro comilão, para largas despesas.

Embora o Cucufato nunca tivesse visto um alemão – como supunha que seu filho parecia de marca alemã, no físico e na voracidade, procurou um nome alemão para lhe dar; e, depois de muito matutar, escolheu o de Gerolsteins, que, anteposto ao seu portuguesíssimo apelido Gomes, devia produzir efeito e fazer de seu filho alguém num futuro não muito remoto; e, tendo gostado muito desse nome sonoro de Gerolsteins, aplicou-o ao recém-nascido.

Gerolsteins Gomes, comilão emérito e incansável, foi comendo, fartando-se, e engordando e crescendo de tal forma que aos dez anos parecia um rapagão de catorze; mas, como tendo – como dizia o pai – a cabeça na barriga, até aos dez anos não sabia conhecer as letras do alfabeto, nem limpar a boca enlambuzada de gorduras, nem o nariz a escorrer ranho, nem outras partes que a decência obriga a não enumerar.

Quando mandavam à escola, ficava ele, horas esquecidas, a olhar nas boticas as piras de tâmaras e bojés expostas à venda, lambendo os beiços e os dedos com os olhos esbugalhados, sem pensar na lição.

Mas, aos doze anos, o pai, vendo que o pequeno fazia muita despesa em casa, sem nenhum proveito, cortou-lhe a sua ração de pão e carne e deixou-o só à canja e arroz e caril.

Esta medida, de grande alcance econômico, deu resultado; pois o pequeno, que, até então, só dera trabalho ao estômago, vendo este vazio, começou a fazer trabalhar o cérebro, para obter meios de subsistência; e, usando de muita astúcia e manha, encetou a luta pela vida.

Ia sempre visitar os parentes justamente à hora em que eles costumavam ir à mesa do almoço, para cair no prato; furtava aos pais “poiçás” para comprar no bazar guloseimas que ia pacatamente comendo pelas ruas; e, todas as vezes que em casa matavam uma galinha, o que raras vezes sucedia, ia sorrateiramente à cozinha roer os ossos, de que era grande apreciador.

Por fim, depois de roer muito os ossos, alguns fosfatos foram entrando na mioleira do Geroisteinsinho que, aos catorze anos, consegue passar, tangencialmente, a instrução primária, com a sua colossal figura metida num fato velho de cotim do pai e as patas, as suas fenomenais patas, em botas meio-soladas de um tio, as quais, apertando, o faziam coxear.

Findas as férias, como, apesar da sua habilidade em escamotear poiçás, o Cucufato não tivesse confiança na inteligência do filho, não se atreveu a mandá-lo ao liceu e meteu-o num colégio de inglês, onde o Gerolsteinsinho, só aos dezessete anos, feito já um latagão espadaúdo e forte, conseguiu passar a terceira classe, sabendo alguma coisa de ler, escrever e contar, em inglês.

***

Passaram uns cinco anos.

Numa manhã de Julho, chuvosa e lamacenta, Gerolsteins, que era clerk na Secretaria do Governo, em Bombaim, e estava a ler O Heraldo, que um amigo lhe emprestara, deu um berro na cadeira onde estava sentado. Lendo a notícia da abertura da última lotaria da Santa Casa da Misericórdia, vira o número 13013 premiado com o primeiro prêmio de trinta mil rupias; e desse número, ele comprara o bilhete inteiro uns vinte dias antes!

Nunca jogara na lotaria; tinha mesmo escrúpulos em arriscar em jogos de azar o seu dinheiro, o seu rico dinheirinho ganho em copiar ofícios e registrar notas de serviço; e, eis que, logo ao primeiro bilhete que comprava, a fortuna o premiava, com trinta mil rupias!

Que felicidade!

Sem dizer nada a ninguém, levantou-se, mudou o fato e, pela primeira vez na sua vida metendo-se num automóvel, com o bilhete premiado na algibeira do colete, mandou seguir para Dobitalao, ao Rego Furtado. Este, que estava certo de o primeiro prêmio ter saído a um dos bilhetes vendidos pela sua casa, ficou muito admirado de o Gerolsteins, só tão tarde, ter dado com a fortuna que lhe caíra em casa, e, mediante a comissão de um por cento, prontificou-se a pagar-lhe desde já o prêmio, pois o clerk receava que lhe furtassem o bilhete e preferia dinheiro sonante no Banco, à sua ordem.

Feita a transação, segurado o dinheiro no Banco, a render juros a seis por cento, e com algumas centenas de rupias no bolso, o Gerolsteins fez os seus preparativos para regressar a Goa.

Primeiramente, comunicou à Secretaria, ao seu chefe, que mandava à fava o tal lugar de copista de ofícios e notas; em seguida foi ao Araújo e mandou talhar um fato de casimira nova – porque até então só usara velhos, tingidos, dos antigos fatos do pai ou do tio – um fato completo de fraque, meia dúzia de fatos brancos e indo ao Crawford Market, comprou um chapéu de feltro e um par de luvas; finalmente, num sale, adquiriu uma mala de coiro, envernizada e um par de botas.

Uma semana depois, tendo trocado na geripurana os seus trastes velhos por um sobretudo de casimira grossa, embarcou no comboio em terceira classe, comprando bilhete só até Londa; e telegrafou para Goa anunciando o seu regresso.

***

A família do Cucufato, que, apesar do dente devorador do Gerolsteinsinho, tinha por ele uma certa estima, ao saber, por carta confidencial, da sorte que o favorecera, tinha feito propalar que o Gerolsteins, promovido a oficial-maior da Secretaria, ia regressar a Goa com licença; e, logo que soube pelo telegrama a hora da sua chegada, foi recebê-lo à estação do caminho de ferro.

Então, o “ex-clerk” Gerolsteins, que desde Londa viera em primeira classe, de luvas calçadas e envergando, apesar do calor que fazia, o sobretudo da geripurana, foi recebido com música e muitos foguetes queimados à chegada do comboio.

Feitos os cumprimentos de estilo, o ex-clerk, metendo-se num trem com a sua lustrosa mala bem à vista, e fumando um enorme planter recolheu-se ao lar paterno e expôs à família, os seus projetos do futuro: não pensando em voltar a Bombaim, queria tentar em Goa o negócio em grande escala, não o de poçorcarismo com botica e armazéns, mas, o de monopólios com escritório e agências comerciais.

Mas, para isso, era preciso ter influência política.

Tinha um vago projeto: arrematar ou monopolizar as indústrias da destilação do espírito de palmeira e caju e exportá-lo para a África e Europa, com agências em Lourenço Marques, Moçambique, Marselha e Lisboa, onde tinha conhecimentos; e ia também tentar a política militando no partido governamental.

E, como a família, muito escandalizada, evocasse as tradições dos seus, que tinham sido sempre do partido popular, o Gerolsteins retrucou com ares superiores:

– Lérias! O pai, com a sua política, só deixara dívidas, ao passo que ele, neste século de positivismo, com o seu tino oportunista, havia de ganhar dinheiro e importância. Olá, se havia! Haviam de ver! E movia a cabeça com ar de desafio.

Depois com os conhecimentos jurídicos adquiridos copiando ofícios e notas na Secretaria de Bombaim, fazia exame de Direito e seria advogado. Pois que dúvida! Vira logo em Colém dois despachantes da Alfândega, seus antigos condiscípulos, muito mais burros do que ele, feitos hoje advogados, embora não exercendo a profissão; e ele, com trinta mil rupias no Banco, não o havia de ser?!

Dois anos depois, realizavam-se eleições para o conselho municipal; e Gerolsteins Gomes, que, estudando o direito processual de ouvido com um escrivão de direito, seu parente, fizera exame e obtivera carta de advogado para Timor, apresentou a sua candidatura para vogal, alegando os seus serviços ao país e ao partido, prestados tanto em Goa como lá fora.

O chefe do partido, conhecendo bem o candidato e certo de fazer dele o que bem quisesse, aceitou-o logo; e Gerolsteins Gomes, advogado provisionário, feito conselheiro, tomou assento na Câmara.

Logo na primeira sessão, apresentou um projeto sobre o melhoramento e conserto das estradas, principalmente daquela que passava pelo edifício da escola primária.

– As estradas –, dizia ele, defendendo o projeto, – são caminho do progresso; as escolas são o cenáculo onde a burguesia vai beber o elixir da

civilização. A Câmara não pode discutir esse projeto com frialdade.

E, macaqueando um oficial do exército metropolitano que conhecera em Bombaim e a quem servira de cicerone e intérprete, continuava perorando, carregando nos rr a fingir a língua pesada:

– A nossa terra, encravada no rincão do Malabar, tem de subir bem alto como um facho de luz retumbante, iluminando o mar de cabeças da nossa

burguesia, mocidade radiante que é o futuro da nossa terrrra. Repito com rudeza franca: a Câmara no pode discutir esse assunto com frialdade, com indiferença.

E, terminada a sessão, Gerolsteins Gomes, todo ufano, triunfante, com grandes ares de bazófia e importância, saía da Câmara enquanto alguns colegas, reunidos em círculo, diziam:

– Este Gerolsteins Gomes, heins! Que talento! Que orador! E o presidente a dizer que ele não valia nada!...

 
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(José Francisco da Silva Coelho - Goa: 1889-1944)
Texto-base:
Da tese de: João Figueiredo Alves da Cunha, sob o título: "Entre melindres e espertezas: personagens malandras, nos contos de Lima Barreto e José da Silva Coelho". Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2016.

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