Pelo esquecimento em que estão os
nomes dos nossos ilustres antepassados; o desleixo com que tratamos os poucos
escritores que nos dão glória, e a completa ignorância da nossa literatura, sou
forçado a dar aqui uma breve notícia do principal personagem deste drama, para
sua melhor inteligência.
Antônio José da Silva nasceu no Rio de
Janeiro, em 8 de maio de 1705; seu pai, João Mendes da Silva, que exercia a
profissão de advogado, o mandou estudar Direito na Universidade de Coimbra. Daí,
tendo-se já formado, partiu para Lisboa, onde se estabeleceu, e começou a
advogar, e a adquirir reputação e amizades.
Dotado de um gênio nimiamente cômico e
satírico, deu-se às composições teatrais, desprezando todas as regras
estabelecidas, e não atendendo senão ao estado do povo para quem escrevia. Em
vão o Conde de Ericeira, então literato de grande nota, e legislador do parnaso
luso, o aconselhava a imitar a Molière, como ele em tudo imitava, e seguia a
Boileau, de quem traduzira em português a Arte
Poética. Antônio José ouvia os conselhos do seu nobre amigo, admirava Molière,
mas seu gênio era outro. Apesar de todos os seus defeitos, mereceu a
denominação de Plauto-Luso. Antônio
José é o único rival de Gil Vicente, e suas composições ainda hoje são aplaudidas
nos teatros de Lisboa; elas correm impressas com o título de — Óperas Portuguesas. A guerra de Alecrim
e Mangerona, Dom Quixote, Labirinto de Creta e Esopo encerram cenas
verdadeiramente cômicas. D. Quixote foi traduzido em francês por Mr. Ferdinand
Denis, Autor de muitas obras estimáveis.
As particularidades de sua vida são
ignoradas; mas do silêncio da História se aproveita com vantagem a Poesia; e a
imaginação supre otimamente todas as omissões. O que se sabe positivamente é que
ele foi queimado vivo na praça do Rocio, em Lisboa, em um Auto de fé, em 1739,
na idade de 34 anos, tendo sido acusado ao Santo Ofício como judeu.
Desejando encetar minha carreira dramática por um assunto nacional, nenhum me pareceu mais capaz de despertar as simpatias e as paixões trágicas do que este. As desgraças de um literato, de um poeta, que concorreu para glória nacional, não podem deixar de excitar interesse e amor, ao menos no nosso país; e tanto mais deve esta lição ser importante , quanto a miséria e o abandono é o fim de quase todos os poetas portugueses e brasileiros. Queira o céu compadecer-se dos futuros engenhos, e animá-los nesta nobre empresa de civilização e de glória nacional, apesar da ingratidão e indiferença daqueles que podem e devem favorecer os nascentes gênios; que bem disse Camões:
O favor com que mais se acende o engenho,
Não no dá a Pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça!
Ainda hoje assim é!...
Digamos duas palavras sobre o sucesso
desta obra na sua representação. Se devesse julgar do mérito desta Tragédia
pelos aplausos que lhe prodigalizou o público nas repetidas vezes que subiu à cena,
eu me acreditaria autor feliz, isento de censuras, atendendo ao entusiasmo com
que foi recebida, e os elogios que mereceu, particularmente o 5º ato.
Tal acolhimento esteve bem longe dos
meus pressentimentos. Ou fosse pela escolha de um assunto nacional, ou pela
novidade da declamação e reforma da arte dramática (substituindo a monótona cantilena
com que os atores recitavam seus papéis, pelo novo método natural e expressivo,
até então desconhecido entre nós), o público mostrou-se atencioso, e
recompensou as fadigas do poeta.
Mas eu sei o quanto perde a obra do entusiasmo
em uma leitura fria e desanimada; então adormecidas as paixões, pretende a
razão crítica penetrar e julgar, onde só ao sentimento é dado o decidir. Sei de
mais o quanto é volúvel a opinião do público, e quão fácil se esquece ele neste
ano do que sentiu e disse no ano passado.
Frios censores, críticos impassíveis,
juízes parciais e imparciais, amigos e inimigos, a vós me entrego.
Não faltarão acusações em todos os
gêneros. Talvez tenham razão, sobre tudo se quiserem medir esta obra com o
compasso de Aristóteles e de Horácio, ou vê-la com o prisma dos românticos. Eu
não sigo nem o rigor dos clássicos, nem o desalinho dos segundos; não vendo
verdade absoluta em nenhum dos sistemas, faço as devidas concessões a ambos; ou
antes, faço o que entendo, e o que posso. Isto digo eu aos que ao menos têm
lido Shakespeare e Racine; aos que tomam partido nestas questões hoje em moda
em literatura dramática; aos que porém, leem cantando a Tragédia, com a mesma toada
da Ode, e julgam do mérito de um poema pelas pancadas retumbantes dos versos,
que se encadeiam como os sons do martelo sobre a incude, dir-lhes-ei, que isto
não é soneto, nem versos de outeiros. Lembrarei somente que esta é, se me não engano,
a primeira Tragédia escrita por um brasileiro, e única de assunto nacional.
Humildemente peço aos meus críticos que me desculpem a ousadia de compor uma
Tragédia, quando eles dotados de maior gênio e talento, não se animam a tanto.
Se houver quem tenha bastante ânimo para dar de mão aos interesses positivos,
e, esquecendo-se da sátira, seguir-me na árdua empresa de enriquecer a nossa
pobre literatura, apesar da vergonhosa indiferença com que se tratam hoje os literatos;
eu lhe desejo, além da glória da perfeição, todos os nobres estímulos de que é
credor o gênio. Mas ah! na porta do templo da imortalidade está escrito para os
brasileiros estas palavras , como na porta do Inferno do Dante:
Lasciate ogni speranza, voi che'ntrate.
---
GONÇALVES DE MAGALHÃES
Maio do 1839.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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