7/09/2019

Carta e resposta (Correspondência), de Martins Pena



Cartas

6 de outubro de 1847.


Carta de Manuel Luís em despedida. Resposta à mesma.


Meu caro Folhetinista.

Glória a Deus no céu, e paz na terra aos homens. Há tempos que não lhe escrevo, e desta falta me acuso; mas espero que me desculpará,sabendo que tenho andado cá pelo céu muito ocupado com a redação de um novo regulamento policial que desejo oferecer ao Teatro de São Pedro para sua futura tranquilidade. Já havia tomado a peito este trabalho algo que soube dos distúrbios ocasionados pelos partidistas dilettanti, e dava-lhe agora com todo o afinco a última demão, constando-me que a estreia de um ator português havia de novo exaltado os ânimos. Quando empreendo qualquer coisa levo-a a fim, e muito desejo que seja completa; um regulamento policial para teatro abandonado e desacreditado era trabalho perdido; e pois empreendi também escrever umas instruções que amigavelmente remeterei, por intermédio do anjo Gabriel, ao presidente do Teatro de São Pedro, para sua maior glória e satisfação. Trabalhava com todo o amor e aplicação estes dois primores de obra, que dois serafins iam copiando em lindo bastardinho, quando, ao levantar a cabeça, dando um suspiro de contentamento por haver terminado o meu trabalho, vi diante de mim as veneráveis figuras de São Pedro e de São Francisco, que encaravam-me contristados. Levantei-me apressado e respeitoso, e largando a pena, agradeci, como devia, tão honrosa visita.

– Manuel Luís, disse-me o Apóstolo, muito triste e acabrunhado estou.

– Vós, senhor! lhe respondi eu; e por quê?

– O meu teatro lírico, tornou o Apóstolo, vai a definhar. Toda a sua companhia italiana acha-se no maior descrédito; o público foge de seus espetáculos. Erma e deserta se tem tornado a sua plateia, e as melhores óperas morrem apenas nascem. Este estado de coisas corta-me o coração e aflige-me sobremaneira. Sei, por informações, que quase todos os seus cantores acham-se em deplorável estado. Uma das primas-donnas grita que é um tormento; a outra, por compensação, não grita, mas é porque tem a voz cansada. Com meneios e requebros preenche outra as cláusulas do seu contrato; com polidez e arte canta a segunda dama, mas nada pode fazer na posição em que está; pelo nariz canta o contralto, e vai com o bufo de parelha; o tenor grande é um desastrado, nada sabe, nada entende, e...

Aqui sorri-me eu; o Apóstolo, de enfiado, parou no seu discurso e perguntou:

– De que te ris, Manuel Luís?

– Santo Apóstolo, perdoai-me, lhe respondi respeitoso; creio que estais fazendo versos.

– Pode muito bem ser, tornou-me ele, aquele meu teatro tem feito maiores prodígios do que tornar poeta um rígido discípulo do Senhor; senão, observa o que por lá se passa, que desta triste verdade te convencerás. Por Deus, Manuel Luís, tenho, às vezes, ímpetos de fechar as portas do meu teatro e correr para fora com toda aquela súcia cantante que já para nada presta. Vê tu também como aquilo por lá se governa. O presidente terá bons desejos; mas atrapalham-no, embaralham-no, e ei-lo dando cincas. Em uma palavra, o meu teatro vai a definhar a olhos vistos, e eu não lhe posso valer!

– Não lhe podeis valer! interrompi eu admirado ao Apóstolo; não lhe podeis valer! e por que? Não é vosso o teatro? não sois um santo poderoso? Não tendes poder e crédito na corte celeste? O que vos impede pois de tomardes as providências necessárias para salvação daquela nossa casa tão querida e lastimada?

Com este meu argumentar, São Pedro olhou para mim silencioso por alguns instantes, e suspirando disse depois:

– Manuel Luís, quer-se às vezes o que se não pode: tenho crédito, tenho, e disso me glorio; mas como dar merecimento e prestígio ao povo cantarejo, reabilitá-lo enfim? Pensas tu que é isto uma coisa de nonada, e que o público, que já de sobra o conhece, ainda estará de bom humor para aturá-lo? Ai de meu infeliz teatro,Manuel Luís! deram com ele em pantana. Os músicos da orquestra fazem proezas; a governança deixa-se guiar pro caprichos; o teatro está imundo como uma pocilga; o azeite do lustre é mau e rançoso, e os cantores piores que o azeite. Com todo este material, o que se pode fazer que valha, já não digo a pena, mas alguns cobres? Vai tudo em debandada, meu bom Manuel Luís, e para descrédito meu, porque o padroeiro daquela casa de Orates... Quem tal diria?...

Assim falou o Apóstolo; e, como desanimado, deixou cair a cabeça sobre o peito e meditabundo conservou-se nessa posição por alguns momentos. O patriarca São Francisco bateu então violentamente com o cajado no chão, o que me fez a mim dar um pulo de espanto, e ao serafim, que copiava as minhas instruções policiais, deitar um borrão sobre o nome do juiz do teatro. O Apóstolo, tranquilo e sereno, levantou a cabeça, e, dirigindo-se ao patriarca, assim, falou-lhe:

– Tens razão, celestial colega, de tanto te azedares com a enumeração dos transtornos do meu teatro, e porque não menos digno de lástima é também o teu. Sei o que lá se passa e me condoo de ti.

O patriarca São Francisco voltou-se para mim e com voz grave e pausada, exclamou: – Manuel Luís, se não fora blasfêmia afirmaria que ambos os teatros, o meu e o do colega São Pedro, estão levados de todos os diabos! Já para nada prestam, e para nada valem! O colega acaba de enumerar sucintamente os embaraços e defeitos do seu, e agora direi eu também que o meu está outro que tal. Lá havia uma companhia lírica francesa que ia arranhando como podia certas óperas; por algum tempo tiveram algum crédito, mas isso foi de pouca duração, e o descrédito veio-lhe de seguida. A prima-donna merecia as simpatias do público e da imprensa; foi elogiada e animada como nunca o esperou ela nos seus mais exaltados sonhos de glórias; mas vai senão quando por uma leve censura que se lhe fez, tomou a inabalável resolução de não cantar mais...

– Desta me rio eu, santo patriarca, interrompeu São Pedro; estes propósitos e resoluções de cantoras só iludem aos incautos; são palavras ocas de sentido, e que nada significam; não é assim Manuel Luís?

– Com permissão de vossas santidades, direi que o p ovo teatral tem para seu uso um dicionário particular, que só a prática nos ensina decifrar. Administrei um teatro por alguns anos, lidei com essa gente, e conheço-lhes as manha s. O ator ou atriz, cantor ou cantora, que mereceu durante os seus trabalhos aplausos e elogios do público, com muito poucas execuções, ficam insuflados de orgulho, e na ocasião de renovarem os seus contratos tomam logo a inabalável, a firme, a firmíssima, a sólida, a estabilíssima resolução de não cantarem ou representarem mais.

– Porém isto parece contrassenso, interrompeu-me o patriarca; deveriam, antes, esses artistas, continuarem a trabalhar no lugar em que se lhes dá apreço...

– Isso querem eles, continuei eu; mas o querem de modo mais proveitoso às suas algibeiras. Em uma palavra, todas essas demonstrações de descontentamento, e desejos de deixarem o tablado que lhes tem servido de pedestal de glória, querem dizer dinheiro, e nada mais.

– Oh! Manuel Luís, não creio que assim seja! acudiu São Francisco; não é possível que tão ignóbil motivo...

– Ignóbil, santo patriarca? dinheiro, ignóbil motivo! sê-lo-á cá no céu, porém lá na terra, não! E demais, depende isso do modo de entender as coisas. O público, por exemplo, dá palmas em sinal de aprovação, mas o cantor ou a cantora calcula estas palmas em uns tantos réis, e na renovação dos contratos apresenta a soma total como apreciação do seu merecimento. E quem tem culpa disso? O público. Toma este simpatia por alguém, exalta-o, eleva-o, enche-o de orgulho e vaidade, e por fim deita-o a perder. Sempre disse, e ainda agora o direi, a nímia bondade do público, e a excessiva presunção dos artistas teatrais, causam a ruína dos empresários. Tornarei a repetir: quem, como eu, conhece o valor das inabaláveis resoluções, ri-se delas e vai à caixa ver se tem dinheiro para o aumento de ordenado que em breve será pedido.

Com esta explicação que dei, o patriarca mostrou-se mais sereno e prosseguiu:

– Julgas então que a minha prima-donna com mais alguns cobres ficará?

– E por que não? respondi eu. Para onde irá ela que mais aplaudida e querida seja! E além disso não foram os bonitos olhos dos fluminenses que a trouxeram das bordas do Seine; e quem assim não pensar logra-se a si mesmo.

– Manuel Luís, disse então o Apóstolo, basta de parolar, reconheço a tua experiência nestas matérias, dou a ela inteiro crédito, mas não é este o motivo que aqui me traz, e ao colega São Francisco; outro obséquio espero de ti.

– Ordenai, meu bom São Pedro, tornei eu respeitoso; que mandais deste vosso servo?

– Há mais de quinze dias, prosseguiu o Apóstolo, que não sei notícias do meu teatro...

– Disso também me queixo eu, interrompeu São Francisco.

– Ambos nos queixamos, continuou o Apóstolo; e desta falta tornamos toda a culpa ao Jornal do Comércio, que não sei por que deixou de publicar a sua Semana Lírica. Estes jornalistas são sempre assim; falham na melhor ocasião. Pedimos-te, pois, meu querido Manuel Luís, que vás ao Rio de Janeiro saber o que há por lá de novo a esse respeito, para assim ficarmos descansados.

– Que eu vá ao Rio de Janeiro! Respondi eu com o coração pulando-me de contente no peito; e quando devo partir?

– Hoje mesmo, disse de pronto São Francisco; e sem mais demora, porque estamos impacientes.

– Irei só ou acompanhado?

– Quem queres levar contigo?

– O maestro Bellini, que já foi meu companheiro de viagem.

– Pois seja, disseram os dois santos ao mesmo tempo. Vai procurá-lo e parte o quanto antes.

– Mas quantos dias, aventurei-me eu a dizer, se me concedem para observar o estado de ambos os teatros?

– Os que te parecerem suficientes, retorquiu-me o Apóstolo.

– E se derem por minha falta cá no céu?

– Tolo, acudiu prontamente São Pedro; não sou eu o porteiro e nessa qualidade não posso fazer tudo quanto quero? Se duvidas das imunidades e regalias de um porteiro, pergunta ao das cadeiras do meu teatro quem lhe deu o direito de ser tão sem-cerimônia para com o público. Anda, vai, procura o maestro, e parte quanto antes.

São Pedro e São Francisco, depois de me haverem assim falado, dirigiram-se, conversando, para a porta do céu, e eu tomei os meus manuscritos dos serafins que os copiavam, guardei-os no bolso, e despedi aqueles, que foram pulando de contentes brincar o tempo-será. Saí imediatamente em procura do maestro, e encontrei-o dormindo a sesta em cima de uma grande folha de papel pautado; acordei-o, disse-lhe ao que vinha, e de boa vontade aceitou ele o meu convite; levantou-se e cantarolando tomou o meu braço e encaminhamo-nos para a porta do céu, a qual, sendo aberta por São Pedro, deu-nos livre passagem.

Pusemo-nos a caminho, meu caro folhetinista; com a velocidade do relâmpago devorávamos o espaço, e durante alguns milheiros de léguas não encontramos uma só alma. Ao chegarmos, porém, junto do Cruzeiro do Sul, ouvimos o ruído de duas asas, e poucos momentos depois apareceu-nos o Anjo da Harmonia, que demandava o céu com toda a velocidade.

– Manuel Luís, disse-me o maestro, aquele é o Anjo da Harmonia! Donde virá ele?

– Não sei; pergunta-lhe.

– Salve, mensageiro celeste, bradou o maestro, porque tão apressado caminhas para as alturas?

– Fujo da terra, maestro, respondeu o anjo reconhecendo quem o interrogava, ou para melhor dizer, fujo do Rio de Janeiro, onde tenho sido atrozmente maltratado pela companhia italiana e sua digna orquestra. Aquilo por lá, maestro, anda que é um horror, e para não renegar da minha essência celeste, bati asas, deixe o teatro lírico entregue ao seu abandono, e tomei o caminho do céu. Adeus maestro feliz viagem.

Assim falando, o Anjo da Harmonia apertou o voo, e em breve desapareceu por entre as estrelas. Bellini, ouvindo o que ele lhe dissera, olhou para mim, suspirou, e sem dizer palavra, como quem a tudo estava resignado, seguiu o caminho da terra. Em menos de dois segundos achamo-nos no Largo do Rocio; o teatro estava aberto, entramos; representava-se a ópera Cenerentola.

Longo seria, meu caro folhetinista, consignar aqui por escrito todas as reflexões que eu e o maestro fizemos a respeito da representação, não só desta ópera, como de todas as outras que ouvimos durante quinze dias que frequentamos os teatros dessa corte. Cansados, aborrecidos, enfastiados, deixamos esses cantores medíocres, presunçosos e insuflados, com a firme tenção de não voltarmos tão cedo para ouvi-lo s e do fundo d’alma agradecemos a Deus tão salutar resolução. Escolha, meu caro folhetinista, em toda esta cidade o homem mais pachorrento, paciente e fácil de contentar, obrigue-o a ouvir a Cenerentola pela Mugnay e pelo Franchi; a Figlia del Reggimento pela Barbieri e pelo Vento, e a Beatrice di Tenda pela Lasagna, e verá como se torna ele furioso e dá-se os a berros.

A propósito de Beatrice di Tenda. O maestro Bellini está furibundo com a Lasagna pelo modo por que cantou nesta sua ópera; tem dito desta cantora impropérios, e esteve quase não quase formulando contra ela uma acusação, e chamando-a a jurados pelo assassinato que cometera. Fui eu que o dissuadi desta ideia. Pobre maestro!

Como lhe dizia, meu caro folhetinista, deixamos, cheios de desgostos e pesares, os teatros dessa capital; mas antes de chegar ao céu paramos por alguns instantes no planeta Vênus para recapitularmos as nossas impressões e darmos fiel conta a São Pedro e São Francisco. Foi o maestro o primeiro que me dirigiu a palavra, perguntando:

– Manuel Luís, que pensas tu dos dois teatros, italiano e francês, do Rio de Janeiro? Tossi, tomei uma pitada, e com toda a seriedade e dignidade, respondi: – Maestro, bem sabes que de cantoria nada entendo; se os cantores são bons ou maus não to sei dizer, deixo lá esta matéria ao teu discernimento; mas posso dizer-te sem temor de errar, por isso que a experiência me constitui juiz competente, que o teatro de São Pedro está nos seus arrancos de morte, e que em breve será cadáver. Há nesses estabelecimentos um infalível termômetro para mostrar o seu grau de vitalidade, e é este a caixa; durante as noites de espetáculo entramos dentro desta para calcular a receita e lembrado estarás, maestro, que grande foi o nosso espanto vendo o seu magro conteúdo, que nem para luzes dava. Eu cá sempre calculei por algarismos, e quando estes falham, falhando vai tudo. Isto é muito claro. Não há dinheiro porque os espetáculos não prestam, e o porquê não prestam, melhor do que eu dirá o maestro, que de solfa entende. Tenho explicado mercantilmente a morte do teatro, e agora espero que o maestro a explique artisticamente.

Bellini respondeu-me depois de breve meditar:

– De uma só coisa admiro-me, e muito, e é que os do is teatros líricos, italiano e francês, tenham se podido aguentar até hoje. Isto prova mais que tudo que o bom povo fluminense está sequioso de divertimentos, e que aceita com prazenteiro semblante gato por lebre. Vejamos quem são as cantoras italianas: Lasagna, Mugnay, Meréa, Barbieri e Canonero. Darei aqui breve resenha de seus merecimentos.

A Lasagna como atriz nada vale, e como cantora grita que é um tormento. Ora, ninguém dirá que é agradável despender-se dinheiro para ouvir gritar a compasso, e às vezes fora dele e de entoação. Há no homem um sentimento natural de repulsão, que se manifesta involuntariamente quando uma harmonia qualquer, que escuta com prazer, é interrompida ou adulterada por sons estridentes e discordantes. É curiosíssimo observar o grau de impressão que este defeito causa nos diversos indivíduos: este leva apressado as mãos aos ouvidos; aquele faz uma terrível careta; este outro estremece e dá um pulo como se o tocasse fluido elétrico; aquele outro solta um impropério,às vezes bem pouco delicado; enfim, segundo a sensibilidade dos tímpanos de cada um essas demonstrações tornam-se mais ou menos fortes. Tenho ouvido sempre dizer que ninguém se conhece a si, e eu acrescentarei, que ninguém se ouve a si; porque do contrário a Lasagna teria deixado de gritar.

A Mugnay tem boa escola de canto, pisa a cena com desembaraço, e possui além destas qualidades, que se adquirem pelo estudo e preceitos da arte, os dons que só dá a natureza, quais os de gentileza e graça; infelizmente porém tem a voz tão cansada e exaurida, que é uma lástima ouvi-la. É sabido por geral experiência que a garganta dos cantores e cantoras é um instrumento delicadíssimo, o menor vento o estraga, o mais pequeno acidente o desarranja, e sobretudo, os dias que passam, já nãodigo os anos, o inutilizam: seja isto dito sem aplicação.

A Meréa é a melhor cantora de quantas se acham na companhia; mas, coitadinha, nada pode fazer, e pouco adianta-se na posição em que a colocaram. Não deve, porém, isto, desanimá-la, antes pelo contrário, sirva-lhe de estímulo para alcançar lugar mais vantajoso por meio de perseverantes estudos. Chegar aos primeiros postos por causas acidentais e proteções não admira, mas conquistá-los pelo mérito pessoal é que nos deve encher de louvável orgulho.

A Barbieri não canta, enfeita-se e atavia-se para entusiasmar a rapaziada. Isto é fácil de compreender: quem brilha por uma qualidade qualquer trata de aperfeiçoá-la se mais deseja merecer. A Barbieri muito bem conhece que o seu principal merecimento está menos na melodia e perfeição de sua voz do que nos meneio s e requebrados do andar. As mulheres têm uma penetração particular para conhecerem dos dons que possuem, os que mais impressão nos causam; e tão avisadas são por natureza que para logo tratam de lhes dar incremento, a fim de melhor nos seduzirem. Assim explicam-se os requebros e garbos cênicos desta cantora, e seus olhares cintilantes; mas tudo isto não é cantar.

A Canonero... nem merece a pena de uma análise.

Dos cantores, direi que o Mugnay é um tenor desastrado, longo e obtuso; o Tati, cantor de muito merecimento, porém um pouco alquebrado; o Massiani, um barítono careteiro; o Franchi, um bufo palhaço, e... ora basta. Com semelhante gente não pode o teatro progredir; muito já tem durado, e por moribundo o dou.

Com esta sentença do maestro cerrou-se-me o coração , e a custo perguntei:

– E que me dirás, meu caro maestro, da companhia francesa?

Com esta interpelação Bellini franziu os sobrolhos e respondeu-me:

– Estes cantores-galos, têm-se tornado ultimamente muito susceptíveis, e temo dar a minha opinião a seu respeito para não carregar a to do tempo com a culpa de haver dispersado a companhia com as minhas observações. Mas no entanto não posso deixar de dizer algumas palavras. A primeira cantora, Mlle. Duval, tem tanta agilidade na voz quanta ingratidão no coração; por uma leve censura que se lhe fez, esqueceu-se de milhares de elogios que se lhe teceram. Isto prova ou muito orgulho e vaidade, ou pouco caso pelo público e pela imprensa que sempre a sustentaram e elevaram mais alto do que talvez merecia. É boa cantora, tem agradável semblante, conhece a cena, com inteligência desempenha os seus papéis, possui todas as qualidades de uma boa atriz; mas... É de lastimar que não possam vir as atrizes e cantoras ao mundo sem mal. Nada mais direi para que a respeitável mãe de Mlle. Duval não caia em síncope e não a obrigue a tomar de uma vez, e deveras, a inabalável resolução de deixar a tapera de Santa Cruz, para levar os seus gorjeios por aí algures.

O Mullot, ou Arganaz como agora lhe chamam, é um pobre moço que tem tanta presunção quanta falta de voz; bem vejo que não há compensação; mas a culpa não é dele nem tão pouco minha. Requiescat in pace.

O Gillemet é bom ator, pisa bem em cena e desempenha com arte todos os papéis de que se encarrega; a voz não lhe ajuda muito, mas não se torna desagradável.

O Pousseur e sua metade são bons atores de vaudeville, e nada mais.

O Georges tem excelente voz; mas não estuda.

A Levasseur é uma travessa, e os demais companheiros podem entoar o Deo gratias.

Assim se expressou o maestro, e eu ouvindo-o disse suspirando:

– Más novas temos de levar a São Pedro e São Francisco! Ai de mim!

– Más novas, é verdade, retorquiu o maestro. O Anjo da Harmonia tinha razão em fugir para o céu; e juro-te, Manuel Luís, que também eu tão cedo de lá não descerei para assistir às representações dos dois mencionados teatros.

– Nem eu tampouco! exclamei arrebatado.

E levantando voo, seguido do maestro, tomei pela Via-Láctea, e, em breves segundos, achamo-nos à porta do céu. São Pedro e São Francisco, assim que nos avistaram, bradaram uníssonos:

– Manuel Luís, que novas me trazes do meu teatro?

Olhei para os dois santos, e como quisesse falar, os soluços embargaram-me a voz e apenas soltei um estirado suspiro. Bellini quis vir em meu socorro, respondendo por mim; porém a comoção que dele se apoderou, por tão más novas que ia dar, estrangulou-lhe a voz. São Pedro e São Francisco compreenderam perfeitamente esta muda linguagem, e conhecendo que seus teatros estavam perdidos, lançaram-se nos braços um do outro e desataram a chorar como duas crianças.

Ai! Meu caro folhetinista, até os santos choraram no céu, pelo deplorável estado a que chegaram os teatros dessa cidade! Adeus, nem mais ânimo tenho para continuar, e creio mesmo que tão cedo não o importunarei mais com letras minhas. Mande-me dizer, por último favor, que ideia faz de todas estas coisas, e qual é, a seu ver, o futuro de nossos teatros.

Sua afeiçoada

A ALMA DE MANUEL LUÍS.


***

Meu caro Manuel Luís,

Recebi a vossa carta, e tantas verdades nela se contém e tão de acordo vão com o meu pensar, que a tenho como escrita por mim. O teatro italiano está nos seus paroxismos; morrerá e muito breve. Dizem que o seu presidente vai convocar uma junta, para que o doente não lhe morra nas mãos; Deus os inspire nessa consulta; mui to temo, porém, que nada façam. Os membros daquele corpo estão gangrenados e deteriora dos, e só pela amputação se poderá salvar o doente. Quererão eles lançar mão deste violento remédio? Não sei.

O teatro francês não está em circunstâncias menos críticas. A prima-donna enfadou-se, e pede mais dinheiro para nos dar um ar de sua graça; e os seus companheiros veem-se sacrificados com esta resolução, por isso que por si sós nada podem. É incrível que a cantora que mais favores e obséquios deve ao público, seja a causa principal da dissolução da companhia francesa! Bem se diz que de ingratos está a terra cheia; mas coitada! a culpa não é dela.

Disseste-me que tão cedo não me escreveríeis acerca de teatro, e eu, pensando bem as circunstâncias, outro tanto vou fazer. Declamar sob re ruínas é da competência dos filósofos e poetas; estes que lamentem e cantem as passadas glórias dos nossos teatros. Por mim, suspendo por ora as minhas revistas. Se algum dia se erguerem eles do abatimento em que jazem, e ninguém o deseja mais do que eu, continuarei a sua crônica com a costumada imparcialidade.

O vosso servo obrigadíssimo

---
Luís Carlos Martins Pena (1815-1848)
Pesquisa: Iba Mendes (2019)

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