7/01/2019

Fumo (Conto), de Henrique de Vasconcelos



(A Luiz O'Neil)

Para fugir da exótica humanidade que enchia as salas do Kursaal de Genebra, saímos, apesar da noite fria, para o amplo terraço sobre o Léman tranquilo.
Eu levara Roberto ali para mostrar-lhe Chiara, a dançarina italiana, que nas suas danças bizantinas me surpreendera e comovera no Alhambra de Londres.
Era a Volúpia feita luz e feita dança. Num maillot de seda, parecia nua. Uma cintura de ouro, marchetada de largas pedras brilhantes segurava-lhe os seios firmes. Grossas manilhas mordiam os braços finos e os tornozelos. Um diadema apertava a massa luminosa dos seus cabelos louros. E, na face branca, eram de um brilho de gema os olhos azuis, quase violeta-de-Parma. A música que a acompanhava tinha um envenenado langor. Chiara deslizava, mal pousando os pés nus sobre o tapete de Esmirna. E do brilho das joias, como da florescência musical dos gestos, brotavam lascívias, ardiam desejos, que faziam correr frêmitos por toda a sala incendiada por lâmpadas poderosas.
Aquela dança sábia, apenas ritmada pelas vozes das flautas e das liras que tocadoras de flauta e tocadoras de lira, vestidas à grega, no palco tocavam! Uma ou outra vez um pé nu fazia vibrar o bronze dos crótalos. Era como um grito de vitória, um beijo mordido numa boca sedenta. Chiara tomava então uma atitude de entrega, todo o seu corpo flexível e delgado parecia tombar, como uma haste frágil que cede ao esplendor de uma enorme rosa vermelha, e verga e sucumbe.
A grande flor de ouro e luz, em que as abelhas das joias picavam e pareciam morder, fixas nas lhamas dos engastes! Como a vejo ainda nitidamente, ramo de ouro e de rosas, fazendo nascer desejos cintilantes, chuveiros deles, rápidos, fulgentes, descendo como estrelas de ouro, como os bocados de astros que voam no ar escuro, nas noites quietas de agosto!
E preso à tentação de ver a dançarina, deixei Aix e as duchas, Villa des Fleurs e o seu rebanho de cocottes e, com Roberto, à pressa envergados os smokings, fomos para o Kursaal. Mas no salão, um aviso e um certificado médico diziam a doença de Chiara. Um grande desanimo abateu-me as espáduas. Como passar uma noite na cidade alinhada e mecânica como um relógio? Em todo o Kursaal, nem um rosto interessante. Ranchos do Cook, das segundas classes, lionesas rotundas e vermelhas, suíças frescas, que parecem esculpidas em manteiga e em cujas faces contentes os olhos são parados e azuis... Caixeiros de Lion, aproveitando comboios a preços reduzidos, apertavam-se em volta das compridas mesas dos petits chevaux. Dois americanos silenciosos chupavam por palhinhas os violentos cocktails.
Fugimos.
Na noite escura, o lago era azul escuro. Os focos elétricos dos cais punham na água fitas brancas, que dançavam e se quebravam contra as ondas. Pareciam pestanejar as pequenas lanternas vermelhas dos bateaux-mouches. Tudo parecia dormir. Uma brisa ligeira trazia até junto de nós o silêncio da cidade. Apenas do Kursaal as luzes coavam-se pelas ramadas e, amortecidas, as valsas que acompanhavam mimambos e acrobatas.
Um de nós disse:
— Talvez fosse melhor não ter visto Chiara. Um com a recordação, de que viu, outro com a imaginação, têm uma imagem mais bela, por incompleta, e em parte mentirosa, da dançarina e do seu bailado. A melhor maneira de gozar é criar imagens, viver dentro de nós, alheio ao mundo. Recordando, vive-se na imprecisão,  sem as arestas. Tudo mergulha num nevoeiro, que, deformando a real aparência, nimba de mistério; desejando, ilumina-se mais. Viver deve ser recordar e desejar.
— Pode-se viver recordando e desejando apenas, no momento presente; mas para recordar é necessário ter vivido, para desejar é preciso conhecer. O desejo ilimitado põe a angústia na alma. É mister alguma coisa de definido a desejar.
— Quando chegamos à nossa idade, já vivemos tudo. Conhecemos o efêmero feminino. Andamos com o coração por todos os amores, por todas as angústias. Provamos todos os crus, atravessamos mares, dormimos sob todos os céus. Podemos recordar. E, como conhecemos tudo, podemos escolher e desejar.
— A vida do homem é, como a de toda a natureza, um continuo movimento, fluxo e refluxo permanentes.
— Então é preciso agir?
— É fatal.
— São Simeão Stilita gastou anos sobre uma coluna, a orar. Vinham de desencontradas partes os crentes à espera de milagres. Esposas estéreis tocavam no plinto, certas de que tempo depois amamentariam o filho desejado; os leprosos, os cegos, os atacados do "mal divino", arrastavam-se pelos desertos queimados, até à coluna onde o santo rezava... E ele, indiferente,  como indiferente era aos soes ásperos, às ventanias e às chuvas, continuava a orar. Viveu dentro de si. A vida deve ser toda interior.
— A vida do espírito é toda interior, como a vida digestiva. Precisamos do mundo exterior para dele apreendermos as imagens e os alimentos.
Ter comido, é melhor que comerTer gozado é melhor que gozar. O momento da posse é doloroso e vão. É melhor recordar.
— Recordar implica esquecer. E quando das imagens não ficar senão uma mancha, como preencher a vida?
— Desejando.
— Mas a faculdade de desejar desaparece com os anos. O velho dos Goncourt, quando no restaurante lhe perguntam: — O que deseja? responde: — Desejava ter um desejo. Viver é agir. Colher todas flores e todos os espinhos, violar todos os cimos, mergulhar em todos os lodos, sentir intensamente, pensar todas as doutrinas, apreender do Universo tudo o que for possível, ver tudo, ouvir tudo! Viver é entrar na harmonia do Mundo! É ser como o eucalipto, subir para o sol, triunfalmente, lançar ramadas por todos os lados, espalhar ávidas raízes egoístas e cruéis!
— Viver é recordar e desejar. A vida deve ser feita por nós, como a composição de um quadro é arranjada por um pintor. Não devemos ser o espelho de mostrador que reflete toda a rua, mas a psiquê do boudoir de uma mulher elegante que só reflete atitudes graciosas, sedas, rendas, brilhos de pedrarias...
— Viver...
Despejava-se o Kursaal. Apagaram-se as lâmpadas. Fomos para a estação esperar o expresso de Paris.

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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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