7/01/2019

Na goela do leão (Conto), de Conde de Sabugosa


Na goela do leão 

CAPÍTULO 1
Quando o leão de púrpura dos Silvas perder a sua língua negra acabará a família a que vais pertencer, profetizara o Roque a uma das suas netas, na véspera do casamento, uma noite de luar coado a custo pelas abobadas do espesso arvoredo numa das avenidas da quinta de Belas. O Roque nunca mentira. Nas suas aparições pelo parque ensinava o paradeiro de tesouros escondidos, anunciava o advento de desejados herdeiros, denunciava os culpados que comprometiam com roubos os criados fiéis, e diz-se até que consolara alguns corações com indiscretas confidências. Se era alma penada (e era decerto, pois assim o afirmam autoridades de que não é licito duvidar)a ninguém metia medo. Sobrinhas e netas chamavam por ele, sem o menor arrepio de terror, quando ouviam a sua voz autorizada, sem estremecerem quando avistavam a barba branca e comprida do velho ministro do Sr. D. Pedro II.
Aquela profecia fora para a família dos Silvas, na qual a neta de Roque Monteiro casara, como um treno bíblico credor de toda a fé. E perpetuara-se na tradição.
Ora naquela manhã o leão rompente em campo de prata do escudo esquartelado, fecho do arco em madeira entalhada da capela-mor de um antigo palácio do bairro de São Vicente, perdera a língua negra que o irreverente caruncho amputara. Foi a velha Brígida quem tal descobriu.
Quando fazia as suas orações, depois de ter baixado sobre o lajedo os olhos humilhados perante a divindade, ia levantá-los ao céu na invocação da Ave Maria; a sua vista porém parou aterrada na contemplação do escudo truncado, e a Ave Maria gelou-se-lhe nos lábios. Realizara-se a profecia do Roque. Ou o Sr. D. Carlos o único representante daquela casa ia morrer, ou se preparava a última derrocada tão anunciada pelas sucessivas catástrofes dos últimos anos.
Levantou-se inquieta e assustada e tão preocupada ia que, ao passar pela grande casa de espera de ladrilho esburacado, azulejada até à altura de um homem, e de cujo teto, escurecido pelo tempo, pendia um merencório lampião, pegou inconscientemente num maço de cartas do correio que se achava sobre um dos bancos, única mobília do vasto casarão, e com um andar apressado, quanto lho permitiam os anos e o reumatismo, dirigiu-se ao quarto de Carlos.
Este passeava fumando um charuto, de paletó abotoado, e ainda com a gravata branca que atara na véspera. Quando a velha aia que o criara abriu a porta, voltou a cabeça interrogativamente, quebrando o fio da ideia que o preocupava.
— Quer alguma coisa, Brígida!
Esperando vê-lo na cama, morto talvez, em cumprimento da profecia, estacou indecisa entre a satisfação de encontrar vivo, e a curiosidade do motivo que àquela hora, 10 da manhã, o tinha ainda levantado. Carlos repetiu a pergunta, e quando ela lhe explicou a causa da sua aflição, interrompeu-a com um sorriso afetuoso.
— Não se enganou talvez a profecia, tia Brígida. Não morro eu, mas vende-se esta casa, hoje, em praça. O Roque teve razão mais uma vez.
— Então sempre é certo! Olhe, menino, ou eu me engano muito, ou aqui anda mais alguma pouca vergonha do tal senhor que o ano passado comprou as Torreiras, e que, quando aqui veio entrou na capela de chapéu na cabeça. Enfim já nada estranho. Desde que, puseram os frades fora dos seus conventos não admira que ponham os fidalgos fora das suas casas. E o menino que tenciona fazer?
— Ninguém me põe fora, Brígida. A casa é vendida como foram vendidas as Torreiras e o resto, para pagar as minhas dividas, e as deixadas por... Você sabe muito bem que quando meu pai morreu...
— Sei muito bem, sei. Seu pai acreditou que se podia fazer de um marquês um negociante como se faz agora de um negociante um marquês. Deus lhe perdoe que as suas intenções eram boas, assim fossem os que o rodeavam. Mas o que passou está passado. E o menino que tenciona fazer? — interrogou de novo dissimulando a custo a grande parte que o seu coração tomava na resolução de Carlos. O beiço tapetado de abundante buço tremia ligeiramente, o mirrado peito atravessado por um lenço branco arfava ofegante, e atrás dos vidros dos óculos fixos os olhos traduziam interrogações ansiosas. Carlos demorava a resposta com receio de desgostar a pobre velha a quem queria sinceramente.
— O que conto fazer? Com o que me resta, que não é muito, dificilmente vivo em Lisboa, onde além disso a família que tenho, julga poder arrumar-se, como dantes, ao morgado. Vou lá para fora consigo, se me quiser acompanhar.
— Peça-me tudo o que quiser Sr. D. Carlos, exclamou ela visivelmente aterrada com a ideia. Exija-me a vida que de boa vontade lha dou para não ver vender esta casa. Mas ir lá para fora na minha idade, é atirar comigo à cova. E depois nunca me há de esquecer a desfaçatez com que aqueles malditos dos franceses, quando estive em Paris com a Sra. marquesa me chamavam estrangeira..., a mim uma legítima portuguesa.
— Então mais tarde falaremos, atalhou Carlos. Se não me engano tem aí o correio, e esquecia-se de mo entregar.
A velha Brígida entregou-lhe as cartas, jornais e revistas. E arrastando-se pesarosa, saiu resmungando: Deixar esta casa nunca! nem à força!
Carlos passou pela vista as cartas. Entre elas, uma que suspeitou ser de mulher, despertou-lhe a curiosidade. Numa letra inglesa corrida, como a de todas as senhoras educadas nas Salesias, o bilhete dizia apenas: "Alguém que se interessa por si, pede-lhe que suspenda a venda de sua casa durante seis meses."
Tolice! pensou Carlos. Se não a suspenderia se pudesse! Se o credito de Silva Matos não excedesse já o valor pelo qual o antigo palácio lhe fora hipotecado, consentiria que alguém fosse dormir no quarto em que seu pai morrera, profanar a capela em que sua mãe rezara, transformar, Deus sabe em quê, as salas onde havia ainda um ar de grandeza, apesar da avessa fortuna dos últimos cinquenta anos? Pressentia a má sorte daquela casa, para si tão querida, construída como era, com frequentes degraus pelos corredores escuros, exiguidade dos quartos subordinada à magnificência da bem lançada escadaria, vastidão dos salões. Pela falta de nexo nos diversos corpos do palácio cujo primitivo plano se adivinhava na disposição do portão nobre comunicando com um pátio, centro de duas grandiosas asas dos quais apenas existia a da esquerda, sentia que o futuro possuidor trataria sem dó a característica incongruência do vetusto edifício.
A ousadia do primitivo projeto incompleto na execução, as modificações que as sucessivas gerações foram introduzindo segundo as suas necessidades, caprichos, alternativas de fortuna, e gosto das épocas, o seu aspecto digno na velhice, triste no quase abandono, o destino que o esperava, tornavam de fato essa casa a imagem da raça a que tinham pertencido seus donos; e a sua história acompanhava nas vicissitudes daquela família, os esplendores e decadência de uma classe ora forte e poderosa, ora abatida e arruinada.
Carlos não era como seu avô um intransigente, nem como seu pai, um crente na transformação da força da classe a que pertencia pelos modernos processos da indústria e da finança. Via claramente a onda do individualismo que subia submergindo todos os que pela revelação de um caráter, pela manifestação do talento, ou pelo gênio da intriga não conseguiam romper. Herdara com o sangue o espírito de raça, e o orgulho que só pode dar o dever de conservar limpo um nome antigo. Na educação bebera todo o sentimentalismo pelas ruínas da antiga grandeza, toda a poesia da tradição. Esse sentimento contudo não fizera dele um misantropo, nem lhe tirara a flexibilidade do espírito, porque condensara todo o orgulho nalguns princípios com os quais não transigia, porque materializara toda a vaga saudade do passado na posse daquela casa que para ele significava o cofre onde guardamos tudo que nos resta de uma felicidade que já acabou. Por isso perdê-la era-lhe tão penoso, como se perdesse de uma vez a sua família, e o seu nome.
E havia uma mulher tão ingênua que lhe pedia que impedisse a sua venda! Quem se interessaria?...
Duas pancadas na porta do quarto vieram quebrar-lhe o fio das interrogações.
Abrindo, estacou admirado ao ver a figura elegante de uma senhora, como uma resposta viva dada ao problema que o intrigava.
— Nesta casa Matilde? No meu quarto? exclamou Carlos entre contrariado e confuso com a inesperada visita.
— Parece-me que a nossa intimidade me dá direito a procurá-lo sem mais avisos, respondeu. Há três dias que o não vejo. Julguei-o doente, e vim. Incomodo-o?
Foi isto dito com um sorriso tão cheio de provocações, envolviam-no em tanta ternura os olhos azuis que se abrigavam sob as sobrancelhas desenhadas em negro, como uma asa de andorinha, a cabeça enquadrada no veludo cor de chumbo do chapéu inclinava-se tão graciosamente sobre o ombro direito num gesto de ave que escuta, no simples justilho do mesmo veludo as linhas curvas do seu busto ondulavam com tanta comoção, que não havia preocupação que desculpasse em Carlos um movimento de impaciência ou contrariedade.
A viveza do olhar de Matilde tão discutido nas salas, tão aclamado pelos homens a quem o contraste com o encrespado cabelo negro seduzia, nunca o fascinara nem lhe penetrara no coração. Mas a feminilidade que envolvia aquele corpo soberbamente modelado numa atmosfera em que ninguém respirava impunemente, invadira-lhe as veias como um filtro agitador de todo o seu sangue. E a incondicionalidade com que se lhe entregara a encantadora viuvinha, sem exigir dele um juramento, sem quase reclamar direitos como quem concede uma volta de valsa, a alegria com que o seu riso leve e o seu espírito levíssimo tinha o segredo de perfumar os capítulos ligeiros daquele romance nunca interrompido por uma lágrima de despeito, ou escurecido por uma cena de ciúme, enchera-o de reconhecimento e dera-lhe do amor, a ele que nunca o conhecera, a ideia com que o definiu Chamfort— L'echange de deux fantaisies, le contact de deux epidermes.
— Mas que imprudência! continuou ele pegando-lhe na mão, já despida da luva, e em que brilhava uma chuva de diamantes e safiras encastoando os torneados dedos. Vir aqui a esta hora! Que assunto para as línguas do mundo!
— E com a minha carruagem à porta — acentuou ela. Preocupa-me tão pouco a opinião da sociedade a meu respeito que não lhe sacrifico um único capricho. Alem de que, o mundo não é má pessoa; ralha muito na ausência mas na presença sorri com tão bom modo, que se lhe perdoa a intriga a que é forçado por falta de assunto.
E com a vista curiosa corria todo o quarto, interessando-se pelas panóplias que enfeitavam as paredes, perguntando os nomes dos autores das espingardas de caça que se enfeixavam nos cabides e das quais ensaiava a pontaria sem embaraço, desprendendo as facas de mato para lhes examinar os lavores. Fumava nos cachimbos turcos, segurando com as mãos ambas os compridos tubos, envolvia-se na pesada manta alentejana companheira das caçadas, traçando-a sobre o ombro com um gesto aciganado, tirava o seu chapéu para, diante do espelho, ajeitar com um sorriso gaiato um chapéu de feltro enfeitado com uma pena de perdiz, contente por se saturar da vida de Carlos, por surpreender a sua intimidade.
Sobre o largo bufete servindo de secretaria, inclinou-se com curiosidade, deixando ver com o dobrar gracioso do corpo, os dois pés e o prolongar das botas acima do calcanhar. As duas linhas do busto descaíam tão suavemente pelos ombros, e formavam desde os braços à cintura um tão obtuso V, de cuja vértice saíam as curvas das ancas triunfantes, que pé ante pé Carlos aproximara-se, e fazendo das duas mãos um cintilho, dispunha-se a embrenhar o seu bigode no emaranhado frouxel da apetitosa nuca, quando a vista incidiu no olhar severo do retrato de sua mãe, que na parede fronteira parecia franzir um doloroso sorriso cheio de censuras. Enquanto as mãos paralisadas desprendiam a cinta, que apertavam, outra boca se voltava como um imã vermelho em busca do beijo perdido. Diante porém da expressão do olhar de Carlos, Matilde corou levemente e perguntou irrefletida:
— É sua mãe!
— É— respondeu secamente.
Ela então com a vaga intuição do que se passara no espírito de Carlos, referiu-lhe que duas vezes naquela manhã aparecera já um ponto negro no céu, até aí tão limpo da sua felicidade. Quando entrara uma velha, a quem pediu que lhe indicasse o quarto dele, olhara-a com mal dissimulado desprezo. Pensara então que se o seu coração não tivesse voado tão levianamente à teia dourada em que se embaraçou, talvez hoje pudesse entrar naquela casa pela braço dele com o seu nome. Sentia agora bem que nem um dos beijos que dele recebia podia ser trocado diante daquele retrato. Muito embora! Nunca se arrependeria porque lhes devia as horas mais completas da sua vida... Aquela casa porém dava-lhe infelicidade.
— Será enguiço, superstição, pressentimento. Será! E acrescentou: Diga-me. Quer muito a este velho casarão?
— Não sabe como lhe quero? Com que intenção veio então hoje aqui? Com que fim me escreveu esta carta?
E apresentou-lhe o bilhete que recebera.
Pelo espanto da encantadora viúva, pelo véu de tristeza que lhe passou na cara, desfazendo as covas que o hábito do riso lhe cavara nas faces, pelo morder dos beiços mais de molde para carícias de amor do que para ímpetos de despeito, Carlos compreendeu a imprudência que cometera mostrando aquela carta.
— Nem a letra me conhece já! disse Matilde com tristeza. E com a emoção de uma ideia súbita: — Pois bem, imagine que fui eu que lhe escrevi essa carta e conceda-me o enorme prazer de lhe evitar um desgosto. A minha fortuna...
— Por Deus não continue, interrompeu Carlos tornando-se pálido. Avalio a generosidade do seu oferecimento imprudente, mas peço-lhe que me evite o dissabor de recusar uma esmola. Escrito por mão anônima esse bilhete vai esquecido para o cesto dos papeis velhos. Mas se eu a escutasse, a si, Matilde, sem um protesto, desceria no seu conceito, desceria no meu, dava direito à sociedade a que trocasse o nome que tenho por outro, que a literatura francesa consagrou para resumir todo o desprezo por uma classe. Estimaria que amanhã alguém apontando-me com o dedo me chamasse: Monsieur Alphonse?
Enquanto Carlos passeava de um extremo ao outro do quarto, Matilde deixou-se cair numa cadeira, e com a cabeça encostada à mão esquerda, e os dedos internados no cabelo negro por entre o qual os anéis coruscavam brilhantes, disse vagarosamente, separando as palavras, como se falasse a si mesma:
— Um dia toma-se de assalto o coração de uma mulher que o não defende... e o orgulho lisonjeia-se. Aceita-se dessa mulher... o que para ela é ainda mais valioso que o próprio coração... e o amor próprio não se revolta. Com o pretexto de que essa mulher tem umas mãos de princesa cobrem-se-lhe os dedos de joias.. e a isso não se chama uma esmola. Mas se ela, consultando só o próprio sentimento, mostra desejo de com a sua fortuna, aquilo que menos preza no mundo, evitar um desgosto a quem mais sinceramente estremece, então o orgulho convencional revolta-se por tão grande atrevimento, e não se hesita num feroz movimento de egoísmo em atirar a essa mulher com o epíteto pouco decoroso de...
Carlos tentou acalmá-la. A própria agitação, porém, causada pela excitação da noite passada em claro, pela preocupação que o absorvia, pela dificuldade de moderar aquela fantasia feminina, onde um primeiro grão de areia começava talvez a formar a montanha do ciúme, dava as suas palavras na intenção conciliadoras o tom decidido de recusas terminantes.
— É ponto decidido, concluiu ele. Antes porém de terminarmos de vez a conversa sobre este assunto deixe-me contar-lhe uma história. Conhece talvez a ameaça profética de um de meus avós acerca do fim de minha família.
A um sinal afirmativo continuou:
— Quando eu era pequeno um santo capelão obrigava-me a ler o velho testamento. Há naquele livro, o livro dos Juízes, e apontava para um grosso in-fólio apertado entre outros na estante de carvalho, um herói em cuja vida, como na minha, aparecem um leão e uma mulher. Um dia que Sansão seguia o seu caminho, matou o leão feroz que ameaçava devorá-lo. Poucos dias mais tarde da goela escancarada desse animal extraía um doce favo de mel. No banquete de suas núpcias apresentou o seguinte enigma aos moços filisteus que o rodeavam: "Da ferocidade tirei o alimento, da fortaleza a doçura. Dou 30 túnicas a quem isto decifrar." Ao sétimo dia as lágrimas de sua mulher tinham-lhe arrancado o segredo. Ele então cheio do espírito do Senhor caiu sobre Ascalão e matou trinta homens, cujas túnicas foram entregues aos filisteus.
Mais tarde adormecendo no regaço de Dalila achou-se ao acordar tonsurado, fraco, desprezível, caído nas mãos dos seus inimigos. Eterna lição para aqueles que se deixam embalar e adormecer ao som enervante da voz de uma mulher ainda a mais sinceramente dedicada! Não trouxe esta história para lhe fazer a afronta de a comparar à lendária sereia do forte e ingênuo nazareno. Mas aproximando os dois casos prefiro tirar da goela do leão rompente a força para vencer, do que entregar-me ao riso dos filisteus de Gaza acorrentado pelas mãos de uma mulher adoráveis e adoradas, e em vez de traiçoeiras como as da pérfida do vale de Sorec, generosas e boas como as suas. E segurando-lhe ambas deu-lhe um prolongado beijo na testa pensativa, e nos olhos onde as lágrimas começavam a tremer.
Sem querer, inconscientemente comovia-o o sentimento que encontrara onde até então apenas supunha capacidade para o prazer.
Matilde retirou as mãos, desviou a cabeça, e com um sorriso triste:
— Também conheço a história de Sansão. E que diferença! Sempre que a lia, nada me impressionava tanto como a grandeza do amor daquele homem. Achava-o tão nobre adormecendo nos joelhos de Dalila cuja traição conhecia, indiferente à miséria que o esperava, e adorando-a apesar de tudo!... que me pareciam bem pequenos os que calculam até que ponto as leis sociais lhe permitem que chegue o coração. Adeus! Oxalá que a mão que escreveu esta carta (e atirou com o papel amarrotado sobre a mesa) não lhe esmague mais do que a minha o seu orgulho. E saiu apressada, sem esperar que Carlos a acompanhasse.
Ouviu-se o bater das ferraduras dos cavalos sobre a calçada do pátio, e o rodar da carruagem afastando-se pela estreita rua das Escolas Gerais.
Minutos depois, das janelas do seu quarto voltado para ao ocidente, Carlos viu passar lá embaixo, junto ao edifício monótono e triste do Terreiro do Trigo, a vitória puxada a trote largo. Pelos passeios os que voltavam a cabeça para ver aquela mulher formosa, passar, como levada num triunfo de riqueza e de bom gosto, não suspeitavam o doloroso confrangimento do seu coração, a tempestade do seu pequenino e amoroso cérebro.

CAPÍTULO 2
No jantar que nesse dia deram os condes de Ponte Nova, Carlos ficou colocado entre uma senhora velha, parenta próxima de um ministro, e a filha única do banqueiro Silva Matos, que pela sua beleza, e principalmente pela importância do dote provável, era chamada a sorte grande, quando passava pelo Chiado ao lado de sua mãe num landeau, aberto como uma melancia madura.
Por indicação da dona da casa, sublinhada por um sorriso intencional, dera-lhe o braço para a conduzir. Na sua frente, entre duas largas corbelhas de prata lavrada, de onde emergiam montanhas enormes de flores silvestres, avistava o perfil risonho de Matilde conversando com um francês que não conhecia, e que estava achando profundamente antipático, e quase insolente na intimidade que afetava no dialogo.
Tratou de indagar da sua vizinha da esquerda quem ele seria.
— Provavelmente um estrangeiro, respondeu a velha.
A inteligência e perspicácia que a resposta revelava inclinou-o para a direita, dirigindo a mesma pergunta.
— É um engenheiro francês, sócio de meu pai na empresa de um cabo transatlântico, explicou-lhe a filha do banqueiro, corando desde a orla do decote à raiz dos cabelos de um louro cendrado.
Carlos reparou então na extraordinária correção daquela beleza que lembrava vagamente os retratos das patrícias venezianas, na frescura da sua pele, na suavidade do olhar escuro e aveludado, na expressão serena e meiga tão em harmonia com a voz de contralto, funda, arrastada, caridosa... Involuntariamente, com um pensamento malicioso, comparou a distinção daquela rapariga com a fisionomia vulgar do banqueiro, gordo e de testa pequena, beiço superior rapado, maçãs de rosto proeminentes, com uns pequenos olhos vivos onde aparecia um lampejo de penetração, aguçada pela faina constante do manejo de capitais. Procurou depois com a vista, em procura de uma afinidade, a mãe, doce criatura insignificante, silenciosa e passiva, cujo pequeno dote nas mãos habilidosas do marido tinha sido a primeira semente da grande fortuna. E voltando de novo a olhar a sua vizinha, tão superiormente bela, com o seu ar original de altivez rendida, pensou:
— E é capaz de ser inteligente.
De fato na conversa era atraente, interessante, sem pretensões nem laivos de erudição de convento dos Oiseaux, onde lhe contou que estivera dois anos, depois de sair das Salesias, e onde, sem o conhecer, falava muito a seu respeito com uma prima dele que ali estava a educar.
A atitude do francês cortou a conversa, despertando de novo a atenção de Carlos. Matilde pegara distraidamente num dos ramos de violetas, que, por sobre a fina toalha adamascada em extenso cordão, circundavam as trabalhadas serpentinas, os cristais reluzentes, as acasteladas pirâmides de frutas temporãs, o perrexil e conservas em custosos covilhetes da Índia, e o soberbo centro, uma ninfa surgindo vencedora das ondas, e sustentando com um braço sobre a cabeça uma larga salva de cristal da Boêmia.
Enquanto a apetitosa viúva aninhava as violetas entre o seio, e as rendas negras do vestido, o francês curvava-se, abaixando a voz num quase segredo equivocamente madrigalesco, que pareceu a Carlos tê-la contrariado. Conteve a custo uma frase que castigasse o atrevimento. Lembrou-se porém que nenhum direito podia ter sobre os atos de Matilde, e entre os dedos nervosos sentiu-se estalar a casca de uma noz.
Entretanto a conversa generalizava-se, incidindo sobre a febre que se apoderara da Europa pelas coisas da África. O engenheiro, que percorrera uma grande parte da costa ocidental, falava com entusiasmo na perspectiva brilhante das empresas europeias, exploradoras das riquezas escondidas no misterioso continente.
— Ali está, disse uma senhora referindo-se a Carlos, quem não se deslumbra com a vida das roças, com a poesia das mucamas, nem com as cortes requintadas dos régulos e dos sovas.
— Peço perdão, minha senhora, atalhou ele, para mim a África é hoje o único sport tentador de um europeu. As caçadas, as corridas, as próprias touradas perderam todo o seu encanto. A civilização aperfeiçoou tanto as espingardas de precisão que não há meio de errar um inocente faisão, um inofensivo veado, nem se afronta o menor perigo em atacar um javali; apurou de tal modo as raças corredoras que dentro em pouco todos os cavalos correrão igual número de metros em igual número de segundos; e finalmente estragou de todo as touradas desde que minusculizou o M dos Marialvas adjetivando a palavra e reduzindo-a a sinônimo de faia. A Índia transformada pelos ingleses em mágica do Alhambra, e banalizada pelos romances de Mery não encerra o mais pequenino mistério, nem, como no tempo Del-Rei D. Manuel e de nossos avós, nos pode enriquecer com a pimenta, o cravo, a canela, o açafrão e o almíscar. A África, só a África nos resta. E logo que os paquetes da carreira tenham um cozinheiro suportável penso em fazer as malas, por na cabeça o capacete de feltro, e untar os fechos da minha carabina.
Maria a filha do banqueiro que o escutara atenta, perguntou-lhe com um leve tom de ironia:
— E leva consigo a velha Brígida?
— Como sabe, interrogou Carlos a meia voz, que entre as relíquias do passado, que me pertencem, existe essa preciosa criatura?
— Não lhe disse já que houve um tempo em que falei muito de si!
— De modo que, sem eu o saber, a minha humilde pessoa ocupava a imaginação das duas mais belas educandas de um convento de Paris?!
— Que em pouco mais tinham que pensar do que em Telêmaco e as suas aventuras, respondeu ela sorrindo, em quanto destacava uma a uma, com as mãos muito brancas, as películas de uma tangerina.
Mas a verdade é que o adorava, apesar daquela aparente tranquilidade, do seu ar de estatua insensível, da serenidade do seu porte de rainha coroada pela estriga loira de uma roca de fada, o seu negro olhar enigmático a que uma ligeira miopia dava o sabor irritante de um problema irresolvido começava a intrigar Carlos, quando acabado o jantar a conduzia pelo braço. Voltando da sala, onde a deixou, sentiu no ombro a pesada mão do banqueiro que lhe dizia:
— Interesso-me muito por vossa excelência.
Carlos surpreendido pelo prólogo ex-abrupto inclinou levemente a cabeça num gesto de fria polidez.
Silva Matos bebendo vagarosamente o café cominou: Já me interessava por seu pai a quem muitas vezes tive ocasião de o mostrar. Infelizmente porém ele não aproveitou as ocasiões nem os conselhos que lhe dei. Vossa excelência é um rapaz novo, tem diante de si um futuro brilhante, pode, querendo, tomar uma posição eminente e adquirir grandes cabedais, o que, acredite-me, é a mola mais poderosa para a vida na sociedade em que vivemos. Para isso porém é necessário não se deixar levar por falsos orgulhos, aceitar o mutuo auxilio, sem o qual nada se faz, admitir as concessões de favores, indispensáveis em todo o negócio. Isolado é quase impossível conseguir-se alguma coisa. Soube ontem por minha filha que vossa excelência tinha um grande desgosto em desfazer-se da sua casa. Resolvi desde logo impedir que na praça tivesse comprador, e com efeito não foi vendida, porque desejava falar consigo a tal respeito. Por que não me procurou? É verdade que eu tencionava adquiri-la para a habitar, mas tudo se poderia harmonizar, porque com palavras é que a gente se entende. No grande campo das transações a confiança pública e o favor dos governos representam um valioso capital. Ora vossa excelência tem direito a um lugar na câmara dos Pares, tem relações, pode ter influência, e a sua reputação de severidade dá-lhe a confiança dos que temem comprometer-se. Todos estes elementos são aproveitáveis, e podem concorrer para assegurar o êxito das mais arriscadas operações. O grande segredo na indústria e na finança que, havendo esperteza devem andar sempre nas mesmas mãos, é a união. Juntas — as nossas forças podem em pouco tempo acumular milhões e da associação podemos fazer uma família (e prolongou intencionalmente esta última frase); separados a — sua casa tem de voltar à praça brevemente, e eu não sei se encontrarei associado com quem tanto simpatize.
Carlos, que, durante o confuso arrazoado do banqueiro mordera o charuto visivelmente impaciente, e irritado com o sentido que adivinhava naquelas palavras, com os dedos nas cavas do colete, as pernas abertas em compasso, e os sobrolhos reunidos num vértice, perguntou-lhe num tom decidido:
— Acabou?
E a um gesto afirmativo acrescentou:
— O contrato que o Sr. Silva Matos acaba de propor-me, não tem no Código Civil o nome de associação com que erradamente o batizou, chama-se um contrato de compra e venda. Neste caso um outro código que segundo vejo desconhece, o que o torna irresponsável, ensina a repelir as propostas insolentes e atrevidas.
Tome no sentido em que quiser as minhas palavras, mas veja nelas a recusa terminante de me deixar despojar da dignidade, como infelizmente me vejo obrigado a abandonar tudo quanto me resta.
E voltando-lhe as costas entrou na sala enquanto o banqueiro pondo a xícara do café sobre o mármore de um tremó, encolhia os ombros num gesto de quem tira de si a responsabilidade de um suicídio e abanava a cabeça, com o beiço inferior estendido murmurando baixinho: É tolo.
Carlos pela força do hábito sentou-se numa cadeira junto de Matilde e só depois de aí estar, lembrando-se da cena de manhã, ia levantar-se pedindo-lhe perdão, quando ela adivinhando a intenção lhe disse:
— Fique, porque temos que falar. Contou-lhe então que saindo de casa dele resolvera, levada de um ímpeto de ciúme, descobrir quem escrevera aquela carta, que dera lugar a ouvir a condenação cruel de todo o seu passado amor. Falando, as suas palavras revelavam quanta paixão verdadeira se tinha escondido, e ainda agora existia sobre a frívola aparência de um capricho passageiro; quanto sofrera desde essa manhã.
Agora porém que o caso lhe fizera descobrir a mão que, inconscientemente quebrara o fio dourado da sua leviana existência, essa mesma mão lhe indicaria o caminho da única vingança possível, embora nesta empresa esmagasse de vez o coração. Neste momento, dizia ela, uns olhos negros que o envolvem numa atmosfera de adoração estão-me silenciosamente revelando as torturas porque nesta ocasião passam, e que eu próprio por meu mal conheço tão bem? A diferença é que eles podem olhar, para o futuro com o direito que lhes dá a inocência, e a legitimidade do seu sentimento, e os meus só podem ver no passado a condenação de todas as esperanças, e afastam-se com horror do isolamento futuro a que me condenei.
Um conselho de quem lhe quer muito... — continuou ela. Alguém, que não eu, pode talvez dar-lhe a felicidade completa, deixe que o braço que ainda há poucos minutos se encostava ao seu, nele se ampare para toda a sua vida. Ela é boa segundo todos dizem, bonita como ninguém, tem no espírito suficientes recursos para fazer esquecer os vícios de origem...
— Fala-me de Maria, a filha de Silva Matos e afirma-me que foi ela quem esta manhã me escreveu aquela absurda carta. Talvez! Obedeceu as ordens do pai que acaba de oferecer-me a filha, e algumas centenas de contos, em troca do meu voto na câmara dos pares, e de não sei que influencia, que imagina eu tenho. Não queira medir o coração dos outros pelo seu que é generoso e bom. Não utilize em favorecer as ambições de um argentário e os caprichos de uma pretensiosa, o sacrifício que faz, e que eu aceito, porque não posso com dignidade evitá-lo.
Daí a momentos saía, seguindo a pé pelas ruas tortuosas, estreitas e úmidas, abobadadas com roupa estendida, desde a véspera, em cordéis esticados nas pontas de pequenos paus, que se fincavam nos peitoris das janelas. A velha Alfama dormia tranquila e silenciosa como nas noites em que era acordada pelas danças, trebelhos e folgares do folião D. Pedro I, ou pelos rugidos e ameaças populares dos sequazes de Álvaro Pais contra a bela Leonor Teles.
Apenas de alguma janela mal fechada saíam as últimas notas do fado repenicadas na guitarra por fadista estremunhado, em quanto nos cafés, à espera da madrugada, vultos dormiam de bruços sobre o mármore das mesas.
E Carlos, com as mãos escondidas nas algibeiras do paletó, caminhava pensando na brutalidade da sorte que o perseguia. Com todas as qualidades que podem tornar um homem distinto, útil a si e aos outros, ele, ligado de pés e mãos, não podia dar um passo que não parecesse o de um humilde solicitador, não podia fazer um gesto que não se assemelhasse ao de estender a mão a uma esmola. E até se duas mulheres, belas, novas e ricas, tentavam arrancá-lo do caminho a que era impelido, achava-se na dura necessidade de as repelir quase brutalmente para não parecer que se alugava aos caprichos da amante, ou vendia o seu nome à filha do banqueiro. Era contudo bem a custo que desviava de si a generosa viúva tão deliciosamente apaixonada, e à qual ele sentia agora que o ligavam laços bem difíceis de desfazer, era com um ligeiro remorso que se recordava, de ter acusado, quase sem fundamento, de cumplicidade com seu Pai, Maria, a dona dos tristes olhos pretos. E para quê, todos os sacrifícios? Valeria a pena tanta isenção? Cedendo, teria a riqueza, o amor, a consideração pública, todos os caminhos abertos para a glória, para o prazer, para a vida brilhante; resistindo, esperava-o o obscuro e ignorado destino dos que têm que trabalhar para viver. E qual a compensação?
Parou um instante como a procurar a formula do sentimento que o agitava. Passados minutos, bateu com o pé no chão com um gesto enérgico, e terminando o monologo mental que trazia exclamou: A estima de mim mesmo, com todos os diabos! E continuou silencioso.
Quando chegou a casa, e abriu a janela para a varanda, vinha rompendo o dia. Aos seus pés, na frente, para a direita, e para a esquerda, caia em cascata até o rio pela encosta abaixo a casaria do velho bairro, alternando as largas manchas escuras dos telhados, com as brancuras do alvejar da cal. Ao longe, por detrás da linha tortuosa das montanhas da Outra Banda, o sol nascendo vinha tocar oblíquo na superfície das águas, que acordavam num arrepio, encrespadas pelo nordeste. O pontal de Cacilhas, como a quilha dum grande navio ali naufragado, rasgava a corrente suave da maré que baixava. As faluas, moscas negras pousadas no azul pardacento do rio dormiam ainda, indiferentes ao dia que subia, puxando, impelidas pela corrente, as cadeias que as seguravam.
Dir-se-ia que todas as embarcações ancoradas, esquadra fantástica iluminada pela luz dúbia da madrugada, eram impelidas pela força da água descendente para as bandas da barra, escondida à direita pelo perfil anguloso da montanha. E o espírito de Carlos acompanhava-as naquela derrota ideal.
O mesmo caminho tinham levado todos os seus avós! Por ali tinham seguido nas galés que iam à conquista do Algarb sarraceno; por aquela estrada à gloriosa tomada de Ceuta e de Tanger, e na esquadra que foi bloquear Sevilha, com o neto do genovês Pessagna. Por sobre aquelas águas tinham seguido nas naus que buscavam a esquiva Atlântida, e os encantados domínios do Prestes João. Lá de baixo, do Restelo, um dos seus partira nas naus que em busca da Índia dobraram o Cabo da Boa Esperança, outro na brilhante armada que ia atirar, levada na fantasia da sublime criança, a vida dos últimos portugueses da Renascença às adustas areias de Alcácer Quibir. As fustas, galeões, bastardas, caraças e caravelas que, ou limpando as costas de Portugal dos atrevidos mouros, ou indo conquistar Ormuz, Goa, Malaca, implantavam o domínio português no oriente, tinham levado alguns dos seus que ilustrando o nome de sua família o ligavam à história da humanidade. O destino já agora impelia-o também por aquela estrada úmida à misteriosa e indecisa empresa de salvar varonilmente o seu nome da voragem em que ameaçava submergir-se!

CAPÍTULO 3
O antigo palácio dos Silvas, fora transformado numa banal e cômoda habitação moderna.
Apenas lhe conservaram as linhas gerais do edifício, e o brasão da porta de entrada, por coincidir com um dos apelidos do novo proprietário o nome da família que o possuíra.
Durante meses, o martelo dos carpinteiros ecoou pelos corredores ainda há pouco silenciosos, e desabitados, a trolha dos pedreiros rebocou as fendas abertas pelo tempo nas velhas paredes, e a dos estocadores substituiu pelos complicados lavores do gesso, a pintura um pouco desbotada das características folhagens miudinhas nas paredes dos camarins, das alegorias mitológicas no teto da casa de jantar. Caíram os altos rodapés carunchosos, foram arrancados os azulejos da escada, e as sedas empalidecidas da sala do trono.
Tudo remoçado como velha matrona que se prepara para segundo casamento!
Rasgaram-se janelas, abateram-se antigas divisões, fez-se luz nos recantos obscuros, cortaram-se os degraus inúteis, introduziu-se nas paredes a teia miudamente ramificada dos encanamentos modernos, envidraçou-se a varanda, estucou-se de cores garridas desde a vasta cozinha lajeada até à sala do baile.
Cada manhã, quando o exército de operários entrava para o trabalho, era recebido no patamar da escada por uma velha que, ora em monossílabos agressivos e frases hostis, ora em súplicas humildes e lamentações chorosas tentava impedir-lhes a obra devastadora!
Era Brígida, a criada que defendia aquela casa, de onde nem as instâncias de Carlos, nem as ordens do novo proprietário, nem as obras que tudo revolucionavam, nem as chufas dos operários tinham conseguido expulsá-la. Agarrara-se com a tenacidade do molusco ao casco daquele velho navio a que a prendiam as raízes do coração, e a poderosíssima força do hábito de mais de sessenta anos.
A grande catástrofe da saída de Carlos, seguida pelo suplicio diário das transformações sucessivas que preparavam a profanação final— invasão do palácio pelos novos proprietários — tinham-lhe pouco a pouco esmorecido o fraco e cansado cérebro que conservava apenas viva, forte, implacável a ideia da defesa daquele domínio, da resistência às inovações.
Convencido da inutilidade dos esforços para a fazer sair por bem, Silva Matos consentira que a velhota se acomodasse, nos quartos do pátio; e os operários habituaram-se tanto aos seus impropérios que se alguma manhã tardava em aparecer iam provocá-la à porta dos seus aposentos.
— Falta-nos cá hoje a maluca! E cada um ia procurá-la, desafiando-a com grosseiras invectivas.
Ela então tentava correr sobre eles com um sarrafo na mão trêmula, insultando-os. Sentindo-se porém fraca, abatida, impotente, encostava-se a uma parede numa convulsão de choro, e as lágrimas caíam uma a uma sobre o lenço branco do peito. E era tão simpática e comovedora a sua dor que todos se afastavam envergonhados, quase contritos, diante dessa velha de cabelo branco.
Expulsos os legítimos senhores daquela casa, ficara ela, a encarnação da domesticidade dedicada que pelos hábitos tradicionais era considerada família que, como tal, se julgava incumbida por uma força superior de guardar intacto o sacrário das suas afeições, esperando talvez, que um poder sobrenatural lhe trouxesse das longínquas terras para onde lhe anunciava que partia em breve, Carlos, rico, poderoso, constituindo uma família que perpetuasse a sua nobreza pelo mais afastado futuro, deixando-a a ela então morrer descansada na serena e consoladora convicção de ter sido o gênio tutelar da casa de seus amos!
Cada dia porém ia vendo fugir-lhe mais e mais a possibilidade da realização desse sonho. Já quase desconhecia a nova divisão interna, e visto pelo exterior o palácio remoçado e casquilho dava-lhe o sentimento de viuvez de um pai que, depois de longa ausência, encontra pervertida, impudica, a filha que deixara inocente e pura.
Por vezes quase chegara a ter ódio àquelas paredes que numa passividade cobarde se deixavam assim violar com desonra, sem ao menos usarem do seu privilegio de velhice para protestarem esboroando-se num cataclismo.
Estranhara também de começo que Carlos tentasse levá-la dali, e lamentava que, ficando, ele não a acompanhasse naquela heroica defesa. Enternecendo-se, porém, dizia consigo: Coitado, falta-lhe coragem para assistir a esta desgraça! De fato, Carlos nunca mais entrara naquele bairro, nunca mais falara na sua casa desde que, havia meses, ela fora vendida ou antes encontrada no credito de Silva Matos.
Limpo de dividas e das relações que elas trazem começou a pensar praticamente no problema da sua vida até então apenas esboçado na fantasia cavalheirosa.
Ir para a África!
Hoje porém que já não se podia alistar nas falanges aguerridas que iam conquistar Tanger, Argila e Azamor, acabadas as guerras de raça e de religião e a força expansiva que levava Portugal ao Império de Marrocos, extinto o espírito militar que conservava aquelas praças para exercício e tirocínio da cavalaria fidalga, só lhe restavam três caminhos — o da administração, — o do comercio, — o da ciência.
Ser empregado, ser mercador, ou ser explorador.
Lembrou-se então de ter lido algures, que ao sul de Moçamedes nos territórios de Owampo as areias brilhavam com fulgores metálicos, e que nas margens do N'gami um negro tinha achado uma pequena pedra com água superior à dos brilhantes do Cabo.
A sua educação permitia-lhe estudar aquele problema, que podia significar um futuro desassombrado, e a imaginação impelia-o àquela empresa vaga e indefinida, ao encontro do desconhecido, eterno recurso dos espíritos doentes, no continente misterioso onde, se não achasse a fortuna, teria ao menos a morte, longe do cenário triste dos primeiros episódios da sua vida.
Ao coração que inoportunamente começara a sentir quando ele já irremediavelmente perdera a esperança de poder harmonizar a execução dos seus projetos com a posse de Matilde, imporia silêncio, encerrando-o no cofre de energia de que necessitava para caminhar sem hesitações.
Ela, por seu lado, prosseguindo na heroica abnegação, empregara todos os meios de o convencer que, sem abjeção nem desdouro, podia e devia casar com Maria, que na realidade o adorava.
— Olhe, Matilde, disse-lhe ele uma vez, se algum dia a fortuna deixar de ser avessa para mim, só uma mulher me poderá dar felicidade, e então irei pedir-lhe, a si, que, para epilogo do começado romance juntemos os nossos destinos, embora as cabeças branquejem, anunciadoras de velhice.
Bem no íntimo esta resposta de Carlos lisonjeava-a, acariciava o bocadinho de egoísmo que acompanha sempre os mais sublimes sacrifícios.
E sem desistir da sua resolução heroica, sem permitir a mínima concessão às exigências do seu coração de mulher, sentia contudo mais fácil a conformidade, achava mais suave a viuvez a que se condenara.
A sua vibrátil feminilidade assim como lhe tornava airosos os movimentos, e lhe imprimia graça nas maneiras, transformava todas as suas ideias em sentimento, obrigando-a a pensar pelo coração.
Em Maria, pelo contrario, a paixão revelava-se pela ideia fixa. A sua natureza impetuosa e ardente coloria com os tons vivos do entusiasmo, exagerava com a desproporção de uma lente convexa qualquer sentimento. O amor nela, era a vibração intensa de um cérebro exaltado, a excitação agitadora de todo o sistema nervoso.
O que nas criaturas docemente amorosas como Matilde dá o êxtase; o abandono de todo o ser a uma aspiração vaga, a dedicação submissa, e a deliciosa abstenção da própria individualidade, nas almas violentas produz a preocupação continua, a monomania do amor, o delirium tremens da paixão, o desejo ideal da posse absoluta, um estado de hipnotismo constante. É o amor cerebral das que adoram, e das que matam. A sua sensualidade racional é mais terrível, mais indomável, que a das histéricas. Pode dominar-se uma paixão; ninguém tem em si força própria para submeter uma alucinação.
Maria adorava Carlos assim.
A sua fantasia imaginava-o aquele conjunto de qualidades romanescas, de generosas loucuras, de audácias heroicas que formam a ave azul de todos os dezoito anos ainda os mais dados a prosa chã da vida. E de fato, Carlos, belo na sua despreocupada elegância, valente, nobre, inteligente, um quase nada altivo, realizava, quando aparecia na sociedade cercado pela estima dos homens, aureolado pelos segredos surpreendidos em todas as bocas femininas, o tipo ideal de molde para infiltrar no organismo da exaltada criança aquele absorvente amor.
O Pai apesar de pouco perspicaz em matéria de coração, descobrira essa tendência, e no empenho de a casar, comprometera desastradamente o êxito da missão delicada. Desde esse dia, Maria, conhecedora das relações entre seu Pai e Carlos, o que mais agravava o estado do seu espírito, perdida a campanha de salvar a casa que o banqueiro resolvera comprar, e a esperança de a habitar noiva e feliz, entrou a deixar-se apossar da ideia de que a invasão daquele palácio e a sua renovação (quase um sacrilégio) lhe trazia a infelicidade de toda a vida, a ruína de todas as aspirações.
O banqueiro por seu lado supersticioso, como todo o homem de negócio, começou a ligar à posse daquela casa a ideia de prosperidade nas vastas empresas. Lisonjeava também a sua crescente ambição de nobreza o fato de habitar o antigo solar de uma família ilustre.
Tardava-lhe portanto entrar para lá, sem pensar que cada martelada, que apressava a conclusão das obras, era como dada no coração de sua filha, que quando lançava os grandes olhos negros ao retrato de Carlos julgava surpreender um sorriso irônico escarnecedor, sobranceiro, e chamar-lhe com desprezo a filha do agiota!
Foi portanto como se a obrigassem a cometer um desacato na piedosa capela onde fizera a primeira comunhão, como se fizessem um feixe das suas crenças e a levassem a pisá-las profanando-as, que possuída de um pavor quase sagrado, Maria se apeou numa tarde, do luxuoso landeau à porta da nova habitação.
Pela grande escadaria, agora tapetada, os espelhos refletiam a sua figura elegante mostrando-lhe a cara pálida e as olheiras profundas do criminoso que entra com remorso na casa da vítima. Lá em cima no espaçoso salão da entrada iluminado fortemente pelas fachos de gás que guerreiros de bronze seguravam em atitudes teatrais, os criados de librés vistosas aguardavam a entrada.
O largo reposteiro do fundo foi afastado por uma mão débil e mirrada e por detrás, com o olhar odiento, os punhos cerrados, os cantos da boca espumosos, apareceu a velha Brígida curvada em atitude agressiva como hiena surpreendida e atacada no covil.
— Cheguei a tempo de receber os nobres senhores desta casa! Entrem vilões para o palácio que roubaram!
E numa catadupa de palavras explodia a cólera, o ódio, a indignação da pobre alucinada. O banqueiro um pouco interdito e visivelmente contrariado pela inesperada cena, deu ordem a um criado para que a levassem para o quarto, em quanto não era recolhida a uma casa de saúde.
Maria no entretanto tentara serená-la, mas Brígida como se a mordesse uma víbora, recuou um passo exclamando com violência:
— Não te chegues alma peçonhenta! Excomungada! Que quiseste ter palácio, ter salas, ter capela e obrigaste teu Pai a expulsar daqui o Sr. D. Carlos.
A filha do banqueiro ferida pela injusta lancetada das últimas palavras fugiu para o seu quarto. Abriu a janela para a mesma varanda de onde meses antes Carlos encontrara a resolução do seu problema, e correndo com a vista a toalha negra do rio, salpicada de pontos luminosos que se refletiam na água prolongados, tremeluzentes, fixou os olhos febris num, que imaginava pertencer ao vapor onde nessa tarde ele embarcara e onde na seguinte manhã seria levado ao desconhecido destino!
Largas horas permaneceu assim. Tarde, já bem tarde como se acordasse de um pesadelo doloroso, e tivesse achado uma solução trabalhosamente procurada murmurou repetidas vezes com uma voz glutunal e seca:
— Só o fogo purifica as grandes profanações! E repisando como numa ladainha aquelas palavras, dirigiu-se vagarosa e solene ao seu pequeno leito, cujo cortinado branco, ligeiro, virginal parecia prometer abrigar sonhos perfumados, proteger consciências serenas, asilar esperanças felizes!
E com a mão firme e resoluta, pegou no castiçal, e chegou a chama ao cortinado branco, ligeiro, virginal, que parecia prometer abrigar sonhos perfumados, consciências serenas, e esperanças felizes!
As labaredas subindo rápidas, comunicaram-se à tela pintada do teto onde uma alegre coreia de pequeninos e risonhos amores se enlaçava graciosa, como para inspirar sonhos perfumados, proteger consciências serenas, sugerir esperanças felizes!
O fogo alastrou rapidamente. Dentro em pouco ardia o palácio.
Ao mesmo tempo outro incêndio se ateava no ângulo oposto do vasto edifício, nos quartos habitados pela velha Brígida, que assim terminava como um bravo a defesa da praça assaltada.
Aqueles dois corações tão separados tinham-se encontrado no mesmo sentimento; as duas loucuras na mesma ideia!
Na tolda do paquete Carlos passeava desde a tarde contrariado com o acaso que o colocara em frente da encosta sobre a qual se estende a Alfama. O sol poente iluminava com uns clarões alaranjados a cantaria cinzenta da igreja de Santa Engrácia, triste como um monumento tumular, enorme, misterioso. O colossal edifício de São Vicente de Fora com as suas torres à frente, semelhante a uma grande locomotiva caminhando para o sul pesava abrutada sobre a casaria miudinha. À esquerda o Limoeiro, amarelo, cor d'oca, contrastava com a elegância severa das torres da Sé. E no centro do semicírculo formado pelos quatro edifícios, a sua casa, como um alfinete garrido pregado num plastron usado atraía-lhe inevitavelmente o olhar.
Não querendo porém abandonar-se a um sentimentalismo piegas, resistia à tentação.
As sombras da noite cada vez mais espessas, iam esfumando as linhas, apagando as cores, transformando o monte numa informe massa negra salpicada de luzes débeis.
De súbito porém um clarão vivo rompeu triunfante e logo outro bem perto.
Então a fantástica luz de um incêndio, iluminou sinistramente o amplo teatro refletindo-se no mar e bafejando com o hálito do fogo o céu esbraseado. Nuvens de fumo enoveladas saíam das janelas tomando formas estranhas.
E Carlos julgou ver distintamente desenhar-se no ar o dorso e cabeça colossal de um leão rompente, de cuja boca saia uma língua de fogo. Seria o cumprimento da profecia do Roque? Seria um presságio favorável nascido na goela do leão?
Pouco depois de chegar a África um jornal de Lisboa deu-lhe conta minuciosa do incêndio. A notícia terminava relatando, que nos trabalhos de rescaldo, se encontrara no desabamento de uma parede da capela, grande soma de bons dobrões de El-Rei D. João V.
Uma fortuna para o novo proprietário!
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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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