7/07/2019

O Sangue do Vigário (Conto), de Galdino Pinheiro



O Sangue do Vigário

A geada caíra abundantemente durante a noite; ao romper da aurora os campos alvinitentes pareciam de prata e das grotas erguia-se densa neblina, que semelhava véu enorme, com que a terra ao despertar ia cobrir-se para evitar o olhar indiscreto do sol. Pelas encostas, pelas lombadas, pelos cumes dos montes desdobrou-se ela, arrastada por invisível mão até os píncaros da serrania distante, envolvendo em rápidos minutos a terra nas suas dobras profundas. Através dela destacava-se, como apagada iluminura de um quadro, a cruz da igreja e o grupo de casinhas de São Bom Jesus dos Perdões.

O silêncio em que se quedava a natureza era profundo! nem o canto da patativa; nem o estrídulo do grilo, que o frio enregelava; nem o rugir da cachoeira, cuja voz a névoa ensurdecera; nem o mugido do touro, oculto por entre as árvores da restinga, se ouviam; o homem, mesmo o homem estava sepultado no sono ou tiritava ao fogo do lar. Como enorme crisálida a terra esperava o momento da sua metamorfose. Os germens da vida estavam encerrados em completo quietismo nas dobras desse inerte casulo – que ao romper-se ostentaria ao mundo formosa borboleta, ou venenoso inseto: – a virtude, ou o crime!

O som de uma aldraba e o subsequente ranger de uma rótula erguendo-se quebraram o silêncio e pareceram querer despertar a solidão. Cabeça de mulher, cujos negros cabelos e moreno semblante contrastavam com a alvura da neve, banhando-se na neblina, como ave que desperta antes da aurora e recolhe apressada a cabeça friorenta sob a quente asa, assim ela espreitou à direita e à esquerda cerrando incontinente sobre si a gelosia. Em seguida a porta da casinha abriu e um negro vulto esguerou-se por entre as casas raras e desertas ruas, sumindo-se em breve, envolto pela névoa, como batel, perdido em meio da cerração.

No quarto interno da casa bruxuleava a luz de uma candeia e no leito revolto e abandonado sentou-se a solitária e só moradora daquela habitação.

Cismava.

A melancolia imprimia-lhe ao semblante um tom branco e simpático; na lisa fronte estampava-se a mocidade; no olhar lânguido da marabá lia-se a paixão; nas faces abatidas o sofrimento e na palidez dos lábios o pesar. A longa e negra cabeleira descia por sobre os ombros, mal cobrindo os seios erguidos, que alva e negligente camisa em abandono deixava entrever; as mãos emagrecidas, senzeladas a primor, cruzavam-se no regaço, desenhando as dobras da saia as linhas corretas das pernas, terminadas em pés pequenos e mimosos. O olhar estava parado e fixo no chão.

Cismava.

O lábios murmuraram por fim, parecendo proferir uma prece, que terminou em prolongado e dolente suspiro.

Ergueu os olhos do chão e foi pousá-los no crucifixo, pendurado à parede; embebendo-se na contemplação da sagrada imagem, casando a sua magoa à dela, estampada no rosto ensanguentado.

Deixou-se resvalar pela borda do leito e caiu de joelhos.

Os olhos inundaram-se de lágrimas, que, batidas pela luz avermelhada da candeia, aljofraram-lhe o semblante como fios de perolas.

– Meu Deus! exclamou; aqui na Tua presença, esquecida do Teu poder infinito, ofendi-Te, Senhor, tornando-me indigna do Teu perdão e da graça da Tua Mãe Imaculada Maria Santíssima. Pequei, Senhor. Cega pelo demônio, não Te vi, surda pelo pecado, não Te ouvi, doida pelo amor, não pensei em Ti. Perdoa-me, Senhor. Sinto que as minhas entranhas se corromperam e que nelas gerou-se o filho do pecado! Não sou digna de Ti; mas deixa, Deus Misericordioso, germinar o fruto do meu ventre, que ele Te dará em dobrado amor, o que perdeste com o meu crime e o meu pecado. Perdoa-me, Senhor. Abençoa-o meu Deus.

As lágrimas corriam em torrentes. E tão puras e tão sinceras brotadas do rochedo da fé, ao toque da vara mágica do arrependimento, que limparam o seu coração de toda a macula do erro.

Aos olhos da pecadora arrependida a Santa Imagem animou-se, uma gota de seu sangue liquefez-se, rolou pela sagrada face e tombou sobre o seio da criminosa, imiscuindo-se com as lágrimas tão devotamente derramadas.

A Madalena estava salva!

Bendito o fruto do seu ventre.

As lágrimas da mãe arrependida e o sangue do Deus Clemente constituíram as primeiras moléculas do ser que se gerava e as orações maternas, a humildade da virtude, o pensamento volvido sempre para o Céu, insuflaram-lhe os primeiros movimentos do espírito vital.

Nasceu o menino. Sobre o coração dele estava estampada a imagem de uma gota sanguínea: era o sinal de que pertencia a Deus, o emblema do novo Cruzado.

A infância passou-a ele recebendo as carícias, ouvindo as orações maternas no santuário da família, ou nos degraus do altar.

Fez-se homem e fez-se padre.

Dedicou-se à terra de seu berço, amando-a, com esse amor severo dos juízes incorruptíveis, cheio de santas indignações, cóleras tremendas; que não se abatem nem contra a ferocidade dos crimes, nem perante as multidões enfurecidas; cóleras que só se acalmam para dar lugar ao perdão, prêmio dos regenerados! Cóleras divinas!

Em seu peito havia um oceano de amor placidamente folgaz ao sopro das brisas da caridade; impetuoso, rugidor quando batido pelas tempestades infernais em revolta contra Deus dos vícios e dos crimes.

Estes tinham então pasto abundante na ambição dos homens, instigada pelo ouro, que a terra mineira com exuberância oferecia das suas entranhas; na bruteza dos tempos; na origem adventícia dos indivíduos, que de longe, trazidos pela sede de riquezas, vinham saciá-la nos córregos auríferos dos Gerais.

Aventureiros d'aquém e d´além mar, por todo o Vale do Rio das Mortes, pelos serros alpestres de Ouro Preto, pelos territórios de Ouro Branco, pelas campinas de Paracatu, por Sabará, por toda parte enfim onde uma pisca de ouro faiscava ou uma simples suspeita o denunciava, arrojavam-se com fúria insana, resolvendo as entranhas da terra, rasgando as serras, desviando o leito dos rios, como se fosse um povo de Titãs amontoando montanhas para escalar os céus!

Todas as religiões, todas as raças, homens de todas as origens, representantes de todas as nações; o branco, o negro, o pardo, o mameluco; todos os sexos, todas as idades; o rico, o pobre, confundiam-se sacrificados ao Bezerro de Ouro!

O lavrador, esquecido de seus plácidos serões, o artesão deslembrado de seus alegres cânticos, o padre despedaçada a batina, o pastor abandonado o rebanho, o homem sem família, a mulher sem esposo, a criança sem inocência mergulhavam-se nas betas profundas, certos de aí acharem a sepultura, se as montanhas esboroassem, ou se torrentes subterrâneas surpreendessem-nos.

Naqueles antros reinava feroz alegria, satânicos prazeres, diabólicos amores. A luxúria expelia o pudor e a flor da virgindade ainda em verde botão era colhida! O latrocínio, o roubo e o assassinato eram as ultimas consequências desse esforço cruel e a miséria a derradeira estrofe desse terrível poema de infernal ambição!

São Bom Jesus dos Perdões também teve o seu dia.

Homens desconhecidos, esquivos, suspeitosos apareceram em Bom Jesus. Dizendo-se lavradores percorriam as ribeiras, sondavam os vales. Eram os primeiros exploradores. Onde o esmeril formava o seu negro deposito as enxadas cavavam a terra, e as bateias revolviam-na. As piscas e as folhetas eram ocultadas, guardando-se a mais profunda reserva. O ouro, porém, tem uma voz misteriosa, que se denuncia por arte de magia desconhecida, atrai para junto de si todos os que se deixam seduzir pelo seu brilho e dominar pela ganância da sua posse!

As primeiras fecundas bateadas no São Bom Jesus foi como o toque de rebate, que pôs em alvoroto toda sua população e os mineiros que em outras e longínquas partes ouviram a fama do novo descoberto.

Em pouco tempo a azáfama, o bulício, o tumultuar de aventureiros quebraram a paz do pequeno povoado, chamado às lavras a população inteira da terra.

O padre de São Bom Jesus contemplava aquele espetáculo com mágoa do seu coração.

O templo ficou deserto de fieis, os lavradores da santa seara, dominados pelo demônio da ambição, deixaram-na sem cultivo e o fruto celeste perdia-se no abandono, sem que houvesse terreno para semeá-lo. O sino da capela em vão chamava os filhos de Deus à oração. Os passos do vigário só ressoavam na deserta nave. O santo holocausto era feito sem que os remidos por Jesus confessassem a sua culpa, a sua grande culpa. A benção do celebrante perdia-se no espaço; porque uma só cabeça não se curvava para recebê-la.

Percorria ele as ruas desertas e silenciosas do pequeno arraial; e ao sair ou ao recolher-se a casa, não ouvia as saudações amigas e respeitosas de tempos ainda bem próximos. As negras cruzes pregadas sobre as portas cerradas das casas pareciam transformar aquele risonho sitio em estranho cemitério, como se cada habitação fosse um mudo sepulcro. Reinava ali a paz dos mortos, o silêncio das necrópoles!

Meditabundo, oprimido por pensamentos dolorosos dirigiu o vigário os passos para as minas, onde a multidão aglomerada lutava com a terra para arrancar-lhe do seio a oculta sementeira de tão grandes males.

Aí chegando, o espetáculo que seus olhos contemplaram foi horrível! O espírito recusava aceitar os conhecimentos, que lhe forneciam os sentidos alterados. O coração recebia punhaladas e o pensamento chocava-se ao acumulo de horrores sobre horrores! A alma do padre confrangeu-se, como se quisesse evolar-se: por fim o seu peito rugiu como o leão encarcerado e a palavra vibrante de cólera, tremente de indignação retumbou como a voz de Jeová, saída do meio da sarça ardente para condenar as prostituições do seu povo.

"Abandonaste Deus pelo Demônio, povo, bradou ele, sacrificaste a pureza da tua vida à louca ambição de possuir o que nunca careceste! Marido, onde está tua mulher? mulher, onde está o teu esposo? pai, onde está tua filha? filha, onde está tua mãe? Ah! não sabeis; desceram para as trevas do Inferno! Deus, retirai a cegueira dos olhos destes infelizes, abri-lhe os ouvidos à verdade, a alma ao bem. – Ouro, demônio, fugi!"

Ao proferir esta exclamação os veeiros desapareceram da terra, as bateias só deram cascalho. O ouro fugira!

Um grito de espanto e logo após um brado de vingança partiu do peito da multidão indignada.

Apupado, ridicularizado como Jesus, ferido, sangrento, levado de rojo como Cristo pelas estradas e ruas do Bom Jesus, o padre, à porta da casa onde o filho de Deus perdoara a mãe criminosa parou, ergueu-se, fazendo recuar a multidão, que vociferava.

Com o sangue, que manava da sagrada coroa desenhou na porta da habitação a imagem dela e com o que do peito corria, escreveu o seu nome.

"Não és digna, terra maldita de possuíres tão formoso nome. Não durarás mais que este sangue, que teus renegados filhos derramaram. Desaparecerás com ele: cada uma das suas partículas, que o tempo diluir e apagar corresponderá a uma desagregação do teu solo, até o teu inteiro desaparecimento da face terra."

Soltou o derradeiro alento da vida e expirou.

***

A sentença do padre cumpriu-se. São Bom Jesus dos Perdões viu as suas casas caírem uma a uma. O solo roto, fendido pelas erosões das águas de ano em ano modifica-se, rompendo-se em profundos sulcos. A esterilidade mata-o!

O sangue do vigário clama vingança.


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Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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