7/05/2019

Preparemo-nos... e vão... (Conto), de Brito Camacho



Preparemo-nos... e vão...
Aparecia à frente de todas as manifestações patrióticas, e sempre dominavam a algazarra da multidão os seus gritos de Viva a guerra!
Pusera-se de mal com todos os parentes, só por eles não terem, como ele, o fervoroso culto de Marte, e um providencial excesso de coragem livrava-o de conflitos sérios, com amigos inclinados à paz.
Em apanhando três companheiros de feição, assinado o passaporte na taverna mais próxima, lá iam todos de longada à Servia, afirmando-lhe a sua grande simpatia e a sua máxima admiração, raivosos porque os traidores não deixavam que Portugal entrasse no conflito, a cobrir-se de glórias. Os traidores, bem entendido, não eram os que pretendiam que Portugal faltasse aos seus mais nobres compromissos, negando à Inglaterra, velha aliada, o auxílio que ela nos pedisse, com fundamento em múltiplos tratados de aliança e amizade. Traidores eram os que pretendiam que Portugal, a ter de entrar na refrega, entrasse como aliado da Inglaterra, e por virtude dessa aliança, honrando os seus compromissos não apenas com rigorosa exatidão, mas com manifesta generosidade.
O heroísmo, como o suor, vinha-lhe à pele no delírio das manifestações patrióticas, e era de ver o arreganho com que ele ameaçava os covardes, abrasado era cóleras sagradas. Nas conferências em que se procurava orientar o sentimento público no sentido da guerra, ele era dos que aplaudiam com mais estrépito, era dos que se manifestavam com mais ruído, e invariavelmente, apenas o conferenceiro fechava a torneira dos patrióticos dislates, ele erguia-se vermelho como um tomate maduro, e enchendo de ar o arcabouço taurino, berrava com toda a força dos seus pulmões de bronze— Viva a guerra! Abaixo os traidores!
Repetia, como um papagaio, tudo o que ouvira, tudo o que lera com respeito à nossa participação no conflito mundial, aliados da Inglaterra, ficando para sempre desonrados se lhe negássemos o auxílio que ela nos pedira, e afirmava a existência desse pedido como se tivesse visto, como se tivesse lido a respectiva nota diplomática. Havia quem negasse a existência dessa nota — eram os maus republicanos, os maus portugueses, traidores e covardes. Um dia, em conversa amena de café, um amigo por quem ele tinha a maior estima e a mais alta consideração, afirmou-lhe que, de fato, a Inglaterra pedira a nossa intervenção, mas que o fizera muito instada por nós para que o fizesse. Serviu-lhe isso para daí em diante afirmar, com inabalável segurança, que o nosso auxílio fora pedido, e berrava, quase a romper as goelas, que a respectiva nota diplomática lá estava no Ministério dos Negócios Estrangeiros, não se tendo ainda publicado nos jornais, sem a falta de uma letra, na integra, por conveniências da política internacional. De resto, acrescentava ele, repetindo como um eco o que ouvira em discursos, o que lera nos jornais — devíamos entrar na guerra, mesmo contrariando a nossa Aliada, para salvarmos as colônias.
Era uma vergonha, andarem as Nações todas aos tiros umas contra as outras, numa febre de morticínio como não havia exemplo na História, e nós para aqui de braços cruzados, pouco nos importando que a Força triunfasse do Direito, que o Crime triunfasse da Justiça, que a Barbaria triunfasse da Civilização.
A muitos dava a impressão de uma fera à solta, procurando vítimas para saciar a sua ânsia de sangue e a sua fome de carne; a outros dava a impressão de um malandrete a soldo, sem vislumbres de paixão, sem a menor sombra de sinceridade, para fazer a propaganda truculenta de uma causa que não tinha raízes no sentimento nacional.
A apreensão dos barcos alemães, surtos no Tejo, em março de 1916, levara a Alemanha a declararmos guerra, não se dispensando de o fazer por maneira a vexar os nossos brios e ofender o nosso orgulho de Nação independente.
Vassalos da Inglaterra!
Mas se assim fosse, há muito seríamos beligerantes, desde a primeira hora, correndo a sorte da Nação soberana desde que ela pegara em armas. O fato de nos conservarmos neutros andando já ateada a guerra, era a afirmação categórica, absoluta, insofismável da nossa independência, povo soberano que só uma vez, e por breve tempo, no longo curso da História, sofrerá a dominação estrangeira.
Vassalos da Inglaterra!
Uma semelhante afronta, gratuita e calculada, exigia estrondosa desforra, e antecipadamente a tirara o Almirante que no Mar da Palha batera a esquadra alemã, ancorada no Tejo desde o começo das hostilidades. Troara o canhão de bordo, intimando os navios boches a se entregarem, e dentro em pouco a bandeira nacional, triunfante e gloriosa, como que gritava a todos os ventos, para que se ouvisse no Orbe, que no seu primeiro recontro conosco o inimigo fora derrotado.
Logo se organizou uma grandiosa manifestação ao marinheiro que inscrevera na história marítima de Portugal uma página mais bela, mais epopeica que a de Trafalgar. Milhares de cidadãos se reuniram, seguidamente ao jantar, no Terreiro do Paço, soltando gritos de saudação, de reconhecimento patriótico, ao vencedor do Mar da Palha. A luz um bocadinho baça dos holofotes, incidindo sobre a multidão, dava-lhe os ares de uma horda incendida em fúrias mavórticas, preparando-se para um combate homérico.
Urna voz se ergueu, formidanda, imperativa, rouca do muito que já tinha berrado:
— Vamos à Servia!
Era o remate de todas as manifestações patrióticas, a respeito de cuja composição dizia um diplomata estrangeiro, já farto de os aturar: — Ils sont toujours les mêmes.
Veio o decreto de mobilização, e a partir desse momento começou ele a ser menos estrondoso nos seus entusiasmos guerreiros, reclamando ainda a nossa intervenção, mas já calculando que poderia muito bem vir a ser colhido na rede se a mobilização se fizesse nos termos em que estava decretada.
Que os militares fossem para a guerra, achava bem; mas que os civis, ainda na idade de pegar em armas, fossem arrancados às suas ocupações para os lançarem nos campos de batalha, isso é que lhe parecia mal, e contra tal abuso e violência protestaria, se ela viesse a consumar-se.
A mobilização fora o Tabor em que o miserável se transfigurara. Afirmava por toda a parte, em público e raso, que a Inglaterra não invocara tal os tratados para nos pedir um auxílio militar, e intimava os intervencionistas contumazes a desmentirem-no com provas, as irrecusáveis provas que deviam estar no Ministério dos Negócios Estrangeiros, expressas em notas diplomáticas.
O risco de perdermos as colônias?
Mas era evidente que as perderíamos se a Alemanha vencesse, quer entrássemos, quer não entrássemos na guerra, e seria monstruosamente absurdo admitir que também as perderíamos se a Alemanha fosse vencida, praticando contra nós, os vencedores, um dos maiores e mais repulsantes crimes da História.
Como estivesse na idade de pegar em armas, quando chegou a vez aos da sua freguesia, levando na algibeira um atestado médico em que se jurava que tinha vertigens, apresentou-se à junta de inspeção. Um perfeito animal, disseram os da ]unta, ao caírem-lhes os olhos na sua nudez hercúlea. E puseram na guia — Apto para o serviço.
Fazia dó a sua tristeza acabrunhada, por modo que alguns dos parentes, esquecendo injúrias e agravos, procuraram-no em casa, para o verem e para o consolarem.
— O que lá vai, lá vai. Mas que doidice era a tua, a gritares por toda a parte: — Viva a guerra! a chamares traidores a todos que honestamente mostravam desejos de a evitar!...
E ele, os olhos cheios de lágrimas, vergando ao peso do remorso.
Eu acreditei lá nunca que vivêssemos a ter guerra a sério?

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Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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