7/05/2019

Quem tem padrinho... (Conto), de Brito Camacho



Quem tem padrinho...
Servira de madrinha, focando com a coroa de Nossa Senhora, o tio Manoel, havia quinze dias chegado do Brasil, para onde abalara havia quinze anos.
Recebeu o nome batismal de Maria, a que a avó acrescentou — da Conceição, pondo assim a neta sob a guarda da Mãe de Deus, soberana dos anjos, refúgio dos pecadores — refugiam peccatorum.
A pequena era linda como os amores, e além de linda era simpática, o que não acontece com todas as crianças lindas. Há formas de beleza humana que suscitam a nossa admiração sem provocarem a nossa simpatia, sendo frequente ouvir dizer a respeito duma criança ainda pequena, de uma rapariga já grande, ou de uma mulher ainda nova — é bonita, mas embirrenta.
Pois a Maria da Conceição era simpática e era bonita, reunindo estas duas qualidades em grau excepcionalmente elevado.
Tomou a avó encargo da sua educação, para alivio dos pais, já com um bom peso em cima dos ombros, dois rapazes e três raparigas, nenhum dos rapazes hábil para ganhar, e nenhuma das raparigas capaz de aprender, duas gêmeas, contando escassos cinco anos.
A avó da Maria da Conceição era pessoa muito devota, rigorosamente educada nos princípios da religião católica, apostólica e romana. Não era beata, não era sequer igrejeira, chamando assim às pessoas que trocam a casa pelo templo, algumas preferindo ao templo a sacristia. Ouvia missa todos os domingos, confessava-se todos os anos, e só por grave incomodo de saúde não jejuava em dias de preceito. Não dava esmola a todos os pobrezinhos que batiam à sua porta, porque não lho permitiam as suas posses; mas fazia todo o bem que podia, sem alarde nem ostentação, nos precisos termos do Evangelho — a sua mão esquerda ignorava os benefícios que fazia a sua mão direita.
Quando já era crescidita a neta, levava-a consigo à missa, e encantava-a a compostura da pequena, atenta a tudo quanto o padre fazia no altar, ajoelhando quando a avó ajoelhava, as mãozinhas postas, como se rezasse, muito desejosa de ser grande para ter um livro de missa, bonito como o da vovó, encadernado em percalina, com fechos de metal.
Aos cinco anos já sabia muitas orações — o Padre Nosso, a Ave Maria, a Salve Rainha, o Credo e os Artigos da Fé, a Magnificat e as Obras de Misericórdia. Não sabia os Mandamentos, porque a avó, tendo alguma dificuldade em explicar-lhe o sexto e o nono, assentara em só lhos ensinar, e também a Confissão, quando chegasse à idade de comungar.
Nunca a pequena, por expressa recomendação da avó, passava em frente do oratório que havia no quarto de cama, o quarto em que dormiam as duas, em leitos separados, que não se curvasse em reverência, persignando-se sumariamente, com uma só cruz, a do peito.
Sem assumir atitudes de mestra, a avó ia ensinando à neta muitas passagens da história sagrada, esforçando-se por lhe imprimir no cérebro em formação, brando como a cera mole, algumas das verdades absolutas da religião católica, e também alguns dos fatos mais notáveis da história da Igreja.
No pequenino oratório, de colunas torcidas, semelhante a um baldaquim, estava a sagrada família, a Virgem no meio, São José à direita e o menino Jesus à esquerda, rosado como um bambino da renascença italiana.
Toda a indumentária da Senhora, de uma austera simplicidade, fora D. Sulpícia que a fizera por suas mãos, no enlevo quase místico de um crente, ajoelhado no altar, deserto o templo, os olhos pregados no sacrário onde se guardam as partículas que consubstanciam o Cristo, como homem e como divindade. Dir-se-ia talhado na pureza celestial dos lírios o seu vestido de seda, caindo em grande roda sobre os seus sapatinhos brancos, com fivelas de prata, e era preciso tocar no seu aventalinho, preso à cintura por um cordão, que se não via, coberto pelo manto, luzente como se fora talhado em neve alpina, era preciso tocar o avental para se reconhecer que nem era feito do sol mais fulgido nem do ouro mais puro.
Muitas vezes a neta pedia à avó que a deixasse pegar no menino, e então cobria-o de beijos, cumulava o de carícias; conversava com ele, como se fora uma criança da sua idade, fazendo-lhe perguntas e dando ela mesma as respostas, convencida de que era Jesus que lhe respondia. Sorria a Virgem àquele idílio infantil, e à Maria da Conceição, duma notável precocidade, não passava despercebida a dupla significação daquele sorriso — orgulho de mãe e satisfação de madrinha.
Nunca as flores murchavam no pequenino oratório, renovadas com frequência, e não havia para a pequena ocupação mais do seu agrado, que entretecer capelas ou grinaldas para a sua adorada madrinha.
S. José merecia-lhe respeito, mas não lhe inspirava simpatia. Tinha o ar severo das pessoas concentradas, quase fixo o olhar, como pessoa que medita e raciocina. Marido da Virgem, pai de Jesus, isso devia bastar a encher-lhe a alma de jubilo e felicidade, iluminando se-lhe o rosto como aos bem-aventurados fruindo as delícias do Paraíso.
— Ó avozinha, por que é que o meu padrinho tem um escopro na mão direita e uma serra na mão esquerda?
— É porque São José era carpinteiro.
— E lá no céu, ele trabalha pelo ofício?
D. Sulpícia achou graça à inocente pergunta da neta e pôs-se a explicar-lhe o que é o céu, esforçando-se por despertar naquela alminha tenra, a desabrochar na vida, o sentimento de uma existência sem limitação, ao cabo da jornada mais ou menos longa por este mundo de Cristo.
— No céu, minha filha, ninguém trabalha...
— Que bem, avozinha!
— Ninguém trabalha, porque o trabalho ali não é preciso. Se não fosse a desobediência dos nossos primeiros pais, como já te expliquei, também na Terra não seria preciso trabalhar, porque tudo nasceria espontaneamente e em abundância, e cada qual gozaria de tudo à sua vontade, porque ninguém seria dono de coisa nenhuma.
— Deve ser muito bonito o céu, avozinha. E lá também há colégios de meninas?
— Não, minha tontinha. No céu tudo se sabe e nada se aprende; não há mestres nem discípulos.
— Gostava tanto de lá ir!
Lá irás um dia, e praza a Deus que seja muito depois de mim.
— Com a avo é que eu gostava de ir.
— Tontinha! Eu já pouco viverei, porque além de ter muita idade, tenho pouca saúde. Pede à tua madrinha que me conserve neste mundo até que sejas mulher, porque até lá precisarás de mim. Depois, vendo-te amparada, que Nosso Senhor me chame à sua divina presença, e se amerceie da minha alma pecadora.
— E a avó não tem pena de ir para o céu sem mim?
— Ficas sob a proteção de tua madrinha, imperatriz do céu e da terra, virgem concebida sem mácula, mãe de Jesus Cristo.
— E a gente não pode ir para o céu sem morrer?
— Pois não pode. Quando a gente, morre, uma vida acaba, e principia outra vida.
— E todos os que morrem vão para o céu, avozinha?
— Não, minha filha. Para o céu vão só os justos, os que praticaram boas obras, os que cumpriram os preceitos da Santa Madre Igreja, tementes a Deus, nunca jurando o seu santo nome em vão.
— E os outros?
— Os outros vão para o Inferno.
— E o que fazem lá?
— Sofrem os maiores tormentos, alguns metidos em água a ferver, ou envolvidos em labaredas que jamais se apagarão, e que, torturando-os, os não consomem, porque têm que sofrer pela eternidade sem fim.
— Coitadinhos!
— Sim, coitadinhos; mas por eles e por nós todos sofreu Nosso Senhor Jesus Cristo, pregado numa cruz, entre dois ladrões, maltratado e escarnecido como se fosse um criminoso da pior espécie, e um impostor da mais impertinente arrogância. Lembra-te, minha filha, que desde o Horto até à casa de Anás, uma pequena distância, só pontapés apanhou o Senhor para cima de cento e quarenta, e mais de cem bofetadas. Deram lhe para cima de cinco mil açoites, setenta e duas vezes cuspiram no seu divino rosto, vinte e sete vezes o arrastaram pelos cabelos. Foram setenta e duas as marteladas com que o pregaram na cruz, banhando-lhe a divina face o sangue que lhe escorria de mil feridas que a coroa de espinhos lhe abrira na cabeça.
— E não havia ninguém que lhe acudisse?
— Ninguém, minha filha. Para fazer ideia do que foi martírio de Nosso Senhor Jesus Cristo, bastará dizer-te que ao retirarem-no da cruz, já morto, o seu divino corpo tinha seis mil quatrocentas e setenta e cinco feridas, pelas quais perdera duzentas e trinta mil gotas de sangue, tendo chorado seiscentas e dezoito mil lágrimas — tudo para nos redimir e salvar.
— Credo, avozinha! Isso são coisas que se dizem...
— São coisas que tu lerás em vários livros, entre eles este, que se chama — Relicário Angélico de Jesus Cristo e de Maria Santíssima, impresso com licença da Mesa do Desembargo do Paço.
Os pais de Maria da Conceição, liquidando o nada que tinham, abalaram para o Brasil, fugidos à miséria do seu lar, tranquilos a respeito da filha, que ficava bem, entregue aos cuidados da avó.
D. Sulpícia não era rica, mas o que tinha chegava-lhe bem para a vida modesta que fazia, e ainda lhe sobejava alguma coisa, que destinava ao dote da neta, se ela viesse a casar em seus dias. Educou-a para ser uma boa dona de casa pobre, muito jeitosa para tudo, religiosa sem fanatismo, como a avó, muito apurada no vestuário, sem impostura.
Apanhada pela pneumônica, D. Sulpícia, ao cabo de cinco dias de doença, confortada com os Sacramentos, deu a alma ao criador,
Abriu-se o testamento, e viu-se que à neta deixava quanto, por lei, podia deixar-lhe, tendo-lhe entregado, dois dias antes de morrer, todo o dinheirito que tinha.
Assim que aliviou o luto, a Maria da Conceição passou a viver mais na rua que em casa, sempre muito devota, nunca faltando à missa dos domingos, jejuando nos dias de preceito; em cada dia, e nas horas, per assim dizer, canônicas, rezando as devoções recomendadas. Continuava, como no tempo da avozinha, a não haver flores murchas no altar, e as capelas da sua madrinha, como noutro tempo, era ela que as entretecia, escolhendo as mais lindas e viçosas.
Mas...
Um dia o Inimigo pôs no seu caminho, formoso como um Adônis, esbelto como um Apolo, robusto como um Hércules, um moço que lhe fez a corte, e lhe ofereceu a mão de esposo, hipnotizando-a como um feiticeiro, um mágico de contos indianos.
Entregou-se-lhe sem reserva, e quando lhe exigiu o cumprimento das suas promessas, que era apenas o pagamento de uma dívida de honra, o belo Adônis desapareceu, indo talvez como na mitologia, para ¡unto de Proserpina, nas profundas do Inferno.
O primeiro passo é que custa, e a neta de D. Sulpícia, afilhada de Nossa Senhora, converteu-se numa espécie de Madalena antes do arrependimento, menos feliz que a pecadora da Magdalum junto ao lago de Genesaré, porque não encontrou um Redentor a quem ungisse e perfumasse, enxugando-lhe os pés com a toalha dos seus cabelos.
A sua desenvoltura levou a desordem e a desgraça a muitos lares, parecendo ter uma predileção doentia pelos homens casados, como se fosse preciso que alguém sofresse para que ela gozasse.
Um dia, a viajar em automóvel, o carro estampou-se numa parede, e ela recolheu a sua casa, quase feita em bocados, declarando o médico que primeiro a viu que só por milagre viveria uma semana.
Exigiu que lhe metessem na cama, deitada do lado do coração, a sua madrinha, que cobriu de beijos e lavou de lágrimas, e tendo recebido os últimos sacramentos, em confissão perfeita, sem um gemido, sem um estremeção, sem um queixume, serena como um justo, resinada como um mártir, pôs-se a caminho da viagem de que se não torna.
Bateu à porta do céu, e foi São Pedro, o divino porteiro que lhe apareceu, com um barretinho de lã na cabeça, e um molho de chaves na mão.
— O que deseja?
— Desejo entrar, Sr. São Pedro, e grande esmola me faria se mandasse dizer à minha avó, a D. Sulpícia — há de conhecer?... — que está aqui a neta, para ela me vir buscar.
— Pois não!... Tudo quanto quiser — é só pedir por boca. As belas obras que fez na Terra garantem lhe um lugar no céu.
— Fui uma grande pecadora, Sr. São Pedro; mas Nossa Senhora, minha madrinha de batismo, sabe que fui sempre fervorosa no seu culto, e que nas horas mais libertinas da minha vida, a tive sempre no coração, aí guardada como num relicário.
— Sim, senhora; honrava bem a sua madrinha. O desregramento da sua vida deve tê-la enchido de amargura, porque ele significava a mais lamentável falta de respeito, o mais criminoso desprezo pelas suas virtudes e benemerências. Tarde se lembrou da sua madrinha, depois de gravemente a ter ofendido.
— Mas nunca a reneguei, Sr. São Pedro.
— Isso é piada? — retrucou o divino porteiro, recordando a cena da prisão do Mestre, naquela noite trágica do Monte das Oliveiras.
Fechou a porta, deixando-a de fora, e foi atender um freguês que chegava, em trajos de jesuíta.
Maria da Conceição, vendo-se tratada assim, julgou-se irremediavelmente perdida. Pôs-se a gritar, num choro convulsivo, pela avó e pela madrinha, na vaga esperança de que lhe acudissem, amerceando-se da sua triste sorte, uma pelo seu infinito amor, a outra pela sua misericórdia infinita.
Era como se clamasse no deserto — nem os ecos lhe respondiam.
Subitamente, erguendo os olhos ao alto, vê Nossa Senhora debruçada n uma janela, envolta numa aureola de luz mais pura que a do sol, o rosto angélico velado de uma suave tristeza, que era ao mesmo tempo simpatia e piedade.
Redobraram os seus gritos lamentosos, as suas implorações cruciantes, a dolorosa confissão das suas faltas, a sincera e dolorida afirmação do seu arrependimento.
Condoeu-se a Virgem de tanta miséria confessada, honestamente confessada, e arrancando ao arco-íris uma fita tricolor, atirou a, segurando-a por uma das pontas, à pobre Maria da Conceição, que a ela se agarrou, e por ela subiu, como se fora uma escada de seda.
Estava salva!
No dia seguinte, à hora em que São Pedro faz a entrega dos Justos que se lhe apresentaram de véspera, e ele achou em condições de serem admitidos no céu, Jesus, como um oficial da guarda, apareceu à frente de um piquete de arcanjos, para a definitiva admissão.
Vendo a Conceição, timidamente encolhida a um canto, afastada do grupo como uma pessoa estranha, perguntou a São Pedro:
— Como é que está aqui aquela rapariga?
São Pedro que se apercebera da manobra da escada, olhando de soslaio a Virgem, que se achava presente, respondeu:
— Olhe, faça favor de perguntar à Senhora Sua Mãe, que ela é que sabe.
Sem desfazer o que estava feito, filho amantíssimo e obediente, Jesus Cristo recomendou a São Pedro que fosse rigoroso no desempenho das suas funções, que não se reduziam a abrir e fechar a porta, cumprindo-lhe exercer vigilância sobre a parte de Jerusalém Celestial que fica nas imediações do portão.
Nisto aparece o jesuíta da véspera, que São Pedro mandara para o Inferno, e que Santo Inácio, com a cumplicidade dum Anjo, em serviço de sentinela, fizera entrar para a celestial mansão.
Não se conteve Jesus, que não dissesse ao divino porteiro, mal disfarçando a sua justa cólera:
— Não, amigo São Pedro; isto assim não vai bem...
— Pois não vai, Divino Mestre. O melhor é escolherem outro para o meu lugar, que eu não posso mais...
Atirando para cima da sua velha mesa de despacho o molho de chaves que tinha na mão, resmungando para que o não ouvissem, desabafou:
— Assim nem o diabo pode ser porteiro no céu.
E ali mesmo fez um requerimento, pedindo contagem do tempo para a reforma.



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Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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