7/05/2019

Quem me avisa... (Conto), de Brito Camacho



Quem me avisa...
Ontem houve uma larga conferência entre
o Sr.
D. Afonso e o Sr. D. Manoel,
versando sobre o parecer do Conselho do Estado,
relativamente à dissolução do Parlamento.
(Dos jornais)
— E então?
— Lá votaram o decreto, dissolvendo a Gamara.
— Dissolvendo a Gamara! Mas tu não podes assinar esse decreto, sem cometeres um perjúrio.
— Ora essa!
— Mas é assim mesmo, pequeno. Juraste manter a Constituição, não é verdade? Pois esse decreto é uma navalha com que a rasgas, e acho de mau agouro entrar na vida de navalha em punho.
— Mas o tio...
— Bem sabes que eu sou assim. Quando tenho alguma coisa que dizer, digo-a de forma que todos me entendam. A ti, mais do que a ninguém, eu tenho obrigação de falar com a maior franqueza, embora isso te escandalize.
— Acha então o tio...
— Acho que tu não deves assinar tal decreto, sejam quais forem as razões que aleguem para te obrigarem a assiná-lo.
— Mas o conselho de Estado...
O conselho de Estado! Fia-te nesses gajos, e verás o tombo que apanhas. Eu conheço-os de ginjeira. Bem se importam eles encravar-te, se com isso servirem as manigâncias dos respectivos partidos!
— Ora a minha vida! Antes eu tivesse morrido também, que me não via agora nesta situação desesperada, querendo manter-me dentro dos meus estritos deveres de rei constitucional, e a sentir-me empurrado para um terreno escorregadio e perigoso.
— Morrer! Não digas tolices.
— Tolices! Era a tranquilidade para mim, e era o trono para o tio.
— O trono para mim? Eu estava-me... Tu estás doido, pequeno...
— Bom; mas já agora não há remédio senão assinar o decreto.
— Pois sim; mas olha que só o primeiro passo é que custa.
— Não, lá isso não. Uma vez restabelecida a normalidade...
— Bem sei; uma vez restabelecida essa famosa normalidade, para onde te empurram os políticos, já nem te prestarás a ouvir os meus conselhos, porque lerás perdido todos os escrúpulos de rei constitucional.
— Verá que se engana. Não consentirei...
— Não consentirás! Tiveste a primeira fraqueza, praticaste a primeira ilegalidade, caíste irremediavelmente nas unhas desses galfarros que tudo sacrificam, as instituições e o país, aos seus interesses inconfessáveis e às suas ruins paixões. Foi assim que os políticos prepararam a morte de teu pai e de teu irmão.
Cambada!
Quem os mandasse de presente ao diabo, o que não seria difícil, com um pouco de boa vontade, prestaria um ótimo serviço a Deus, ao Povo e ao Rei.
Apanhasse-os eu debaixo da minha alçada, e verias como lhes sacudia as orelhas com o pingalim, obrigando-os a puxarem direito, metidos aos varais, como potros de amansia.
Malandros!

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Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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