7/05/2019

Reconciliados!... (Conto), de Brito Camacho



Reconciliados!...
Ontem, na recepção do Paço,
 os senhores João Franco e Hintze Ribeiro,
de relações cortadas há muito tempo,
reconciliaram se.
(Dos jornais)
— Meu caro João!
— Meu caro Ernesto!
E caíram nos braços um do outro, como se fossem amantes que se reconciliam, ou como se fossem velhos amigos que se encontram ao cabo d uma longa ausência.
— Acreditarás que nunca te quis mal?
— Será preciso jurar-te que guardei sempre, no fundo do coração, o culto da nossa amizade?
— Como fu és bom, João!
— Como fu és magnânimo, Ernesto!
E novamente caíram nos braços um do outro, como velhos amigos que se encontram ao cabo duma longa ausência.
Parecia-lhes agora ura sonho, aquela quebra de relações, sem um motivo suficiente, sem uma razão cabal, unicamente porque um dia, como as crianças, apeteceram ambos o mesmo brinquedo ou a mesma guloseima, e a nenhum ocorreu o juízo de Salomão, no caso das duas mães. Teria sido tão fácil entenderem-se!
— Não é verdade, João?...
Tinham se ligado naturalmente, desde o dia em que se encontraram na mesma estrada, cheios de fé, a caminho dos seus destinos gloriosos! Vinham ambos de muito longe, de um país de quimeras, bacharéis como toda a gente, e como todos os bacharéis erguendo os olhos ao alto, ao mais alto das honrarias mundanas, e pondo lá, entre esplendores de apoteose, a mais forte das suas ambições, o mais vivo dos seus desejos. E porque a união faz a força, irmãos pelo caráter, iguais pelo talento, um ao outro juraram proteção e amparo — como nos bons tempos medievais os soldados da mesma legião assinavam com sangue o pato de acabar um onde morresse o outro, o mesmo golpe prostrando os dois, e os seus olhares cruzando-se já sem brilho, num derradeiro protesto de amizade, que iria talvez continuar para além da vida, noutros mundos, quem sabe?...
— Meu caro João! i...
— Meu caro Ernesto!...
E durante largos anos, irmãos pelo caráter, iguais pelo talento, soldados da mesma legião, apóstolos do mesmo credo, sacerdotes do mesmo templo, evangelistas da mesma fé, durante largos anos caminharam juntos, pregaram a mesma cruzada, terçaram as mesmas armas, feriram os mesmos combates, alcançaram os mesmos triunfos, cobriram-se da mesma glória. Nem era fácil distingui-los, irmãos pelo caráter, iguais pelo talento, vindo ambos de muito longe, desse país fantástico do bacharelismo inconsciente, e pondo ambos no mais alto das honrarias mundanas, entre esplendores de apoteose, a mais forte das suas ambições, o mais vivo dos seus desejos.
— Meu caro João!...
— Meu caro Ernesto!...
Parecia-lhes agora um sonho aquela quebra de relações, sem um motivo suficiente, sem uma razão cabal, unicamente porque um dia, como as crianças, tinham apetecido ambos o mesmo brinquedo, tinham ambos desejado a mesma guloseima, e a nenhum ocorrera o juízo de Salomão, no caso das duas mães. Teria sido tão fácil entenderem-se!
—... Como se nada tivesse havido, não é verdade, meu caro João?
—... Como no primeiro dia do nosso encontro, meu caro Ernesto.
E novamente caíram nos braços um do outro, como se fossem amantes que se reconciliam, ou como se fossem velhos amigos que se encontram ao cabo de uma longa ausência, e marcham pela mesma estrada, a caminho dos seus destinos gloriosos, pondo a sua ambição mais forte, o seu mais vivo desejo no mais alto das honrarias mundanas, entre esplendores de apoteose.
— Como tu és bom, João...
— Como tu és magnânimo, Ernesto!...
De longe, assistindo ao desfilar de um cortejo interminável, rescendendo à frescura das suas dezenove primaveras, o rapazote apercebe os dois amigos nos braços um do outro, e não pode reprimir o seu espanto.
— Olha, papá, não queres ver?...
E como se realmente não quisesse ver, voltando- se para o Marquês, em voz baixa:
— Repara naquela gaja que além está, de vestido gris-perle, muito séria, como se fosse uma das virtudes teologais...
— É uma mulher soberba.
— Pois já cá canta...


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Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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