7/05/2019

Exposição de rosas (Conto), de Brito Camacho



Exposição de rosas
Há flores tão lindas!
Se elas tivessem representação parlamentar, como deviam ter, já seria lei do país uma disposição nestes termos:
Artigo lº — Todo aquele que colher uma flor, não se provando nos autos que procedeu na embriaguez dos seus perfumes, será condenado à pena última-
Art- 2º — Fica revogada a legislação em contrário.
Colher flores, não é verdade? quase equivale a decapitar crianças, e mal se compreende que os dois fatos não tenham a mesma sanção penal.
Uma vitrine em que se expõem rosas dá-nos a impressão de uma pequena morgue, em que se expusessem criancinhas mortas, tão brancas umas como se tivessem perdido ó último bafejo de vida com a última gota de sangue, e tão coradas outras como se as tivesse afogado uma onda apoplética.
Há flores tão lindas!
Ainda ontem, ali embaixo, na rua do Carmo, nós paramos a ver duas rosas brancas, muito brancas, que numa vitrine modesta, entre cravos e papoulas, punham num destaque doloroso a sua palidez nevada.
Quem sabe?
As almas puras que não ascendem aos astros, para nos sorrirem lá de cima, no fulgor das estrelas, procuram talvez a raiz das plantas mais delicadas, e sobem, diluídas na seiva, pelo tronco e pelos ramos, cristalizando em flor aos beijos fecundantes do sol.
Há uma vida universal, particularizada em cada indivíduo, seja homem, pedra ou flor, e quem diz vida diz consciência, tomando esta palavra no significado biológico que lhe compete.
Aquelas rosas brancas, muito brancas, diante das quais ontem paramos, ali embaixo, na rua do Carmo, estamos certos de que foram noutro tempo a alma ingênua de raparigas virgens, mortas de tísica numa agonia lenta, ainda não acordara nelas o instinto de gêmeas.
Sabe-se lá o que sofre uma flor, quando a colhem?
Tempo virá em que a sua linguagem seja compreensiva para nós, criaturas cheias de orgulho, indiferentes à dor alheia, quando ela não tortura alguém, seja quem for, que nos toque de perto, e nem sequer acreditando que sofra quem não exteriorize, como nós, o sofrimento.
Há flores tão lindas!
Nalgumas o perfume é capitoso — embriaga como um vinho forte; noutras a policromia é tão rica que dir-se-ia uma fonte luminosa. Saber-lhes o nome é já estimá-las menos, e descrevê-las como um naturalista é quase a mesma coisa que profanar uma criança, pondo lhe mãos impuras sobre as caminhas tenras.
Não devia ser permitido a ninguém tocar-lhes, quanto mais colhê-las, porque elas tem o seu pudor, que é preciso não ofender, e têm a sua vida, que é preciso respeitar.
Não é duvidoso para nós que em muitas há o orgulho das raças aristocráticas, noutras a humildade das raças condenadas, e já por mais de uma vez notamos que a vaidade é um sentimento tão vulgar nelas como nas pessoas.
A petulância de uns cravos que vimos ontem, na rua Nova do Almada, exibindo-se na montra como os estouradinhos da alta a porta da Havanesa! A pose, cheia de vaidade, dumas rosas vermelhas que adornavam uma vitrine de joalheiro, e que tinham o ar de nos dizer que toda aquela riqueza fora ali colocada só para dar realce à sua beleza!
Foi outro dia...
Tínhamos aqui, viçosa ainda, mal arrancada da haste, uma linda e enorme Paul Neyron, que sorria, vaidosa, ao nosso enlevo de namorado. Senão quando uma criança entra, pouco maior do que ela, muito mais linda do que ela, e vem sentar-se junto de nós, envolvendo-a nos seus olhares, macios como o veludo, de uma doçura infinita.
À noite, como víssemos triste a linda Paul Neyron, discretamente, perguntamos lhe o que tinha...
— Vi-me no espelhe dos seus olhos, e mata-me o desespero de não ser linda como ela.
Disse, e pendeu sobre a haste frágil, mergulhada num solitário esguio, de vidro facetado, indo encontrá-la, na manhã seguinte, desfolhada sobre a secretária, parecendo-me que morrera sem agonia, mais admirada que invejosa da beleza e graça da criança que na véspera, à luz frouxa do gás, vira sentada junto de nós, envolvendo-a nos seus olhares macios como o veludo, duma doçura infinita.
Que nunca ela saiba, a querida Borboleta, que uma vaidosa Paul Neyron morreu a invejar-lhe a beleza — de que ela, todavia, não tem sombras de vaidade.


---
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...