7/01/2019

Tibidabo (Conto), de Henrique de Vasconcelos



(Ao Sr. Barão de São Pedro)

Na tarde de agosto quente, fugira de Barcelona para a escalvada montanha que a fanfarronada espanhola batizou de Tibidabo, o sítio da Judeia onde Satã prometeu a Cristo as grandezas do Mundo e os fulgores do Pecado.
O monte levanta-se, precipitadamente, do fundo da planície em que Barcelona ondeia. E querem dizer talvez na sua os catalães, que Satã ergue as criaturas que quer tentar e, firmando-as nos cimos deste monte, oferece-lhes a cidade, imagem brilhante dos esplendores mundanos.
Sob o toldo do restaurante deserto me acolhi, a sentir a brisa preguiçosa. Espalmava-se embaixo a cidade. Corriam as suas avenidas arborizadas, as "Ramblas" que se seguem como uma bicha, e a "Gran-Via", a infindável "Cortes", que corta Barcelona em diagonal. Quedava-se o Parque enorme e, ao fundo, num vago de nevoeiro, o mar azul, riscado pela linha cinzenta da doca, onde os navios acolhidos eram imóveis.
Vinha caindo a tarde sobre as raras torres das igrejas. Brilhavam um a um os bicos de gás e as janelas em que o poente pusera uma luz de ouro.
Longo tempo ali estive. Sonhei? Foi real? Não sei. 
Um mancebo pálido e triste abeirou-se de mim:
— Vês a noite a cair? Daqui a pouco as ruas vão brilhar do frêmito luminoso dos desejos das multidões. A cobiça e a luxúria porão brasas nas almas que incendiarão os olhos. As mulheres mostrarão nos bailes e nos teatros o maculado esplendor dos seios perfumados. Nos mostradores das lojas, à luz das lâmpadas elétricas, as joias farão percorrer nas mãos desejos de roubo. A Besta ergue-se — olha como se ilumina a cidade! Vês um clarão que nasce, sobe e se perde no Céu? Julgas que é dos candeeiros? Não, é das almas! é toda debruada de vermelho como as chamas dos incêndios. Como é bela a cidade quando é culpada!
Voltei-me para o mancebo, tranquilamente. Vi que era o Diabo. Não que tivesse chifres ou cheirasse a enxofre, mas pela beleza triste, de quem conhece tudo. Não lhe tive horror. O Diabo é o gnomo sutil que trabalha na sombra as filagranas das tentações. É o Diabo que amontoa as cidades, inspira os artistas, empurra o homem para as civilizações que apodrecem e brilham.
Não lhe respondi... Num fogacho violáceo, o sol apagara-se no mar. Era tudo cinzento. Pelos canais das ruas, por entre as árvores, numa sombra mais densa, cintilavam os bicos e os mostradores das lojas.
O Diabo continuou:
— Quero a tua alma...
Olhei o atônito. Para quê a minha Alma? O grande colecionador tinha um museu estranho em que brilhavam todas as taras possíveis. Assassinos vulgares, ladrões de taberna, mães que vendem as filhas, incestuosos, ganindo de luxúria, velhos abades macerados e corroídos pelas disciplinas, que as ilusões vãs de Satã venceram, bispos, cardeais simoníacos, todos os pecados que se engastam como gemas e possuem um fulgor lúgubre, como se as pedras dos diademas ardessem nas cabeças, as gargantilhas nos pescoços, as manilhas e pulseiras nos braços, os compridos cintos nas cinturas! Satã tudo possuía, trágicos homicidas, capitães que entregam os seus soldados, reis que mancham os altares, velhas dementes que ululam nas monstruosas orgias, rojando pelo chão os cabelos pintados, crispando as bocas maquilhadas nos espasmos lancinantes, poetas que arrastam a lira pelos lameiros, virgens que se vendem sem amor e sem vício, toda a constelação dos sete pecados, como sete soes noturnos, envenenados pela treva, corroídos pela lepra, um museu formidável, sombrio, apesar de todos os brilhos, frio e angustiante, como um corredor que leva a pressentida cilada — era tudo de Satã e queria-me!
O pasmo pintou-se na minha cara.
— Quero a tua alma! Falta-me na coleção. É por isso que hoje abandonei as ruas das cidades e seus encobertos vícios para subir a esta montanha, que tem o nome de outra, onde prometi tudo e tudo me recusaram. É o nome da derrota. Não sou supersticioso. Tens uma alma de amoroso. Amas pelo Amor. Idealista e sensual, a Forma bela comove-te como um poema e mais nada. Não tens as crispações dos lascivos. Amas uma mulher e uma estatua da mesma maneira profunda, serena e harmoniosa. O amor não rebenta em beijos violentos, como as folhas das árvores pelas primaveras risonhas — floresce em imagens. Eu, que não posso amar, que soluço angustiosamente pela minha impotência, quero a tua alma!
Quando o Diabo falou do amor, do negrume da noite que se apoiara já fortemente sobre a cidade e o monte, vi passar, no seu andar musical e casto, tal uma deusa, a Bem-Amada. Foi como se uma viá-láctea suave se acendesse e florissem as flores da terra sobre as estrelas do Céu...
— Não te dou a minha alma.
— Vão abrir-se, daqui a pouco, na cidade enigmática, as portas escuras das casas de jogo. Dar-te-ei o segredo de sempre ganhar. Farei correr por ti os cubos amarelecidos dos dados. As pintas pretas far-se-ão olhos e verão onde apontas. As bolas das roletas saltarão por ti nas arestas de cobre... Conhecerás o prazer de ver amontoar na tua frente as notas e as moedas de ouro, de observar, irônico, os rostos, que a angústia encarquilha, dos jogadores que perdem. E os sobressaltos do banqueiro, imóvel, mas de olhar esgazeado, far-te-ão rir...
— Que importa? Jogarei com os sorrisos que brincam nos beiços finos de Lívia. Ganharei sempre porque, quer ela sorria ou não, vê-la-ei e, por vê-la, andarei contente...
— Ensinar-te-ei os segredos das cotas, dir-te-ei as confidências que a si mesmos mal ousam segredar os financeiros internacionais. E farás cair as grandes empresas que vão dar ao mundo um aspecto novo. Arruinarás povos inteiros, farás baquear os tronos em que rainhas hirtas se assentam, no pavor das revoltas. Serás o ordenador magnífico dos cracks, e, de país em país, o teu nome correrá, nos fios dos telégrafos, espalhando o sobressalto e a ruína.
— Não quero. Basta que o meu nome seja pronunciado numa voz suave pela Bem-Amada. Dito por ela, o meu nome vai, de flor em flor, espalhar o perfume da sua boca.
— Amas a mulher? Dar-te-ei as cortesãs vestidas de joias, como ídolos antigos. Virão, de rojo, abraçar-te os joelhos, como escravas. E dos corpos alvos e brilhantes subirão perfumes que entontecem... Dos seus braços frescos, como as grinaldas que se entretecem com jasmins, fugirão as carícias. Terão vozes magoadas a suplicar beijos. E, mais que as suas joias, brilharão os seus grandes olhos...
— As joias são flores mortas, retalhos de astros que sucumbiram... Essas mulheres são como as joias: os beijos puseram nos seus corações a dureza, a frieza e a geométrica forma das pedras lapidadas. Prefiro, a todas elas, o gesto lento e curvo da Bem-Amada quando compõe o seu cabelo preto.
— A mulher carinhosa e pura é como uma flor sem perfume. É preciso que o vício lhes ponha um estremecimento. Dar-te-ei aquelas que envenenam a sorrir, que atraiçoam entre duas carícias, a amante que vai surpreender, num beijo, o segredo do amante, o segredo que leva à Forca, aquelas que descobriram inéditas lascívias, corruptas e artificiais, que eu mesmo vestirei com tecidos fantásticos, que espalham um amavio!
— Que amavio maior do que ver a Bem-Amada quando descansa a face branca sobre as mãos cruzadas, num vagaroso gesto cheio de doçura?
— Dar-te-ei a alegria e a insaciedade, a embriaguez que exalta, o redomoinho dos desejos que estrangulam, as bocas ávidas e perseguir-te com beijos e dentadas, toda a loucura incendiária, a profanação de todos os cultos, o poder de corromper, os venenos sutis que matam lentamente e de longe, as misteriosas águas e misteriosos pós, que fazem definhar, como flores que se fanam, as criaturas... Serás o senhor das almas e dos corpos.
— Basta-me vê-la guardar, a sorrir-se, a carta que lhe escrevo...
— Entregar-ta-ei! Poderás tê-la entre os braços, morder a boca fina, sentir sobre o teu peito o arfar apressado do seu colo amoroso, ver os olhos cerrar-se como numa agonia doce... A sua figura frágil aconchegar-se-á entre os teus braços, aquecerás a sua frieza, será tua, reconhecida, amorosa, fremente de paixão... Queres? Dá-me a tua alma!
Tive um sobressalto, como quem, passeando num jardim florido, pisa um sapo:
— Não. Basta-me sentir nas noites claras, quando lhe falo à varanda, o seu olhar cair gota a gota sobre os meus olhos extáticos!
O criado veio dizer-me que ia fechar-se o restaurante. A treva escorregava pelo monte. Um clarão vinha da cidade estendida a meus pés. E vago, confuso, o ruído da cidade com os seus vícios, seus tumultos, o cio que começava.
Desci. E, a acompanhar-me, senti a Bem-Amada, perto de mim, carinhosa, a olhar-me longamente com os seus largos olhos pretos.

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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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