7/08/2019

Tiri e Karu (Lenda), de Barbosa Rodrigues



Tiri e Karu
(Lenda dos Yurukarés)

Sararumá ou Aymá Sunhé, gênio malfazejo, abrasou a terra não escapando senão um homem que por prevenção meteu-se em um buraco com alimentos para alguns dias. Para ver se o incêndio continuava punha para fora do buraco uma varinha, que durante dois dias retirava queimada, porém no terceiro voltou sem ser queimada e fria. Vendo o incêndio terminado saiu do buraco e viu que a terra estava nua. Sem abrigo e sem alimentos vagava quando se encontrou com Sararumá, que lhe disse:

— Fui eu o causador de todo este mal, mas como tenho pena de ti, toma. Deu-lhe um punhado de sementes e ordenou-lhe que semeasse.

De repente apareceu um bosque, como por encanto, com o que era necessário para o alimento humano.

Depois, sem que se saiba como, este homem tinha consigo uma mulher da qual teve muitos filhos e uma filha.

Na idade das paixões, a filha corria tristemente as florestas, chorando o seu isolamento quando foi dar com uma bela arvore, o Ulè, da qual apaixonou-se, transformando-se esta em homem com o qual passava as noites, desaparecendo ao raiar do dia.

Revelando tudo a sua mãe, esta aconselhou-a que o amarrasse. Com efeito, seguindo os conselhos maternos Ulé ficou preso, e prometendo casar-se foi solto.

No gozo de uma felicidade perfeita estava, quando um dia indo ele à caça não voltou por ter sido morto por uma onça. Indo ela a sua procura soube, pelos irmãos, da desgraça e levada por eles foi ver o seu corpo. Encontrando os pedaços ensanguentados, todos dispersos, uniu-os para ainda uma vez ver suas formas. Contemplava ela o marido quando este ressuscitou e disse:

— Parece-me que dormi muito!

Voltavam alegres quando Ulé tendo sede foi a um córrego beber água e vendo a sua figura refletida, notou que lhe faltava um pedaço da cara, e para não aparecer mais a sua mulher assim desfigurado, deixou-a e dela se despediu, dizendo que voltasse só, mas que nunca virasse o rosto para traz durante o caminho, fosse qual fosse o barulho que houvesse atrás de si.

Durante a volta ouviu diversas vezes ruído atrás de si; mas, não fez caso, porém uma ocasião ouvindo o barulho de uma folha que caía, voltou-se, o que foi bastante para perder o caminho e extraviar-se pelo mato. Errava de um para outro lado sem acertar com o caminho quando foi dar à casa da mãe das onças. Esta recebeu-a afavelmente, porém, vendo que seus filhos quando voltassem a comeriam mandou que ela se escondesse.

Voltando os filhos sentiram que havia gente estranha em casa, e afinal descobriram a moça. Iam comê-la, porém a mãe os impediu.

Obrigaram-na então a catar-lhes as formigas que tinham no corpo e a comê-las. Apesar do medo não pôde comer as formigas, pelo que a mãe lhe deu um punhado de sementes de cuieira, para que iludindo, pusesse fora as formigas e comesse as sementes. Assim iludiu ela a três filhos da onça, porém o quarto, que tinha quatro olhos, viu a esperteza da moça e furioso lançou-se sobre ela, matou-a e tirou do ventre o filho que estava em termo de nascer.

A mãe tendo pelo filho a mesma pena que tivera da mãe, meteu a criança num pote, para cozinhar, porém depois tirou-a, metendo nele outra coisa e assim iludiu o filho.

Às ocultas e aos cuidados da velha onça cresceu o menino e tornou-se homem. Chamava-se Tiri. Um dia disse ela a Tiri que uma paca lhe tinha comido todas as abóboras. Ele foi para a upera, e quando apareceu o animal o flechou, mas tão mal que apenas a flecha arrancou a cauda, por isso dessa data em diante esse roedor ficou sem esse apêndice.

A paca assim ferida voltou se e lhe disse:

— Tu vives em boa harmonia com os assassinos de tua mãe, e porque me queres matar quando eu não te fiz mal?

Tiri pediu à paca que lhe explicasse o que queria ela dizer, porque para ele aquelas palavras eram misteriosas.

A paca levando-o para sua toca, disse-lhe que as onças tinham morto seu pai e sua mãe e que tendo já descoberto que ele vivia queriam escravizá-lo.

Furioso Tiri depois de ouvir as revelações da paca, foi esperar as onças e quando elas voltavam da caça matou três, varadas por suas flechas. A quarta que tinha quatro olhos vendo as flechadas escapou, apenas ferida e subindo para uma arvore exclamou:

— Árvores, palmeiras favoreçam-me! ... Sol, lua e estrelas salvem-me!

A lua atendendo ao seu pedido ocultou-o e desde então, as onças são noturnas e estão representadas na lua.

Tiri tinha um poder sobrenatural.

Vendo a mãe da onça só, sem ter quem para ela trabalhasse fez um instante um grande roçado com plantações.

Aborrecendo-se de viver sozinho, e senhor da natureza, tendo um dia dado uma topada que lhe arrancou a unha do dedo grande, meteu está no oco do pau causador desse desastre. Logo depois ouviu falar atrás de si e viu um homem que se tinha formado da unha. Tiri deu-lhe então o nome de Karu.

Dalí em diante se uniram em boa harmonia sendo Karu seu confidente. Aconteceu, porém, que sendo eles, um dia, convidados por um certo pássaro para almoçar em casa dele, ofereceu-lhes este um vaso cheio de chicha, que nunca se esvaziava por mais que bebessem, e dando Tiri com ele por terra, saiu líquido em tanta abundância que inundou a terra e matou seu companheiro.

Depois de secas as terras Tiri tomou os ossos de Karu e o ressuscitou.

Continuaram a viver sós, porém, aborrecidos desejaram viver em companhia de outros homens e para isso uniram-se à fêmea de alguns animais. De cada uma nasceu um homem e uma mulher, porém como as mulheres nascessem com os olhos abaixo do peito, Tiri teve de mudá-los para o lugar que hoje ocupam.

O filho de Karu morreu e por este foi enterrado.

Tiri, no fim de algum tempo disse a Karu que fosse desenterrar seu filho, mas que não o comesse. Karu cumpriu a ordem de Tiri, e cavando a cova de seu filho só encontrou as raízes de um pé de mandioca. Karu achando-as bonitas comeu-as o que fez com que se ouvisse grande estrondo.

Tiri então disse:

— Karu desobedeceu-me e comeu o filho, e para puni-lo, tanto ele como todos os homens serão mortais, sujeitos ao trabalho e ao sofrimento.

Tempos depois Tiri sacudindo uma árvore caiu dela um pato, que Tiri ordenou a Karu que o cozinhasse e comesse.

Obedecendo Karu, Tiri lhe disse:

— Este pato era teu filho e tu o comeste.

Karu desgostou-se de tal modo, que vomitou tudo quanto comera. Saíram então da sua boca papagaios, tucanos, e outros pássaros.

Tiri e Karu foram visitar a mãe da onça, porém, vendo que estava com os beiços ensanguentados, Tiri, julgou que ela tinha se encontrado com homens e que ela os tinha devorado.

Ameaçou matá-la se não confessasse seu crime, e cortou-lhe o pelo da cabeça.
Quando ia matá-la ela pediu que a perdoasse, porque revelaria tudo.

É verdade que comi uma pessoa, porém esta estava já morta por ter sido mordida por uma cobra, que vive num buraco.

Indicou o lugar.

Essa cobra comia todos que apareciam nesse lugar. Tiri disse à mãe das onças:

Tu, de hoje em diante, só comerás o que os outros matarem, e assim acontecerá aos de tua raça. Transformou-a em urubu.

Por essa razão o urubu tem a cabeça pelada.

Tiri ordenou a um Uacauan que matasse e comesse a cobra.

Depois disso saíram do buraco da cobra os Incas, os Mansinos, os Chiriguanos e outras nações. Foi tal a quantidade de gente que saiu que Tiri amedrontando-se tapou o buraco.

O buraco por onde saíram os povos que encheram a terra, existe perto de uma grande rocha chamada Mamoré do qual ninguém se aproxima por causa de uma grande cobra que guarda a entrada do buraco. Fica perto da confluência dos rios Sacta e Soré, nas nascentes do rio Mamoré.

Tiri disse então a essas nações:

— E preciso que se dividam e ocupem toda a terra e para isso vou lançar a discórdia entre vocês. Imediatamente caiu uma chuva de flechas, com as quais todos se armaram.

Por muito tempo essas nações se bateram até que Tiri as pacificou, porém conservaram-se sempre separadas odiando-se umas às outras.

Terminando sua missão ali, Tiri decidiu-se a procurar outro lugar e para saber qual deveria ser, enviou um pássaro para o Oriente, que pouco tempo depois voltou em parte depenado. Concluiu que o espaço da terra era pequeno. Mandou— o para o Norte, e aconteceu a mesma coisa, porém mandando-o para o Poente no fim de algum tempo, o pássaro voltou coberto de lindas penas. Para lá então dirigiu-se Tiri, para nunca mais aparecer.


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Fonte:
João Barbosa Rodrigues (1842-1909): "Poranduba amazonense" (1890)
Pesquisa: Iba Mendes (2019)

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