8/25/2019

Na falta de ideias claras (Resenha)



Na falta de ideias claras

Julgar um homem pelas suas obras parece coisa natural e lógica e tão fácil que correntemente vamos classificando mortos e vivos com uma segurança e convicção só comparáveis à certeza e rigor crítico dos que sobre o mesmo assunto têm exatamente a opinião contrária. Tais exercidos de crítica são inocentes quando se trata de estranhos. Com os que amamos e veneramos o caso é mais melindroso e requer cuidado.

A gente preclara que escreveu antes de mim tem a fortuna de possuir sobre Eça de Queirós ideias claras e precisas, a que chegaram por análise e por síntese, tratando com o escritor, estudando os seus livros. As ideias claras afirmam muito o estilo, animam o andamento das frases pela estrada batida da prosa encomiástica. Com elas vai longe um crítico. Vai e volta. E as mesmas ideias refazem a jornada literária. São disciplinadas e cômodas, dão ao discurso a graciosa virtude da facilidade, que particularmente se preza nas democracias intelectuais. Têm, porém, o inconveniente de serem impessoais, de assentarem a todos com a mesma odiosa justeza das roupas feitas, que os fabricantes por grosso talharam pela média das estaturas comuns e que têm sempre o ar de não pertencerem a ninguém, de serem do regimento ou da comuna. Para as necessidades mnemônicas das histórias de literaturas nacionais esses nivelamentos, essas compressões e deformações classificativas de um gênio individual podem ser provisoriamente úteis; para dar-lhe apreço e glorificá-lo é que não. Há certos adjetivos folgados nas cavas e de ampla roda, há frases mal panejadas, em pregas mal dispostas, caindo fora do lugar, há discursos domingueiros de muita vista e grande estilo, que injuriam pela impropriedade. A injúria não está na insuficiência ou no excesso da homenagem, está na indiferença da sua objetivação e consequente insinceridade. Estou certo de que até o grande Hugo recusaria uma apoteose que primitivamente fosse destinada a Shakespeare, como uma palma triunfal a que apenas se mudasse a inscrição das fitas.

Certamente não se aplica a presente homenagem ao primeiro prosador português o que exageradamente digo  sobre o papel nefasto das ideias claras no julgamento dos grandes homens através das suas obras. Neste caso particular a precária psicologia cede o campo à admiração incondicional e sincera. Mas no meio do sussurro admirativo várias tentativas de filiações, de explicações estéticas revelam a eiva irreprimível, a tenção do julgamento e classificação do escritor celebrado. Temos umas frases prontas e ocasião de as empregar: que importa que nelas não caibam trinta anos de labor fecundo da vida de um grande artista? Sempre um canto da  sua figura lá se achará contido e medido, parcela de retrato...

Paralelos, medidas, juízos e classificações — obra ociosa e vã! Quem as empreende presume que aproveitarão ao objeto da sua consideração; porém mais frequentemente, como nas marchas triunfais de noite, a claridade do archote dá primeiro sobre o porta-facho. Às vezes o triunfador se esquiva e sobe a alguma varanda para contemplar a sua glória que passa em clarões e vivas. E a procissão continua desapercebida, ébria de entusiasmo, louca, simbolicamente. Tem essa miséria a glória que a turba vil que nos aplaude a si mesma se aclama, exaltada na grandeza de um dos seus. Suprimido o escravo insultador dos triunfos antigos, resta esse odioso memento da nossa filiação democrática. E apesar do seu sábio descuido da crítica e por mais afetuosa e singela que seja a manifestação da Revista Moderna, o claro e sutil Fradique Mendes vai aqui ver-se mal explicado, senão mal entendido, pelos seus aclamadores, que o vestiram de ideias claras para o demonstrar ao público.

Um ensaio psicológico sobre Eça de Queirós, ideias sintéticas sobre a obra de um homem que há longos anos vem trabalhando para a sua língua e para o seu povo com a assiduidade e sinceridade de quem trabalha humildemente para Deus, que tem formado a sua alma ao contato do mundo e que a não tem posto nos seus livros, porque almas não cabem em livros, demonstrações do seu gênio nunca me pareceram necessárias — unidade do público que sou. Sinto-me feliz de viver num tempo em que o pude conhecer e amar, sem carecer de o buscar disperso em livros refletindo desigualmente generosos impulsos e agitações dos vinte anos e contemplações serenas da idade madura. Sobrasse-me ainda mocidade e memória e eu faria como o que aprendeu a Relíquia de cor, para ornamento do seu espírito e graça e conceito do seu discurso. Esse é o verdadeiro culto e devoção. O resto são variações literárias sobre o tema conhecido da glorificação do Mestre.

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DOMÍCIA DA GAMA
Revista Moderna, 20 de novembro de 1897.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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