8/26/2019

Eça de Queirós - O escritor por excelência (Resenha)



EÇA DE QUEIRÓS, O ESCRITOR POR EXCELÊNCIA

Há meses apenas num jornal de lá-bas, dessa clara e dormente Lisboa dos pregões, dos mármores, das varinas e do sol, eu escrevia, a fechar um artigo, estas linhas:

“A cerrada ignorância do nosso meio, a inveja que como os ventos da peste açoita desapiedadamente as grandes estaturas, preguiças e indiferenças moles do nosso temperamento de meridionais neo-árabes, fazem com que, a nenhum dos grandes homens de Portugal, exceto não sei por que bendito acaso João de Deus, que, nesta década de agonia cerraram os olhos para a vida fosse dada a consoladora ventura de assistirem a um espontâneo movimento da opinião em seu favor, de apoteose festiva e grandiosa da sua obra, do seu gênio e do seu caráter. Morto para a jucunda luz que as pesadas cortinas das suas pálpebras não deixaram entrar a banhar o íris dos seus olhos magoados e taciturnos, espectro de si mesmo, gênio que a desgraça maior ainda tornou, não sei quantos anos Camilo errou trágico e desvairado pela vida sem que a clamorosa voz de todos nós dizendo-lhe quanto amávamos a sua obra levasse um relâmpago de alegria à noite sem astros daquela alma; para uma ilha dos Açores deixamos partir, a caminho do suicídio, esse Imenso e Santo Antero, um dos mais altos gênios e dos mais puros caracteres que a humanidade tem produzido, sem que lhe saíssem a embargar os passos as nossas rosas, as nossas palmas e os nossos beijos; e por último deixamos agonizar e morrer sem um murmúrio doce de ovação esse dramaturgo extraordinário, espécie de Shakespeare da nossa história, Oliveira Martins, o imortal autor da Vida de Nun’Álvares. Sirva-nos esta lição para o futuro de contrita emenda para o nosso erro. Que nós, os moços, não esqueçamos a primeira oportunidade para promover a consagração a que têm direito quatro ou cinco grandes espíritos que, pelo seu gênio e pelo seu caráter, honram a terra portuguesa. Eça, o nosso grande e poderoso romancista, em primeiro lugar, dois ou três poetas e um crítico que pelo seu trabalho constante é um nobre exemplo à confiada e risonha indolência de todos nós, em seguida.”

Pouco tempo volvido sobre a publicação deste artigo, à notícia que por um comum amigo eu recebera da ida de Eça de Queirós a Portugal corri à casa do Antônio Nobre e Justino de Montalvão para combinar a apoteose a fazer-lhe. O genial romancista não saiu porém de Paris e agora, mal chego à tumultuosa capital do mundo, tonto ainda e meio deslumbrado, recebo a boa nova de que altos e nobres espíritos vão dedicar na bela Revista Moderna um número de consagração a Eça de Queirós. Bênçãos caiam sobre os que tiveram tão formosa ideia — e a realizaram.

Eça é a mais culminante eminência das letras portuguesas no nosso tempo e, como artista, o mais supremo, o maior dos cinco séculos de literatura nacional. Garrett, que foi um admirável artista também, é diminuto ao seu lado e não sei na verdade que haja a esta hora na Europa nenhum outro cinzelador da forma, tão inquieto e tão perfeito, tão requintado e tão ateniense, como poucos são também os escritores que o igualem e raros os que o excedam. Ele é um Antônio Vieira que à sonoridade e à força juntasse a sensibilidade e a delicadeza de Garrett e a ironia de Tacheray e de João Paulo Richter.

Comparados com os seus livros o que vale o diletantismo cerebral de Barrès, interessante e agudo de resto, o preciosismo fino e nervoso dos Goncourt, a analise infinitesimal de Bourget, examinando os corações das parisienses com uma lente de relojoeiro? A obra de Eça é como uma cidade de mármore, cheia de sol, perfumada de rosas e sob um céu eternamente calado e azul. Nas suas ruas agita-se, com movimento próprio e vida ordenada e calma, uma colmeia d'almas. E o bom Jorge do Primo Basílio, o Padre Amaro, a Amélia e a São Joaneiro do Crime, a doce Maria Eduarda dos Maias, o Carlos, o portuguesíssimo Raposão da Relíquia, o frascário Teodoro, o mefistofélico João da Ega e a galeria suprema dos grotescos — o Conselheiro Acácio, o Visconde Reinaldo, Steinbroken, os Gouvarinhos, o Tomás de Alencar.

A ironia do autor desse maravilhoso Mandarim é, quanto a mim, a qualidade dominante do seu gênio e dela resulta aquele seu doce ceticismo, que longe de ser metálico e amargo como o do autor da Thais, trai ainda a ancestralidade portuguesa de Eça, a bondade da admirável raça de amorosos e de poetas donde brotamos.

Por ele Eça muitas vezes recorda-me o fino e agudo Renan.

Ao admirável criador d'almas, ao Fídias da prosa portuguesa que primeiro a desarticulou, lhe tirou a rigidez clássica e a tornou dúctil e sonora, capaz de se adaptar a todos os assuntos, vestir todas as ideias, exprimir todos os estados de consciência, grafar todas as sensações, fixar todas as cismas, falta porém e apenas uma coisa — crer.

Ah! acreditasse ele com devoção e a impossibilidade, tão filosófica e tão alta embora, de Flaubert não o tocaria, nem o amargo pessimismo do genial espírito, que sonhava gravar nos símbolos eternos da Tentação e de Pécuchet toda a vida moderna o todos os mundos desaparecidos e idos o invadiria florindo dos venenos do tédio as páginas luminosas o, serenas da sua obra de latino, nascido nas baías doces do Atlântico, pertencendo ao claro país das uvas loiras e provindo da magnificente raça dos domadores das tempestades e dos ventos que outrora haviam defrontado o Adamastor e conquistado as Índias. Tivesse ele fé; pusesse ele hipnotizado como um bardo seus grandes olhos escuros na Estrela da Manhã, que ascendendo das grutas da noite vem já anunciando Aleluias e Redenções, os paraísos d’Amanhã; acendesse a Esperança, à sua volta iluminações e relâmpagos proféticos e a sua obra teria uma amplidão e ressonância sem igual, banhar-nos-ia duma emoção mais fecundadora e larga e a alma verdadeiramente poética e boa que nela bate, sentir-se-ia voluptuariamente cantar o hino augusto e supremo da Vida Integral e Livre.

Então Eça seria igual a Ibsen e a Zola, superior a Tolstoi, maior ainda que esse epilético e grande e dispersivo gênio de Dostoiévski e a sua bela obra revolucionária do Crime, do Basílio, da Relíquia e dos Maias irradiando dum foco de concepção sintética, teria uma ação mais ampla e demolidora. O gênio de Eça, labareda sagrada, em vez de criar Almas, criaria Mundos.

Mas se o romancista não é um Profeta e um Precursor, o austero solitário de uma ideia, é para mim o maior artista da Europa e dos quatro primeiros escritores do seu tempo aquele que, no conflito eterno da Beleza, soube bater-se com maior galhardia e depois de ter percorrido as cinco partes do mundo da visão à olímpica Atenas regressou vencedor, como um Alexandre coroado de rosas brancas e de mirtos.

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DOMINGOS GUIMARÃES
Revista Moderna, 20 de novembro de 1897.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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